quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Enjoados do português, por Fernando Dacosta, Jornal I



«Enquanto a língua portuguesa se expande pelo mundo (já é a quinta mais falada), em Portugal encolhe. Pior: desvaloriza-se. Pior ainda: são os próprios portugueses a menosprezá-la. Enjoados dos seus elementos identitários, cada vez maior número deles debita línguas alheias – avassaladoramente o inglês. As avalanches de tecnocratas, economistas, políticos, intelectuais, gestores, comunicadores que nos submergem são os que, na snobeira de se dizerem “cidadãos do mundo”, mais o exibem.
Responsáveis a falar inglês em actos oficiais (internos) virou, com efeito, pretensiosíssimo e desrespeitosíssimo; não traduzir títulos de filmes, de peças de teatro, de livros, de programas televisivos, nem folhetos de instruções de electrodomésticos, de computadores é ultrajante – como ultrajante se revela a SATA ao emitir bilhetes electrónicos em inglês; a RTP ao transmitir, a seco, programas estrangeiros, caso da noite dos Óscares; como cantores ao ignoraram a sua língua, caso de várias bandas. Amália construiu a sua carreira em português; Pessoa fez o mesmo.
Escrever e falar bem era no passado exigência de estatuto cultural; hoje não passa de excrescência. O património mais valioso que possuímos está a ser grosseiramente vandalizado, como fazemos, aliás, com tudo o que podia dignificar-nos, engrandecer-nos. “O novo acordo ortográfico”, alerta a professora Maria do Carmo Vieira, “impede as pessoas de pensar.” Razão tinha José Craveirinha, que, em debate lusófono sobre a ameaça do inglês no seu país, ironizou: “Ora, quem está a ser colonizado por ele não somos nós, são os portugueses. Vejam as ementas dos restaurantes, as tabuletas públicas, os livros técnicos, as canções, etc., quase tudo em inglês. Tenhamos é orgulho na nossa língua!»

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

17 de Outubro - Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza - Ai Portugal, Portugal!



«A erradicação da pobreza deve ser a prioridade absoluta de qualquer política de desenvolvimento. A extrema pobreza é um impedimento ao pleno exercício dos direitos humanos, um obstáculo ao desenvolvimento e uma ameaça à paz. Milhões de pessoas ainda são vítimas da fome – 842 milhões de pessoas continuaram a sofrer de fome crónica entre 2011 e 2013. Como podemos pensar em construir paz duradoura e desenvolvimento sustentável nessas condições? Isso é um insulto à sociedade e à noção de dignidade humana e requer a nossa atenção integral. Um salto à frente é possível, soluções existem – começando com a educação, que abre as portas para a inclusão social, a capacitação e o emprego.» 17 de Outubro - Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, Directora Geral da UNESCO, Irina Bokova.

Hoje? Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza?
Portugal - O 6.º da País da União Europeia com maiores desigualdades de rendimentos entre os mais ricos e os mais pobres.
Portugal - 29,3% da população infantil encontra-se em privação material desde o ano passado [privação material: quando um agregado familiar não tem acesso a 3 bens de uma lista de 9 bens essenciais].
Portugal - Os números indicam que o risco de pobreza das famílias com crianças dependentes se agravou.
Portugal - Agravou-se a taxa de intensidade de pobreza.
Portugal - Agravou-se a diferença entre Portugal e a média da União Europeia, relativamente ao risco de pobreza [que se mantém estável a Europa mas que, em Portugal, vai aumentando].
Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza? 
«Ai, Portugal, Portugal De que é que tu estás à espera? Tens um pé numa galera e outro no fundo do mar Ai, Portugal, Portugal Enquanto ficares à espera Ninguém te pode ajudar ...»

domingo, 12 de outubro de 2014

Malala Yousafzai de novo e sempre!


