sábado, 24 de abril de 2010

Percursos anónimos de Abril


(Maria Manuela Cruzeiro, Rui Bebiano, Anos Inquietos. Vozes do Movimento Estudantil em Coimbra (1961-1974)). No panorama dos estudos relativos ao movimento estudantil português — e em particular coimbrão — uma interessante contribuição de Rui Bebiano em colaboração com Maria Manuela Cruzeiro. Ambos os autores têm dedicado grande parte do seu trabalho à análise da oposição à ditadura e aos seus protagonistas.
Nos relatos dos protagonistas das vozes do movimento estudantil é a vivência do «algures», quer se trate do «além-mar», quer de outras cidades portuguesas ou ainda de outros países europeus, para os quais vários protagonistas viajaram com uma bolsa de estudo, com o grupo do teatro ou para fugir ao serviço militar e à guerra. Este «algures» surge como um aspecto fundamental no percurso de evolução e de tomada de consciência política dos protagonistas, pelo contacto com ideias, situações e pessoas que o meio de Coimbra, ainda sufocado pelo estrito controlo social, político e cultural do regime, nunca teria veiculado.
Anos Inquietos não é uma obra analítica ou o resultado de uma investigação, mas é uma narração em que as vozes dos protagonistas descrevem percursos de vida nos quais a universidade, mas sobretudo a crise académica, constitui o epicentro. Trata-se de 7 entrevistas conduzidas por Maria Manuela Cruzeiro entre 2004-2005, feitas a protagonistas do movimento estudantil de Coimbra desde 1961 até 1974, um período de tempo que abrange as três grandes crises académicas de 1962, 1964-1965 e 1969. A primeira parte de cada entrevista é dedicada a fornecer um perfil do entrevistado antes do seu contacto com a realidade académica e com o movimento estudantil, através de questões relativas às suas origens sociais e vida familiar, passando depois ao ingresso na faculdade e, para os que não nasceram em Coimbra, o embate com a cidade.
A parte relativa ao associativismo estudantil é a mais desenvolvida, sobretudo no que respeita à análise dos percursos de socialização política que levam ao activismo, os quais talvez constituam o objecto de estudo da obra. Trata-se de um processo que, nalguns casos, é coerente com a tradição de oposição familiar, noutros representa algo de completamente inovador quanto às próprias raízes. Fundamental é o exemplo das grande figuras, quase míticas, da resistência portuguesa (como Álvaro Cunhal), e a exigência de abertura do espaço cultural e social — sufocado pela permanência de códigos de comportamento conservadores e pela rigidez das normas autoritárias, a par da influência dos acontecimentos e da literatura política internacional.
As entrevistas aprofundam ainda as consequências pessoais da participação política — sempre mais dramáticas para os rapazes, que, além da prisão, podiam sofrer a guerra colonial — e, por último, os percursos profissionais e políticos depois do 25 de Abril, evidenciando os elementos de continuidade quanto às escolhas ideológicas feitas durante os anos do activismo estudantil.
Os critérios de selecção dos entrevistados não são explicitados, mas é evidente que os autores procuraram incluir no grupo figuras muito diferentes entre si — quer quanto à própria actividade política, quer quanto às origens familiares e à proveniência —, conseguindo reconstruir, através de uma abordagem qualitativa e da metodologia da história oral, algumas das possíveis trajectórias de formação política dos protagonistas do movimento estudantil.
Os entrevistados têm origens familiares e provêm de lugares diferentes, com uma idade entre os 56 e os 60 anos, e só em alguns casos participaram na mesma fase da crise. É natural que a idade pessoal tenha uma influência no foco da entrevista, pois a luta académica em Coimbra mudou durante toda a década de 60 e, ainda que os elementos comuns sejam muitos, a crise de 1962 foi algo de diferente, por exemplo, da de 1969. Entre os elementos de continuidade emerge claramente a repressão, quer através de cargas de polícias contra manifestantes, quer através de verdadeiras invasões do espaço universitário e da prisão dos activistas. Comuns são ainda algumas formas de luta, como o «luto académico» e a greve aos exames, assim como a constante da exigência de defesa da autonomia dos organismo associativos dos estudantes, em primeiro lugar da Associação Académica. Quase em todos os casos é a limitação desta autonomia por parte do governo a desencadear a crise. Ocorreu em 1962, quando a contestação — que já tinha começado nos últimos meses de 1961, com a prisão de vários estudantes por terem manifestado posições contra a guerra colonial — eclodiu em Março depois da proibição do Dia do Estudante. A violenta opressão exacerbou e ampliou o movimento, que, em Junho, chegou a pôr em causa o DL n.º 40 900, de 1956, o qual determinava um controlo do governo sobre a eleição dos dirigentes associativos.
Voltando à obra, são duas as mulheres entrevistadas: Eliana Gersão e Fátima Saraiva.
