sábado, 24 de abril de 2010

Visões de Abril, por Vasco Lourenço



Vasco Lourenço diz, com graça, que soube do 25 de Abril pela "tia Aurora". Estava ao lado de Melo Antunes quando o golpe de Estado foi colocado em marcha. Foi o autor do programa do MFA que lhe trouxe o famoso telegrama que dizia "Tia Aurora segue EUA"... Era o sinal para dois conspiradores que o regime tentou pôr ao largo antes do 25 de Abril.
Consta que quando Melo Antunes lhe trouxe um telegrama que dizia "Tia Aurora segue EUA. 25 0200. Um abraço primo António" lhe deu uma grande palmada e acrescentou: "Calha bem que estou de oficial de dia". Era o anúncio do desencadear do 25 de Abril. "Preparámo-nos, eu chamei os vários militares envolvidos na conspiração, alertei o comandante da outra unidade, de artilharia, que também estava envolvido connosco, que ia ser nessa noite e que estivesse preparado. Combinei com o Melo Antunes, ele foi para casa, como se tudo estivesse a correr normalmente, dei-lhe a minha pistola de oficial de dia, passei a fazer serviço com pistola-metralhadora, procurando não dar muito nas vistas, e chamei o aspirante David Lopes Ramos, que não estava de prevenção, mas era o elemento de ligação que eu tinha com os oficiais milicianos. Alertei-o a seguir ao jantar: "Ouça lá, você sabe rezar?" e ele responde-me: "Porque é que me está a perguntar isso, meu capitão?". Eu insisto: "É que se soubesse rezar eu mandava-o rezar". Ele começa a ficar nervoso e diz-me: "Não me diga que é esta noite?". Ao que eu respondo: "É sim senhor." Pedi-lhe para alertar os oficiais milicianos."
"Sou chamado no dia 8 e o comandante da minha unidade diz-me: "Tenho aqui uma mensagem a transferi-lo para os Açores. Embarca amanhã". "Devem andar a brincar com o pagode", respondi-lhe eu. "É uma ordem, tem que seguir". "Mas porquê?". "Razões de serviço". Eu já estava denunciado há imenso tempo, vinha a ser chamado às entidades militares desde Outubro de 1973, precisamente porque estava detectado. Aliás tinha tomado a iniciativa de ir a São Bento entregar um abaixo-assinado ao Marcello Caetano, em finais de Setembro de 1973. Estava mais que detectado. Acontece que o poder soube, a posteriori, da reunião de 5 de Março [1974], soube que tinham sido lá tomadas decisões muito importantes, nomeadamente a de fazer um golpe militar. E decidiu retaliar."
"No âmbito da conspiração houve três reuniões particularmente importantes: a do 9 de Setembro [1973], que podemos considerar como a reunião constitutiva do Movimento, a de 1 de Dezembro em Óbidos que é a estruturação do Movimento, a sua definição e consolidação, e há a reunião de 5 de Março [1974], em Cascais. É a reunião decisiva, onde se aprova um documento, "O Movimento, as Forças Armadas e a Nação", que define as linhas programáticas do que vem a ser o Programa do MFA. É decidido fazer o golpe militar e são escolhidos dois chefes, a convidar, para liderar o processo: o Costa Gomes, com mais votos, e o Spínola, que eram ainda o chefe e o vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Eles tinham sido escolhidos em Óbidos e foram ali confirmados, mas com a condição prévia de aceitarem o programa político que iríamos elaborar, podendo ajudar a moldar esse programa, mas sem o alterar nas linhas essenciais."
Havia ainda outro golpe em marcha, que era o do Kaúlza de Arriaga. "O do Kaúlza tinha aparecido em Novembro/Dezembro e era de três generais: o Kaúlza, o Silvino Silvério Marques e o Troni." O que leva a que o grupo dos milicianos se dirija para o general Spínola e não para o Kaúlza de Arriaga é o facto de esse grupo [dos milicianos], "tenho que lhes fazer essa justiça, independentemente da motivação que os faz reunir ser de natureza corporativa, tem como pano de fundo a afirmação como militares democráticos. Não se vendiam facilmente a um projecto de extrema-direita que era o do Kaúlza de Arriaga e, logicamente, vão à procura dos semelhantes."
Pode dizer-se que no final de 1973 há quatro forças em presença: a do Governo remodelado na medida do seu possível, a dos generais liderada pelo Kaúlza, a do general Spínola..."E a nossa, mas a do Spínola só aparece depois. Há, de facto, a dos "espúrios", que não estão ligados a nós. Nós somos alertados para esse contacto com o coronel Frade Júnior e decidimos empatar o homem, enquanto lhe pedíamos o programa político do Kaúlza. Nessa reunião do dia 12 o Frade Júnior aparece a propor claramente um golpe militar, com os quatro generais e a dizer que há dois generais que têm que ser "eliminados", o Costa Gomes e o Spínola e explica porquê.