"Em 11 de Outubro de 2013, publiquei no PINN este texto dedicado a Malala, que, por estar pleno de actualidade, faz todo o sentido reeditar. Ao contrário do que então previa, apesar de lhe terem atribuído o prémio Sakharov, não lhe deram o Nobel da Paz. Mais vale tarde que nunca e deste ano não passou, felizmente. Como consta no texto, acredito que este prémio, pelo impacto que tem no mundo, mexa com as consciências dos islâmicos, particularmente dos mais radicais, e sirva de pedra de toque para se começar a inverter este espírito de radicalismo que tem vindo a crescer de há uns anos a esta parte. Quero acreditar que o nome de Malala ficará gravado na História, não por ser a laureada mais jovem a receber o Nobel da Paz, mas por ter contribuído para esse passo fundamental que leva ao apaziguar das relações do Islão com o resto do mundo, a bem do mundo. A morte leva à morte e com ela o ódio enraíza e alastra, semeando mais violência e morte. É absolutamente necessário fazer parar este ciclo vicioso de ódio que está instalado. Um Nobel muito bem entregue. Deixo-vos com o texto:
«Malala é a jovem paquistanesa que foi baleada por um talibã, apenas porque ela defendia, sem peias, que a educação é essencial. Entretanto foi socorrida, recuperou, exilou-se com a família em Londres e é hoje uma das mais importantes vozes, se não a mais importante, contra o fundamentalismo islâmico.
Conhecendo o seu passado, a sua lucidez naquela jovialidade chega a comover, como sucedeu quando discursou, no dia em que celebrou os seus dezasseis anos, em plena Assembleia Geral da ONU. «A educação primeiro» foi a sua frase que virou slogan e, por ela, ou pelo seu significado, ia morrendo quando mal começara a viver.
Malala surge num tempo em que o fosso se vai alargando entre os fundamentalistas islâmicos e o Ocidente. Sabe-se que a rapariga, pela visibilidade que tem, é hoje uma referência no seu país e, por arrastamento, não deixará de o ser entre os moderados do mundo islâmico. Foi agora galardoada com o Prémio Sakharov, atribuído pelo Parlamento Europeu a quem se revele na luta pelos direitos humanos. O seu prestígio aumentará, sem dúvida. Não ignoramos que é muito jovem, mas, ainda assim, se o Prémio Nobel da Paz lhe fosse entregue, como acreditamos que será, o seu nome e as suas palavras ecoariam por muito tempo, particularmente no mundo islâmico, fazendo com que a sua mensagem passasse com mais facilidade e, por força dela, os seguidores de Maomé vissem com outros olhos a violência que os seus mais extremistas têm semeado nos últimos anos, passando a condenar esses actos terroristas, reduzindo, progressivamente, a base de recrutamento da rede do mal, que não tem sido difícil alimentar.
A ser assim, talvez Malala protagonize o princípio de algo que no Ocidente ficou conhecido por movimento iluminista, que se foi cimentando entre finais do Séc. XVII e todo o século seguinte, culminando na Revolução Francesa, pondo fim aos excessos de uma Igreja Católica todo-poderosa, onde a violência contra o indivíduo também era imposta por «lei divina». A paz depende muito da capacidade de neutralização dos radicais islâmicos que podem agir em qualquer recanto do planeta, como já deram provas em demasia. Já sabemos que a reacção violenta que tem sido a resposta, só gera ódio e aumenta o caudal de fundamentalistas. Malala oferece-nos um óptimo trunfo. Que o mundo o saiba usar. Ela, por certo, regozijará.» - Carlos Ademar

"VAIDADE E ARROGÂNCIA - PROFANOS DE AVENTAL!!"


