terça-feira, 27 de abril de 2010

A liberdade de opinar...começou em Abril



Miguel Castelo Branco refere que trabalhou, nos últimos 15 anos, na companhia dos cimélios das maiores bibliotecas patrimoniais portuguesas: Évora, Biblioteca Nacional, Palácio da Ajuda, Academia das Ciências, Torre do Tombo, Coimbra, Aveiro e Porto, e que constatou que, dos códices iluminados medievais e renascentistas aos incunábulos do século XV, das tipografias dos grandes impressores dos séculos XVI e XVII – Valentim Fernandes, Germão Galharde, João de Barreira, António de Mariz, Paulo Craesbeck – emana a persistente e jamais derrotada capacidade dos homens de todos os tempos em derrubar pela palavra escrita ideias e verdades impostas, autoridades tidas por indiscutíveis, linhas de pensamento que se julgam insuperáveis. "A história da liberdade é, por isso, a história da faculdade de pensar, criticar e refazer o conhecimento."
Homo cogitans, o homem nasce dotado para a abstracção, a intelecção do universo físico e metafísico, o estabelecimento de leis, a construção do método científico, o domínio do passado e a prospecção e antecipação do futuro. A Filosofia e a História das Ideias ensinam-nos que devemos empreender por um ininterrupto esforço cognoscitivo para encontrar respostas, desfazer certezas e validar novas. A vida intelectual é um campo de batalha silencioso, uma luta de supressão entre ideias que morrem e ideias que triunfam antes que a sua expressão social – política, económica, artística – se verifique. Apesar de ninguém pode colocar grilhetas no pensamento, é uma evidência histórica que a repressão da expressão do pensamento faz parte de todos os sistemas sociais. Não há comunidade histórica que não tenha criado instituições repressivas visando policiar, reprimir, censurar ou mesmo suprimir ideias tidas por contrárias a uma estimada verdade oficial. Se o conhecimento é poder, ideias que coloquem em risco a estabilidade do corpo social e submissão dos indivíduos são legalmente puníveis.
A liberdade de expressão encontra limites positivos-legalísticos e limites materiais, i.é, indiscutíveis. Qualquer sociedade política interdita, in limite, o seu contrário, numa tendência totalitária mais ou menos discreta, mais ou menos intransigente,mais ou menos violenta. As democracias possuem pulsões liberticidas e é certo e sabido que, às vezes, as escondem sob uma aparente capa de tolerância. O elemento mais perturbador desta repressão disfarçada é que em tais sociedades não existem aquelas típicas instituições repressivas mandatadas para a supressão do "direito de expressão", mas uma translação do eixo para outras sedes de poder condicionador, nomeadamente a comunicação social – não há opinião pública, mas opinião que se publica – e as instituições produtoras e reprodutoras da verdade oficial, nomeadamente a universidade e as casa editoras. Outro elemento perturbador prende-se com a crescente desautorização do "pensamento duro" – sempre relativo, tomado como igual a outras formulações teoréticas - em benefício do "pensamento mole", ou seja, da opinião. Se a todos se reconhece o direito à livre opinião, a democracia transforma-se num método, numa forma de estar, num modus vivendi, e, sobretudo, numa postura de vida, numa atitude, deve defender-se, assim, que conquanto não se firam os "limites materiais", as opiniões merecem igualmente ser todas respeitadas. É esta a grande vulnerabilidade das sociedades abertas, conservadoras no centro, intransigentes e repressivas na periferia.
Os bloqueios de que padece a sociedade portuguesa provém de uma forte e silenciosa herança secular da vigilância, repressão e sufocação de ideias proibidas. Desde a Inquisição, às listagens de obras proibidas, à censura, à auto-censura e ao desprezo, a camuflar o medo, pelo que se desconhece e não se compreende. Temos, por natureza do meio, por essa aculturação, uma aversão à mudança das mentalidades e do agir diferente. Somos algo hostis ao incómodo causado pela responsabilidade nascida da auto-determinação, consensualistas e desconfiados, fugidios e precários na arte de argumentar.
Espero que um dia nos permitamos, orgulhosamente, assumir o risco de empreender por essa aventura fantástica do livre pensamento e da sua defesa pública. Sem o receio de ser, realmente, livre. Até porque o verdadeiro berço dessa liberdade de opinar foi Abril.