quarta-feira, 21 de abril de 2010

Salazar e os milionários, de Pedro Jorge Castro


SALAZAR E OS MILIONÁRIOS, de Pedro Jorge Castro, a ler. (Prólogo)
Primeira metade da década de 50. 8 da noite de domingo. O momento reservado para os dois homens mais poderosos do país discutirem o destino de Portugal. No Palácio de São Bento ou no Forte do Estoril, Salazar, à beira dos 60 anos e a meio de 40 no poder, recebia Ricardo Espírito Santo, 11 anos mais novo. Além de dirigir o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, o banqueiro liderava a petrolífera Sacor, que esteve na origem da Galp, e controlava a seguradora Tranquilidade e as Sociedades Agrícolas do Cassequel e do Incomati, em Angola e Moçambique. As suas várias áreas de influência ajudam a explicar como se transformou
num conselheiro especial de Salazar para todos os assuntos relacionados com economia, política, diplomacia e artes — e acabou por se tornar também um dos melhores amigos do presidente do Conselho. Era muitas vezes Maria da Conceição (a Micas), a protegida de Salazar, que abria a porta de São Bento a RES: «Tenho hora marcada», dizia-lhe ao entrar, como se precisasse de justificar a sua presença, cumprimentando-a com um beijinho. Oferecia-lhe com frequência bonecas, chocolates e amêndoas na Páscoa. RES estacionava o carro no parque da residência oficial, pendurava o sobretudo no bengaleiro à porta de entrada e, se Salazar estivesse ocupado, aguardava na biblioteca junto ao seu gabinete, no rés-do-chão. As conversas decorriam no gabinete ou enquanto passeavam pelos jardins de São Bento. Quando terminavam, o ditador acompanhava o amigo até à saída. Estes encontros semanais constam do diário de Salazar (um livrinho de capa vermelha e letras douradas). A 14.Maio.1950, recebeu Ricardo Espírito Santo entre as 20h e as 20h45 e anotou: «Sua viagem e férias, saúde, alguma coisa de negócios».
Salazar saiu de Portugal 3 vezes — foi a Paris na juventude e 2 vezes à fronteira para se encontrar com Francisco Franco (o ditador espanhol). Aproveitava os relatos das deslocações dos outros para satisfazer a sua curiosidade sobre o mundo. E RES todos os anos fazia longas viagens para tratar de negócios (do banco ou da empresa de petróleos), por motivos de saúde (frequentava termas), de férias (era praticante habitual de esqui e golfe) ou em busca de peças de arte nos antiquários e nos leilões. Foi esse o tópico que Salazar fixou a 17.Dez.1950, depois do encontro de 1,5 h: «Dr. Ric. Espírito Santo - compras que fez em Roma de objectos de arte». A situação da Sacor, criada pelo Estado em 1938 para intervir no mercado dos combustíveis, era discutida na maior parte dos encontros. As entradas nas agendas de 1953-1954 revelam que falaram de «vencimentos dos administradores», de «conversas com ministro da Economia sobre terrenos de que a Sacor precisa» e de «como distribuir 37 500 contos a colocar entre portugueses [num aumento de capital]». As relações com o romeno Martin Sain (o principal accionista da empresa de petróleo), eram alvo de grande atenção. Além de abordarem os temas importantes da Economia como o plano de fomento ou o estado do mercado de capitais, os grandes investimentos eram escrutinados e aprovados nestes encontros. Analisaram a criação da TAP em 1953, a lapidagem de diamantes em Portugal, o apoio à empresa de Siderurgia, que António Champalimaud começou a negociar com o Governo em 1952, e a fundação da sociedade de milionários que iria financiar aquilo a que Salazar chamava «o novo grande hotel de Lisboa» — o Ritz, que só seria inaugurado em 1959, quatro anos depois da morte do banqueiro. A folha de 3.Março.1953 revela que Salazar recebeu RES e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Cunha, às 7,5 da tarde e que discutiram a prenda que o governante deveria oferecer a Franco, no encontro seguinte com o generalíssimo espanhol. 1 h depois, o ministro saiu mas o banqueiro ficou. Durante mais 1 hora, até às 21h30, relatou a Salazar os bastidores da inauguração do seu museu de artes decorativas, cuja cerimónia decorrera nessa semana, intencionalmente a 28 de Abril, para homenagear o presidente do Conselho no seu dia de aniversário.