"VAIDADE E ARROGÂNCIA - PROFANOS DE AVENTAL!!
Nenhum ditador provocou ou vêm provocando tanto dano à Maçonaria quanto o maçom vaidoso, este sapador inveterado, este Cavalo de Tróia que a destrói por dentro, sem o emprego de armas, grilhões, ferros, calabouços e leis de exceção. Ele é indiscutivelmente o maior inimigo da Maçonaria, o mais nefasto dos impostores, o principal destruidor de lojas. Ele é pior do que todos os falsos maçons reunidos porque se iguala a eles em tudo o que não presta e raramente em alguma virtude.
Uma característica marcante que se nota neste tipo de maçom, logo ao primeiro contato, é a sua pose de justiceiro e a insistência com que apregoa virtudes e qualidades morais que não possui. Isso salta logo à vista de qualquer um que comece a comparar seus atos com as palavras que saem da sua boca. O que se vê amiúde é ele demonstrar na prática a negação completa daquilo que fala, sobretudo daquilo que difunde como qualidades exemplares do maçom aos Aprendizes e Companheiros, os quais não demora muito a decepcionar. Vaidoso ao extremo, para ele a Maçonaria não passa de uma vitrine que usa para se exibir, de um carro de luxo o qual sonha um dia pilotar. E, quando tem de fato este afã em mente, não se furta em utilizar os meios mais insidiosos para tentar alcançá-lo, a exemplo do que fazem nossos políticos corruptos.
Narcisismo em um dos extremos, e baixa auto-estima no outro, eis as duas principais características dos maçons vaidosos e arrogantes. No crisol da soberba em que vivem imersos, podemos separá-los em dois grupos distintos, porém idênticos na maioria dos pontos: os toscos ignorantes e os letrados pretensiosos.
A trajetória dos primeiros é assaz conhecida.
Por serem desprovidos do talento e dos atributos intelectuais necessários para conquistarem posição de destaque na sociedade, eles ingressam na Maçonaria em busca de títulos e galardões venais, de fácil obtenção, pensando com isso obter algum prestígio. Na vida profana, não conseguem ser nada além de meros serviçais, de mulas obedientes que cedem a todos os tipos de chantagem. Por isso, fazer parte de uma instituição de elite (isso mesmo, de elite!) como a Maçonaria produz neles a ilusão de serem importantes; ajuda a mitigar um pouco a dor crônica que os espinhos da incompetência e da mediocridade produzem em suas personalidades enfermas.
O segundo em quase tudo se equipara ao primeiro, porém com algumas notáveis exceções.
Capacitado e instruído, em geral ele é uma pessoa bem sucedida na vida. Sofre, porém, desse grave desvio de caráter conhecido pelo nome de “Narcisismo”, que o torna ainda pior do que o seu êmulo sem instrução. Ávido colecionador de medalhas, títulos altissonantes e metais reluzentes, este maçom é uma criatura pedante e intragável, que todos querem ver distante. No fundo ele também é um ser que se sente rejeitado; sua alma é um armário de caveiras e a sua mente um antro habitado por fantasmas imaginários. Julgando-se o centro do Universo, na Maçonaria ele obra para que todas as atenções fiquem voltadas para si, exigindo ser tratado com mais respeito do que os irmãos que atuam em áreas profissionais diferentes da dele. Pobre do irmão mais jovem e mais capacitado que cruzar o seu caminho, que ousar apontar-lhe uma falta, que se atrever a lançar-lhe no rosto uma imperfeição sua ou criticar o seu habitual pedantismo! O seu rancor se acenderá automaticamente e o que estiver ao seu alcance para reprimi-lo e intimidá-lo ele o fará, inclusive lançando mão da famosa frase, própria do selvagem chefe de bando: “Sabe com quem está falando!!!” Desse modo ele acaba externando outra vil qualidade, que caracteriza a personalidade de todo homem arrogante: a covardia.
O número de irmãos que detesta ou despreza este tipo de maçom é condizente com a quantidade de medalhas que ele acumula na gaveta ou usa no peito. Na vida profana seus amigos não são verdadeiros; são cúmplices, comparsas, associados e gente que dele se acerca na esperança de obter alguma vantagem. E nisso se insere a mulher com a qual vive fraudulentamente. Todos os que o rodeiam, inclusive ela, estão prontos a meter-lhe um merecido chute no traseiro tão logo os laços de interesse que os unem sejam desfeitos. O seu casamento é um teatro de falsidades e o seu lar um armazém de conflitos. Raramente familiares seus são vistos em nossas festas de confraternização. Quando aparecem, em geral contrariados, não conseguem esconder as marcas indeléveis de infelicidade que ele produz em seus rostos.
Em sua marcha incessante em busca de distinções sociais que supram a sua insaciável necessidade de auto-afirmação, é comum vermos este garimpeiro de metais de falso brilho farejando outras organizações de renome, tais como os clubes Lyons e Rotary, e gastando nessas corridas tempo e dinheiro que às vezes fazem falta em seu lar. A Maçonaria, que tem a função de melhorar o homem, a sociedade, o país, e a família, acaba assim se convertendo em uma fonte de problemas para os seus familiares; e ele, em uma fonte de problemas para a Maçonaria.