O Costa Gomes fora o responsável pela Abrilada do Botelho Moniz [Abril de 1961], que o Kaúlza fizera abortar e para mostrar isso, apresenta aos dois elementos do Movimento que lá estavam, o Sousa e Castro e o Nogueira Freire, um relatório da Abrilada em que fica claro o papel patriótico do Kaúlza de Arriaga e não patriótico do Costa Gomes. Quanto ao Spínola também tem que ser "eliminado", por quanto tendo sido convidado para participar dissera que "não participava", porque se quisesse fazer um golpe fazia-o sozinho, não precisava do Kaúlza porque disse, "só à minha conta tenho a Calçada da Ajuda", ou seja as forças de Cavalaria e a GNR. O Frade Júnior diz que já tinham sobre rodas 200 ex-páraquedistas da área de Setúbal, tipos que fizeram a guerra e estão prontos a arrancar à nossa ordem, "precisamos por isso do vosso envolvimento" e por aí for a, na operação de aliciamento. Decidimos denunciar essa operação, abortá-la desde logo."
"Tinha que ser abortado imediatamente. No dia 14 eu estou a falar com o Costa Gomes, que não conhecia. Pedi-lhe uma audiência. Ele reagiu de um modo distante. Denunciei-lhe o golpe e ele responde-me "muito obrigado", "acho muito bem que fale com o António [Spínola]. Saí de lá a pensar: O que é isto, vem aqui um capitão que o chefe do Estado-Maior não conhece de lado nenhum, denuncia-lhe um golpe de Estado e ele reage convidando-me para tomar um cafézinho." Não é o coronel Fabião que fala com o Spínola "o Fabião telefona ao Spínola num sábado de manhã e pede-lhe um encontro. O Spínola quando me viu teve uma reacção de estranheza: "Você aqui?". "Vamos lá a esquecer o que se passou e vamos mas é tratar do que aqui me traz", disse eu. Ouviu-me e confirmou que tivera aquela conversa com o Kaúlza, mas reage dizendo: "Esperem pelo meu discurso de tomada de posse [vice-chefe de Estado-maior General] lá para meados de Janeiro". O que nos deixou pior que estragados, a mim e ao Fabião, e nos levou a fazer a denúncia pública do golpe por nós próprios. Ao arrepio da vontade do Spínola, embora com o Fabião a dizer que quando o fizer 'ninguém vai acreditar que não o faça a pedido do "Velho"' - era como eles tratavam o Spínola, enquanto nós, os que não éramos spinolistas o tratávamos por "Caco" - e ele 'nunca mais me vai perdoar que eu o faça sem ter previamente combinado com ele'. Dois dias depois, na segunda-feira, o Fabião, no Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços, onde participava num curso para majores, com mais de 200 majores presentes, o Fabião pede para fazer um aviso ao curso, o professor dá-lhe autorização, convencido que se trata de uma informação escolar e ele denuncia o golpe do Kaúlza. Uma bomba na sala não teria produzido maior efeito. O curso foi interrompido, os majores mandados regressar às unidades, o Fabião foi corrido para Distrito de Recrutamento de Braga."
Sobre se Costa Gomes conheceu e alterou o Programa do MFA, diz que "Houve contactos do Vítor Alves e da comissão que ele coordenava com o Costa Gomes, mas penso que o Costa Gomes teve menos participação na discussão do que o Spínola. No dia 25 penso que tem influência, quando sugere que, nomeadamente em relação às colónias, não houvesse dissolução imediata da PIDE, porque eles colaboravam lá com os militares e a extinção podia influenciar as operações militares em curso. Acabou por ficar no Programa a não dissolução imediata da PIDE, o que serviu de pouco, porque a dinâmica que se instalou fez com que fosse extinta aqui e dissolvida logo a seguir nas colónias."
Voltando ao oficial de dia que em Ponta Delgada ouvia a rádio... "Eu estou nos Açores, desde o dia 15 e no dia 22 chega-me lá o Melo Antunes." Melo Antunes também vai castigado? "Sim e não. Vai numa situação mais caricata. Eu fui transferido compulsivamente, o que significa uma forma de pressão directa. O Melo Antunes tinha estado nos Açores nos anos 60, casara lá e vivia lá. Em 1969 pretendeu concorreu mesmo às eleições nas listas da oposição, pelo círculo dos Açores, o que a hierarquia militar não permitiu. A partir daí foi corrido dos Açores e nunca mais conseguiu lá ser colocado, apesar de ter feito um requerimento nesse sentido. Ora a seguir ao 5 de Março, eles sabem da participação do Melo Antunes na reunião de Cascais e informam-no que foi deferido o pedido que ele fizera há três ou quatro anos para ser colocado nos Açores. Ele bem protestou a dizer que "agora já não quero ir", mas é transferido para Ponta Delgada. Assim nos reunimos os dois no Quartel-General e preparámo-nos para intervir lá."