O costume estava tão enraizado que quando o ditador cancelou um dos encontros semanais, em 1951, RES manifestou por carta a sua grande tristeza. «Tenho muita pena de não ir aí hoje, a nossa conversa dominical é para mim o maior prazer da semana, mas obedeço na esperança de que serei compensado.» E, em Abril do ano seguinte, quando, por estar na Suíça, foi o empresário a não poder comparecer, enviou outra mensagem. Sugeria que Salazar recebesse Mário de Sousa, administrador do Banco Fonsecas, Santos & Viana, para discutir novas medidas relacionadas com as exportações, mas frisava a importância que atribuía a estes encontros: «Eu agradeço (e não lhe levo a mal!) se lhe dispensar meia horazita de um fim de tarde de domingo, desses fins de tarde que eu tanto aprecio e que quase sempre são o melhor prémio para mim, de uma semana de trabalho! Como vê nem de longe o deixo em paz! Despediu-se com um post-scriptum que comprovava a sua intimidade com António Ferro, embaixador em Berna e antigo responsável pelos serviços de propaganda nacional, e com as duas mulheres que viviam na casa do ditador — a governanta e a pupila: «P.S. — Peço o favor [de] dar minhas lembranças a dona Maria, e Maria Antónia. O Ferro gostou muito da carta de vossa excelência.» Quando estava fora do país, o banqueiro esforçava-se por manter a comunicação de domingo com o governante, que anotava estas chamadas no diário com igual deferência: «Pelo telefone, vários e dr. Ric. Esp. Santo». Em 1954, RES acompanhou o presidente da República, Craveiro Lopes, numa viagem de barco a Angola e São Tomé e Príncipe. Esteve fora 7 domingos: apenas num não conseguiu enviar telegramas dirigidos a «sua excelência o presidente do Conselho» e assinados, simplesmente, Ricardo. Nos 6 que enviou, a falta que sentia dos encontros com o ditador foi sempre manifestada de forma crescente: «Sigo bem mas com saudades», escreveu no segundo, a 31 de Maio; a 20 de Junho, manifestava-se «cheio de saudades»; na mensagem do domingo seguinte lia-se: «As saudades são cada vez mais maiores»; e no último notava-se o alívio por estar quase a regressar: «Vou mais contente a pensar que se os deuses nos forem propícios estarei aí no próximo domingo e poderei matar as saudades que já pesam no meu coração. Gostei muito de o ouvir e espero que este já o encontrará no forte.» Neste telegrama, Salazar anotou a azul a instrução: «Saber quando chega o barco». Um funcionário responderia a lápis: «Chega domingo, dia 11 [de Julho], ao meio-dia». E foi nesse domingo às 19h15 que se reencontraram, no forte de Santo António, no Estoril. Até às 21 h, Salazar recolheu informações sobre o negócio do açúcar e «outros assuntos de África», e, claro, quis saber tudo sobre o que ficou descrito no diário como uma «viagem formidável».
SALAZAR E O DINHEIRO - As pequenas agendas de bolso manuscritas são preciosos indicadores sobre os relacionamentos de Salazar. A de 1954, por exemplo, tem cerca de 100 entradas, entre telefones e moradas. Muitas de mulheres: das senhoras com quem teve envolvimentos amorosos — Christine Garnier, namorada da altura, Mercedes de Castro Feijó, Ernestina Afonso de Barros e Felizmina Oliveira, a primeira namorada, que lhe enviava relatórios a denunciar os inimigos do regime em Viseu; das amigas com quem se correspondia ou que eram visitas habituais da casa, entre as quais Jenny Aragão Teixeira, Fernanda Jardim e Arminda Lacerda; e ainda uma dezena de meninas austríacas que chegaram a conhecer e a corresponder-se com Salazar e que pertenciam a um grupo de 5000 crianças acolhidas por famílias portuguesas depois da II Guerra.
Está na agenda a Presidência da República, o Patriarcado (sem referências ao amigo cardeal Cerejeira, mas com menção do padre Carneiro Mesquita, que rezava missa na Residência Oficial), D. Duarte de Bragança (pai de D. Duarte Pio), os ministros da Defesa, da Presidência, dos Negócios Estrangeiros, os embaixadores mais próximos (Marcelo Mathias e José Nosolini), o seu amigo Mário Figueiredo, Álvaro de Sousa, do Banco de Portugal, Duarte Amaral (delegado do Governo na Sacor e pai de Freitas do Amaral) e, claro, os números 60 483, para ligar a RES em Lisboa, e 143, para Cascais.
O banqueiro surgia também na restrita lista de datas de aniversário anotadas, onde era aliás o único homem, a que se juntavam 5 mulheres - Christine Garnier, as infantas D. Maria Antónia e D. Filipa, Maria Luiza Salvação Barreto e Minda (diminutivo de Arminda Lacerda).
Domingo era o dia em que normalmente Salazar tinha audiência marcada com Craveiro Lopes, presidente da República entre 1951-1958. As reuniões começaram por decorrer entre as 11h30 e as 13 h, mas a sua duração foi encurtando. «A partir do momento em que se gerou um clima de menor cordialidade e confiança entre os dois, tornou-se evidente o propósito do chefe do Governo: havia que chegar o mais tarde possível para sair quanto antes. O pretexto era sempre os rigores de pontualidade da senhora D. Berta...», escreveu Manuel José Homem de Mello. Salazar sabia que a primeira-dama era inflexível com a hora do almoço.