Um volume inteiro seria insuficiente para catalogar os males que este inimigo da paz e da harmonia pratica, este bacilo em forma humana que destrói nossa instituição por dentro, qual um cancro a roer-lhe as células, de modo que limitar-nos- emos a expor os mais comuns.
Incapaz de polir a Pedra Bruta que carrega chumbada no pescoço desde o dia em que nasceu, de aprimorar-se moral e intelectualmente, de lutar para subtrair-se das trevas da ignorância e dos vícios que corrompem o caráter; de assimilar conhecimentos maçônicos úteis, sadios e enobrecedores, para na qualidade de Mestre poder transmiti-los aos Aprendizes e Companheiros, o que faz o nosso personagem? Simplesmente coloca barreiras em seus caminhos, de modo a retardar-lhes o progresso! Ao invés de estudar a Maçonaria, para poder contribuir na formação dos Aprendizes e Companheiros, de que modo ele procede? Veda a discussão sobre assuntos com os quais deveria estar familiarizado, fomentando apenas comentários sobre as vulgaridades supérfluas do seu cotidiano! Ao invés de encorajar o talento dos mesmos, de ressaltar suas virtudes e estimular o seu desenvolvimento, o que faz ele? Procura conservá-los na ignorância de modo a escamotear a própria! Ao invés de defender e ressaltar a importância da liberdade de expressão e da diversidade de opiniões para a evolução da humanidade, como ele age? Censura arbitrariamente aqueles cujas idéias não estejam em harmonia ou sejam contrárias às suas! Ao invés de fomentar debates sobre temas de importância singular para o bem da loja em particular e da Maçonaria em geral, como age ele? Tenta impedir a sua realização por carecer de atributos intelectuais que o capacitem a participar deles! E, nos que raramente promove, como se comporta? Considera somente as opiniões daqueles que dizem “sim” e “sim senhor” aos seus raramente edificantes projetos!
Tal como o maçom supersticioso, este infeliz em cujo peito bate um coração cheio de inveja e rancor nutre ódio virulento e indissimulado pela liberdade de expressão, que constitui um dos mais sagrados esteios sobre os quais repousam as instituições democráticas do mundo civilizado, uma das bandeiras que a Maçonaria hasteou no passado sobre os cadáveres da intolerância, da escravidão e da arbitrariedade.
Dos atos indecentes mais comumente praticados por este falsário, o que mais repugna é vê-lo pregando “humildade” aos irmãos em loja, em particular aos Aprendizes e Companheiros, coberto da cabeça aos pés de fitões, jóias e penduricalhos inúteis, qual uma árvore de natal. Outro é vê-lo arrotando, em alto e bom som, ter “duzentos e tantos anos de Maçonaria” e exibindo o correspondente em estupidez e mediocridade. O terceiro é vê-lo trajando aventais, capas, insígnias, chapéus e colares, decorados com emblemas que lembram tudo, exceto os compromissos que ele assumiu quando ingressou em nossa sublime e veneranda instituição.
Cego, ignorante e vaidoso, nosso personagem não percebe o asco que provoca nas pessoas decentes que o rodeiam.
Como já foi dito, a Maçonaria serve apenas de vitrine para ele. Como não é possível permanecer sozinho dentro dela sem a incômoda presença de outros impostores –os quais não têm poder suficiente para enxotar–, ele luta ferozmente para afastar todo e qualquer novo intruso, imitando alguns animais inferiores aos humanos na escala zoológica, que fixam os limites de seus territórios com os odores de suas secreções e não toleram a presença de estranhos. Qualquer irmão que comece a brilhar ao lado desta criatura rasteira é considerado por ela inimigo. A luz e o progresso do seu semelhante o incomoda, fere o seu ego vaidoso. Por este motivo tenta obstaculizar o trabalho dos que querem atuar para o bem da loja; por isso recusa-se a transmitir conhecimentos maçônicos (quando os possui) aos Aprendizes e Companheiros, sobretudo aos de nível intelectual elevado, ou os ministra em doses pífias, para que futuramente não sejam tomados como exemplos e ofusquem ainda mais a sua mediocridade. Um maçom exemplar, íntegro, que cumpre rigorosamente os compromissos que assumiu quando ingressou em nossa Instituição, não raro converte-se em alvo de suas setas, pois seus olhos míopes não conseguem ver honestidade em ninguém; sua mente estragada o interpreta como potencial “concorrente”, que nutre interesses recônditos semelhantes aos seus.
O maçom arrogante mal conhece o significado de nossas belas e simples alegorias. Se as conhece, as despreza. Sua mente acha-se preocupada unicamente com o sucesso de suas empreitadas, em encontrar maneiras de estar permanentemente ao lado das pessoas cujos postos ambiciona. Fama e poder." - Maçonaria Feminina, Áurea Campopiano.'. [Eco e Narciso, de John William Waterhouse, 1903]