A primeira, originária de Coimbra, licenciou-se em Direito numa altura em que os estudos jurídicos ainda eram considerados uma questão masculina. Participou na crise académica de 1962 e na sua formação teve bastante importância o meio familiar, caracterizado por uma grande abertura cultural, ainda que não directamente política. Como muitos outros representantes do movimento estudantil, começou o seu percurso numa associação católica, no seu caso a JUC, afastando-se depois para entrar no conselho feminino da AAC e para integrar o Centro de Iniciação Teatral da Universidade de Coimbra.
Fátima Saraiva, geógrafa, provém de uma família bastante conservadora de Castanheira de Pêra. Frequentou o liceu em Lisboa, onde ampliou os seus horizontes culturais, uma abertura importante no seu percurso de adesão a valores e ideais políticos opostos aos do seu meio familiar. No ambiente coimbrão, destacou-se por ir contra as regras «adequadas» para uma rapariga — como, por exemplo, não «frequentar os cafés» — e participou nas crises de 1964 e de 1969.
Os relatos de Fernando Martinho e Carlos Baptista são significativos pelo esboço da África que trazem. Nascidos em famílias, de meio social diferente, de colonos portugueses, ambos sublinham a maior abertura cultural das colónias, onde o controlo do regime, pelo menos até ao começo da guerra colonial, não chega a ser tão eficaz como na metrópole. Esta abertura e a experiência diária do racismo e da discriminação dos negros foram fundamentais para a formação política, assim como o contacto com militantes dos movimentos de libertação.
Em Coimbra, onde chegou em 1961, Fernando Martinho integrou uma célula do MPLA que tinha como objectivo recrutar jovens angolanos para o movimento de libertação e organizar uma rede de deserção. Empenhado nas actividades da Associação Académica, foi preso pela PIDE durante alguns meses. Como outros dois entrevistados, Pio Abreu e José Cavalheiro, sofreu a experiência da guerra colonial, embora tenha conseguido evitar um envolvimento directo nas acções militares graças a sua profissão de médico.
Médico, no seu caso psiquiatra, é também Pio Abreu, originário de Santarém, onde nasceu, numa família bastante católica e conservadora, em que a política era uma coisa proibida. Chega a Coimbra em 1962, em plena crise académica, e liga-se, como Fátima Saraiva, ao Conge, uma estrutura que será fundamental na crise de 1969. Também nesta entrevista a experiência da guerra na Guiné ocupa um lugar essencial, em que se salienta a forte contradição entre a formação política do entrevistado e a participação num conflito que se baseava em fundamentos completamente opostos. Assim como Fernando Martinho e José Cavalheiro, Pio Abreu descreve a sua atitude de «boicote passivo» das acções militares, favorecida pela sua formação de médico, que sempre desenvolver segundo a sua própria ética contra a do exército.
José Cavalheiro, engenheiro, nasceu no Porto, numa família de esquerda que contribuiu para a sua formação política, no sentido do desenvolvimento de um espírito crítico face à verdade imposta pelo regime. Chegado a Coimbra em 1968, teve um papel de destaque na crise que eclodiu no ano seguinte, durante a qual foi preso e enviado para a tropa, primeiro em Mafra e depois em Moçambique.
Na crise de 1969 participou o pediatra Luís Januário, o mais jovem entre os entrevistados. Nasceu em Coimbra, numa família com uma tradição de oposição ao Estado Novo - o avô materno, anarquista, morreu no Tarrafal, e o pai, compagnon de route do PCP, sofreu alguns meses de prisão em 1962. A actividade política de Luís começou no liceu e continuou na Faculdade de Medicina, onde pertenceu, antes de aderir ao PCP, aos grupos mais radicais, sobretudo trotskistas, apelidados de «contestas» pelos outros estudantes. Interessante é a visão que o entrevistado traz dos organismos estudantis, fundamentais nas outras crises, como o Conselho das Repúblicas, que, em 1969, já aparece como um grupo de «veteranos dos copos, uma coisa arcaica».
É com esta entrevista que nos apercebemos da clivagem geracional que separa os protagonistas das crises de 1962, 1964-1965 e 1969, em que todas as temáticas são renovadas também à luz dos acontecimentos internacionais e sobretudo do Maio francês. Diferente é a vivência do dia a dia do activismo, a dimensão quase «lúdica», festiva, da política, que não se conhecia antes. Entre os protagonistas das crises anteriores há quem defina o movimento de 1969 como «uma bolha», um acontecimento folclórico, contestando-lhe o abandono da luta de classe e a ingénua confiança na força revolucionária do «estudantariado». Mas, se o movimento mudou, a repressão continuava a mesma, e Luís Januário, preso pela PIDE, no dia em que o homem chegou à Lua estava numa cela, uma situação que, significativamente, também outros entrevistados lembram. Esta imagem de forte carga simbólica resume o conteúdo mais profundo das várias experiências dos entrevistados, a luta contra o obscurantismo social, cultural e político que o regime perpetuava, procurando bloquear o poderoso e irreversível processo de mudança e modernização que estava a envolver também a sociedade portuguesa.