Face ao telegrama, a reacção foi a de pensar que "O pior cenário era se as coisas corressem mal em Lisboa. Aí, considerávamos que devíamos fazer uma espécie de escândalo nacional e fazer uma sublevação local. Tomávamos conta de Ponta Delgada e exigiríamos internacionalmente que libertassem os militares presos." Era uma atitude de certa maneira suicida, que já fora tentada sem êxito na Madeira, pelo general Sousa Dias. Mas podia ser que servisse de rastilho para atitudes semelhantes na Guiné e outros sítios e, assim, já não ficaríamos isolados. O outro cenário, que se admitia como o mais provável, era que a situação no continente não se decidisse de imediato, com o Movimento a ganhar algumas posições, mas sem conseguir resolver rapidamente a operação. Nesse caso, se se assumisse o controle da situação nos Açores, influenciar-se-ía positivamente a balança. Havia um terceiro cenário, que era o mais aliciante. O Melo Antunes quando chegou a Ponta Delgada, disse-lhe que, na pesquisa de informações que fizeram, tinha detectado um plano de fuga do Salazar para Ponta Delgada. Admitia-se que, em caso de golpe militar no continente, o governo fugisse para lá e daí pedisse apoio dos governos aliados, aproveitando a presença dos americanos nas Lages. Ora havia a possibilidade do Marcello activar esse plano. "Temos que pensar nessa eventualidade", disse Melo Antunes a Vasco Lourenço.
Diz-se que os militares começam por reunir com base num problema de carreiras e vencimentos e acabam por derrubar o regime com o objectivo de instaurar o regime democrático. A motivação do descontentamento dos militares é o problema da guerra, e, sobretudo, o facto de o Governo não vislumbrar qualquer solução de natureza política. E houve ainda a questão dos oficiais milicianos que entraram para o quadro permanente, em Julho.73, mas isso estava ultrapassado desde a constituição do Movimento. Era uma divisão entre militares oriundos de cadetes da Academia Militar, que constituem o Movimento em si, e a dos oficiais milicianos. Em Abril/Maio de 73 dá-se a reacção ao Congresso dos Combatentes, organizado pelo poder e que terminou com uma campanha de assinaturas em que se esvazia o Congresso dos Combatentes, declarando antecipadamente os oficiais do abaixo-assinado que nada tinham a ver com as conclusões que lá viessem a ser tiradas. O grupo que dinamizou esta contestação ao Congresso estava essencialmente ligado ao general Spínola, formara-se na Guiné, e Vasco Lourenço integrou-se nele. Começou por se discutir como aproveitar aquela dinâmica, que provara ser o poder estava mais fragilizado do que se pensava uma vez que não reagira a uma movimentação indisciplinada como a que se fez. Andavam a pensar no que fazer, até porque havia que encontrar uma solução política para a guerra.
Pairava o fantasma da retirada da Índia, nomeadamente em relação à Guiné. O Marcello já tinha dito ao Spínola que não haveria retirada nem negociação, porque encontrar uma solução para a Guiné arrastaria outros territórios. É quando surge um problema de ordem sócio-profissional, de índole corporativa. O poder, que precisava de dar resposta às necessidade da guerra colonial, criava situações contraditórias. Ao se mobilizarem mais militares para fazer a guerra aliciaram-se os milicianos, numa abertura que os militares consideraram ofensiva e prejudicial para as suas carreiras. Estava-se num quadro de progressão segundo certas regras, fixadas à partida, e, de repente, vêm passar-lhes por cima uma série de pessoas, mais modernos em termos de carreira. Mas também era ofensiva para as Forças Armadas em si, e isto teve muita importância junto dos militares. Havia uma grande rivalidade nos meios estudantis entre os cadetes da Academia Militar e os universitários dos cursos superiores, fomentada por diversos sectores, inclusive pelos da oposição. Explorou-se esse descontentamento. Ao fazê-lo, constituíram-se 2 grupos: o dos capitães, que vai contestar essa medida; e o dos oficiais ex-milicianos que tinham concorrido ao quadro permanente e beneficiariam desses decretos. Estes entendiam que os militares (de Abril) estavam contra eles, mas estes explicaram-lhes que estavam sim contra as medidas que implicam o desprestígio da instituição militar. Havia oficiais que afirmavam que o importante não eram os decretos, mas aproveitar o descontentamento e dar-lhe uma orientação.
E terá sido isto que aconteceu.