Do “conhece-te a ti mesmo” ao “torna-te o que tu és”: Nietzsche contra Sócrates em Ecce Homo.


A partir de uma passagem interessante da autobiografia do filósofo (Nietzsche), trabalharemos dois imperativos gregos, o “Conhece-te a ti mesmo”, do oráculo de Delfos, e o “Torna-te o que tu és”, do poeta Píndaro. Ambos, quando trabalhados a partir da língua grega, se revelam ipsis verbis, e abordam um aspecto muito caro do pensamento de Nietzsche, porque tratam do movimento, do vir a ser. Essa abordagem é tratada na perspectiva da rivalidade de Nietzsche com Sócrates.
Como compreender a máxima de Píndaro, o «Torna-te o que tu és.»? A frase, além de aparecer no subtítulo da obra em questão, aparece, no trecho mencionado, contraposta à outra máxima grega: a máxima de Delfos, atribuída ao oráculo da cidade de Delfos, mas também atribuída a Sócrates. Esta consciência da ignorância está expressa na frase de Sócrates “Só sei que nada sei” é o que permite aproximarmos a máxima do oráculo - o “conhece-te a ti mesmo”, à figura de Sócrates. Em vez de ignorar a própria ignorância, compraz-se em reconhecê-la. Daí a sua sabedoria.
A palavra grega para conhecimento é Gignosko. A máxima de Delfos assim diz: «Gnosi seautón». A primeira palavra é um verbo. O radical da palavra em questão é gen (ao formar a palavra gignosko, está também ligado a outra palavra: gignomai, vir a ser, tornar-se). Trata-se de uma extensa raiz de palavras, todas ligadas a geração, nascimento, origem, linhagem e família. 
A palavra grega gignosko está ligada ao vir a ser pelo radical gen. O sentido socrático para o conhecimento desliga-se desse vir-a-ser, gignomai. Se entendermos que o gen se refere a tudo que nasce e perece e devém no tempo, a postura socrática está alçada pela possibilidade que negue o tempo e, com isso, negue o vir-a-ser. O conhecimento para Sócrates é o conhecimento da imortalidade da alma: aquilo que é, ou seja, que não nasce nem perece. 
A palavra “tornar” está ligada, através do radical gen, a outro verbo, “conhecer”. 
O radical gen, por sua vez, diz-se de tudo aquilo que nasce e perece. A máxima “torna-te o que tu és” é atribuída a Píndaro (o poeta que cantou as Odes Píticas). O imperativo da sua sentença “torna-te aquilo que és” foi cantado em função das façanhas de um desportista vencedor. 
Então o que é que, além de uma palavra com semântica valiosa para os nossos pensamentos, a máxima de Píndaro nos pretende dizer? 
Terá tudo a ver com o acto heroico. Quem é o herói e como se constitui o acto heroico? 
A sentença: «Genói oíos essí matón», torna-te (faça-se) o que (qual) tu és, – eis aqui o radical gen que tanto nos diz. 
Fica agora mais clara a aproximação entre a sentença de Delfos e a de Píndaro. O verso de Píndaro é quase uma paráfrase do Oráculo. Se relacionarmos a segunda parte de ambas as frases, percebemos que há semelhanças entre o “quem tu és” e o “a ti mesmo”. O subtítulo de Ecce Homo diz o seguinte: «wie man wird was man ist», ou seja, “como alguém se torna o que [se] é”. 
A frase “torna-te o que tu és” não relega a noção de vir-a-ser com algo que nunca é, mas antes, de maneira paradoxal une o ser e o vir-a-ser. O conceito de amor fati é a tradução para essa relação do homem com o destino. Amar o destino nesse sentido não é meramente aceitar o destino, mas jogar com ele. Amar o destino não é querer ser amado, querer para si poder, domínio, força, mas jogar, agir, com o futuro, com o movimento deveniente. É “amar os desacertos da vida, os momentâneos desvios, e vias secundárias”. O devir é, por isso, identificado ao ser, e não separado dele. Essa compreensão aproxima-nos da figura de Heráclito, ao jogo da criança apresentado no fragmento DK 52: “Tempo é criança brincando, jogando; de criança o reinado”. 
Pensar o tempo foi a última e a mais difícil tarefa de Nietzsche. O homem joga com o tempo na medida em que se compreende nele. Jogar é tomar parte do tempo, é querer o tempo. Nas palavras de Ecce Homo, é a citação de Píndaro que sugere a aproximação entre o vir a ser do tornar-se e o que é. Tornar-se o que se é, é a fórmula de Nietzsche para uma filosofia que pensa o futuro no presente. A filosofia de Nietzsche move-se por isso numa compreensão cósmica, em que compete ao homem jogar. A obra especificamente genial sob esse aspecto é Zaratustra que faz referência para o que está por vir, num constante elogio ao movimento “para a frente”. “Não pode a vontade querer para trás; não pode partir o tempo e o desejo do tempo – é esta a mais solitária angústia da vontade” (ZA/ZA, II, “Da Redenção”). Há, contudo, que entender que esse “para a frente” do tempo não é pensado separadamente com a eternidade. Se "Assim falou Zaratustra" e as outras obras de Nietzsche são marcadas pela referência e elogio ao tempo que passa, não esqueçamos que Nietzsche é também um entusiasta do eterno. O eterno e o passageiro, o ser e o devir, o tornar-se e o que é, mostram que Nietzsche não vê o mundo como uma dicotomia irreconciliável, mas como uma produção incessante no tempo. Tempo esse que não depende do homem, mas cuja grandeza deste depende de se identificar àquele A ordem dos acontecimentos não é medida pelo mero possível, distinto do efetivo, nem pela conjectura. Todo o pensamento que joga com conjecturas interpreta o já acontecido como possível de ter sido evitado, logo ele pensa o futuro na mesma medida. 
A ponderação e a conjectura não são conteúdos do pensamento de Nietzsche, pois ele acredita que toda a existência humana ou não humana está situada numa irreversibilidade incalculável e inviolável, que, por vezes, ele denomina de "acaso". A palavra "acaso" denomina o que não tem causa, o que é sem causa. O problema é que Nietzsche apresenta uma compreensão da vida e da existência muito além de um mero acaso, sem cair nas garras da finalidade. Ele eleva a compreensão humana do todo ao patamar do necessário sem determinar o conteúdo ou a causa dessas finalidades, ou seja, sem o destituir da liberdade: “Quando vocês souberem que não há propósitos, saberão também que não há acaso: pois apenas em relação a um mundo de propósitos tem sentido a palavra ‘acaso’”. 
Talvez como nota conclusiva seja correta a afirmação de que filosoficamente, Nietzsche, assim como Sócrates, conduziu à aporia todos os saberes humanos. Vale também como afirmação certeira a de que o que se mantém na disposição cósmica da obra de Nietzsche permanece aquela mítica grega, em que as linhas do destino são traçadas e decididas para além da vontade dos homens ou dos próprios deuses. O que equivale a conferir aporia à compreensão humana.
[Do “conhece-te a ti mesmo” ao “torna-te o que tu és”: Nietzsche contra Sócrates em Ecce Homo, Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche – 2º semestre de 2012 – Vol. 5 – nº 2]