Em 11.Set.1954, o presidente estava na Cidadela em Cascais quando Salazar, que estava no forte do Estoril, lhe enviou uma mensagem que evidencia a pouca vontade de ir ao seu encontro: «Como Vossa Excelência não estará livre a partir do meio-dia, eu poderia passar pela Cidadela pelas 11 horas. Entre as 11 e o meio-dia se poderiam, querendo Vossa Excelência, trocar algumas impressões. Será porém necessário que Vossa Excelência tivesse a bondade de mandar-me buscar, pois estou sem carro.» Não conseguiu furtar-se ao encontro. E a falta de viatura terá soado a fraca desculpa. Nesta altura, o ditador tinha à disposição um Cadillac 75, que era o seu transporte habitual, e um Mercedes à prova de bala, que achava muito grande e vistoso e raramente usava. Havia ainda um carro para os secretários, uma carrinha da residência oficial, e 1/2 automóveis da PIDE que o seguiam para todo o lado. «No Cadillac, tive a alegria de ser o primeiro que telefonou para casa do próprio carro, a pedir que pusessem o almoço na mesa», revelou Franz Langhans, secretário da Presidência do Conselho, num depoimento para o livro Salazar visto pelos seus próximos, onde conta também que o motorista conduzia frequentemente a mais de 130 Km/h, mesmo quando o presidente do Conselho seguia no banco de trás.
A 4.Jul.1937, o chefe do Governo foi alvo de um atentado perpetrado por um grupo de anarquistas, quando saía do carro para ir assistir à missa na capela particular de um amigo, Josué Trocado, na Av. Barbosa du Bocage. Escapou sem ferimentos mas começou aí a desenhar-se a necessidade de deixar a sua casa na R. Bernardo Lima para passar a habitar uma residência oficial, junto ao Palácio da Assembleia Nacional. O Estado pagou então 1005 contos — que a preços de 2009 correspondem a € 845 mil — para expropriar a casa e o parque onde viviam 52 freiras, que tiveram de ser realojadas, segundo O Palacete de São Bento, livro editado pelo gabinete do primeiro-ministro. As obras de adaptação da residência ficaram a cargo da Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais, pertencente ao Ministério das Obras Públicas. Foram coordenadas pelo arquitecto António Lino e demoraram quase 2 anos. Salazar elaborou um manuscrito de 28 páginas (a que depois ainda acrescentou mais 13), com a descrição exaustiva do que precisava em cada divisão da casa, e uma nota de aviso logo a abrir: «O trabalho foi feito na orientação de nada modificar do traçado da casa e de não alterar as divisões existentes, aproveitando-se tudo o que existe com a maior economia.» Perguntava se o seu móvel poderia servir para chapéus na entrada da casa; na casa de banho previa uma banheira com água quente, aquecida pelo fogão a esquentador de gás, mas frisava: «Não é preciso comprar; instala-se o meu»; fez questão de levar a sua mobília de escritório para um gabinete no rés-do-chão, e a sua cama para o quarto onde viria a dormir, no 1º andar — «escolhido só por ser o mais silencioso da casa e o mais próximo da casa de banho», justificou. Franco Nogueira descreveu depois na biografia em 6 volumes do ditador: «No seu quarto fica uma ampla cama de pau-preto, sob um crucifixo na parede da cabeceira, e na mesa ao lado dispõe dois medalhões ovais, de marfim, com a efígie de seus pais.» Os telefones ficavam na mesinha-de-cabeceira.
As indicações de Salazar não esqueciam nenhum detalhe: no «escritório habitual de trabalho e de receber (...) falta a carpete (...) que deve ser adquirida em relação com a mobília e a cor das paredes»; nos sanitários: «Deve prever-se que as portas possam ser fechadas por dentro da casa de banho. Nesta não precisa de haver mictório nem gás para aquecedor — mas deve prever-se água quente, aquecida no fogão»; «Sendo possível e não caro, conviria que as casas de banho não fossem inteiramente iguais na cor do material empregado para forrar as paredes e o pavimento.»
Neste manual para a equipa do Ministério das Obras Públicas, deu instruções para que a mobília da sala onde se reunia o conselho de ministros não fosse luxuosa: «A decoração da sala, cortinados, etc. devem ter em conta que a sala se destina principalmente a trabalho intelectual.» Estava disposto a transportar o rádio da sala do conselho para o escritório e quis que os CTT ligassem a mesma antena às duas divisões: «Não é necessário que pudessem funcionar duas telefonias; mas que a telefonia pudesse funcionar em dois lugares.» E quando pensou no vão de escada, Salazar foi quase premonitório: «Terá de ser estudado o aproveitamento deste vão (talvez um divã encimado por pequena prateleira de estante para livros ligeiros?) — pode ficar um cantinho agradável.» Tornou-se de facto um dos seus recantos preferidos, onde tomava o pequeno-almoço e lia os jornais e algumas cartas particulares. Também se ocupou das dependências da residência. O motorista teria de pagar renda e a sua casa deveria «ser mantida no maior estado de limpeza e arrumação». E deixava um aviso: «A vida na casa não pode ser barulhenta e desordenada. Tem de haver ordem e sossego.» Descrevia como deviam ser os quartos e casa de banho do criado, os espaços para os coelhos, as galinhas, os pintainhos e o depósito de lenha, e impôs a criação de uma entrada de serviço pela Calçada da Estrela: «Eram inevitáveis encontros desagradáveis (as pastas dos ministros e as sacas do carvão).»