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Ainda, a importância de dizer NÃO!



«Dizer Não

Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua não passa pelo decreto arbitrário dos outros.

Diz NÃO à ordem das ruas, se ela é só a ordem do terror. Porque ela tem de nascer de ti, da paz da tua consciência, e não há ordem mais perfeita do que a ordem dos cemitérios.

Diz NÃO à cultura com que queiram promover-te, se a cultura for apenas um prolongamento da polícia. Porque a cultura não tem que ver com a ordem policial mas com a inteira liberdade de ti, não é um modo de se descer mas de se subir, não é um luxo de «elitismo», mas um modo de seres humano em toda a tua plenitude.

Diz NÃO até ao pão com que pretendem alimentar-te, se tiveres de pagá-lo com a renúncia de ti mesmo. Porque não há uma só forma de to negarem negando-to, mas infligindo-te como preço a tua humilhação.

Diz NÃO à justiça com que queiram redimir-te, se ela é apenas um modo de se redimir o redentor. Porque ela não passa nunca por um código, antes de passar pela certeza do que tu sabes ser justo.

Diz NÃO à verdade que te pregam, se ela é a mentira com que te ilude o pregador. Porque a verdade tem a face do Sol e não há noite nenhuma que prevaleça enfim contra ela.

Diz NÃO à unidade que te impõem, se ela é apenas essa imposição. Porque a unidade é apenas a necessidade irreprimível de nos reconhecermos irmãos.

Diz NÃO a todo o partido que te queiram pregar, se ele é apenas a promoção de uma ordem de rebanho. Porque sermos todos irmãos não é ordenarmo-nos em gado sob o comando de um pastor.

Diz NÃO ao ódio e à violência com que te queiram legitimar uma luta fratricida. Porque a justiça há-de nascer de uma consciência iluminada para a verdade e o amor, e o que se semeia no ódio é ódio até ao fim e só dá frutos de sangue.

Diz NÃO mesmo à igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal.

E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade.» ~ Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'