sábado, 24 de abril de 2010

D. António Ferreira Gomes e a sociedade portuguesa, ao tempo de Salazar


Nunca um «pró-memória» foi objecto de tanta investigação como aquele que D. António Ferreira Gomes escreveu a António de Oliveira Salazar, a 13.Julho.1958. À carta-denúncia das injustiças sociais, Salazar respondeu, 1 ano depois, com o exílio do bispo do Porto.
Depois das eleições de 1958 (vencedor: Américo Tomás), o bispo do Porto remeteu a Salazar a missiva que referenciou como «pró-memória» para um seu eventual encontro com o Presidente do Conselho (PC). “Cumpre-me, antes do mais, agradecer a V. Exª o ter manifestado a boa disposição de me ouvir” – início do documento de D. AFG ao PC. Depois de explicar as razões da sua vinda a Portugal para votar – estava “legitimamente ausente em Barcelona” -, D. AFG considera que o pedido que lhe foi feito, “por forma tão extraordinária e pública, não poderia deixar de considerar-se propaganda da situação” – realça o «Pró-Memória». A «história» dessa carta começou, no exacto momento, em que o bispo do Porto se recusou a servir de bandeira do regime nas eleições para a Presidência da República no mês transacto. “Em tais condições e forçado a ser, diametralmente ao contrário do meu desejo, uma bandeira, eu não podia deixar de fazer uma declaração de voto. Como a não deveria fazer ao público, requeri fazê-la a V. Exª” – escreveu no documento.
Após as explicações iniciais, o prelado natural de Milhundos mostrou-se preocupado pelo facto da Igreja em Portugal, como a “campanha eleitoral revelou de forma irrefragável e escandalosa”, estar “perdendo a confiança dos seus melhores” – sublinha. Com o intuito de esclarecer a sua afirmação, D. AFG apresenta 2 casos ao PC. No Minho - “coração católico de Portugal” – “mal os padres começavam a falar de eleições, os homens, sem se importarem como sentido que seria dado ao ensino, retiravam-se afrontosamente da igreja”. Nas juventudes da Acção Católica, os dirigentes “mais responsáveis saltam fora dos quadros e da disciplina, para manifestarem a sua inconformidade e desespero, fugindo ao conhecimento dos assistentes (que, apesar de tudo, lhes aconselhariam paciência)”.
Estes dois factos causam preocupação ao bispo do Porto. “Está-se perdendo a causa da Igreja na alma do povo, dos operários e da juventude; se esta se perde, que poderemos esperar da sorte da nação?” – lê-se no «Pró-Memória.
A missiva recorda também alguns pontos caricatos da imagem que Portugal tinha no estrangeiro. “Há trinta anos estava eu, em Roma, sob o esplendor do sol ascendente do fascismo”, e um jornal humorístico mostrava Portugal “mendigando à porta da S. D. N. e obtinha esta resposta: - aqui não se entra «a la portoghesa»”. Como a imagem da Pátria no exterior não era muito abonatória, D. AFG confessa: “lembro bem a comoção e o entusiasmo, o sobressalto de esperança com que acompanhámos os inícios da carreira” de Salazar. E acrescenta: “mais do que para todos, era para nós, afastados da Pátria, uma espécie de resgate e reabilitação perante o estrangeiro desprezador”.
Nos primórdios do Estado Novo, D. AFG guardava “religiosamente” as palavras ou as referências que eram feitas ao PC. Reconhecia-lhe “competência profissional” e as “actividades no campo católico”. Passados os anos, o Bispo do Porto frisou que “não diminuiu a minha estima e respeito pela personalidade de V. Exª nem a admiração pela sua inteligência”.
A “tremenda crise nacional” que a campanha eleitoral “pôs a nu” merecia umas palavras de Salazar. Depois de ouvir e ler o discurso do PC, a 31 de Maio de 1958, o bispo do Porto lembra no documento: “enquanto trata das políticas externa e ultramarina e do problema económico, salvas pequenas diferenças, não pude senão admirar a lucidez do raciocínio e o bem fundamentado das posições”. Não deixou, porém, de discordar das suas doutrinas relativamente ao problema social. “Tudo começou a ser difícil” – lê-se na carta.
Após fazer um exercício lógico – “o qual depois segui conscientemente” -, D. AFG procurou “a exacta contraditória das posições expressas” pelo PC. Após analisar o discurso de Salazar, o bispo do Porto escreve que crê “bem-estar com a doutrina da Igreja ao discordar de doutrinas que, sendo de V. Exª, são da situação”. Como gosta de explicar as suas posições e fundamentá-las, D. AFG alinha algumas dessas oposições “com um mínimo de aclarações”.
Depois de Salazar referir que “a greve é entre nós um crime”, o bispo do Porto lamenta tal posição do Chefe de Estado. Fazendo referência às reivindicações da campanha de Humberto Delgado – “a reclamação de ser reconhecido o direito à greve” -, o prelado do Douro afirma: “eles estão com a doutrina da Igreja”.
D. AFG sentia o pulsar da sociedade portuguesa e reflecte-o no «pró-memória». Apesar da sua formação filosófica, o «celebre bispo do Porto» olha para os problemas sociais com preocupação. “Não poderei dizer quanto me aflige o já hoje exclusivo privilégio português do mendigo, do pé-descalço, do maltrapilho, do farrapão; nem sequer o nosso triste apanágio das mais altas médias de subalimentados, de crianças enxovalhadas e exangues e de rostos pálidos” – sublinha na missiva. Um documento que analisa a sociedade da época. As tensões sociais e políticas não paravam de subir. Antes de D. AFG colocar o dedo nesta ferida social, já o Pe. Abel Varzim, Joaquim Alves Correia e outros tomavam posições críticas em relação ao regime. O bispo do Porto só avançou com a «carta» ao PC porque a Conferência Episcopal Portuguesa não publicou, 3 anos antes, um texto sobre a situação dos trabalhadores no nosso país e, nomeadamente a situação do corporativismo. Como os seus colegas do episcopado não deram o passo fundamental para denunciar os casos, D. AFG viu-se «obrigado», mas em consciência a escrever o que lhe ia na alma. Com este documento exerceu o seu múnus de pastor. A missiva dá a conhecer as misérias da época e aponta soluções fundamentadas nos documentos pontifícios.
A conversa entre os dois Antónios não chegou a realizar-se devido a vários factores, mas o bispo condensou em 4 questões o que pretendia perguntar a Salazar. “Tem o Estado qualquer objecção a que a Igreja ensine livremente e por todos os meios, principalmente através das organizações e serviços da Acção Católica e da Imprensa, a sua doutrina Social?”; “Tem o Estado qualquer objecção a que a Igreja autorize, aconselhe e estimule os católicos a que façam a sua formação cívico-política, de forma a tomarem plena consciência dos problemas da comunidade portuguesa, na concreta conjuntura presente, e estarem aptos a assumir as responsabilidades que lhes podem e devem caber, como cidadãos católicos?”; “Tem o Estado qualquer objecção a que os católicos definam, publiquem e propaguem o seu programa ou programas, politicamente situados, em concreto hic et nunc, o que evidentemente não pode ir sem o despertar de esperanças de mutações ousadas e substanciais e do seu clima emocional?” e “Tem o Estado qualquer objecção a que os católicos, se assim o entenderem e quando entenderem, iniciem o mínimo de organização e acção políticas, a fim de estarem aptos, nas próximas eleições legislativas ou quando julgarem oportuno, a concorrer ao sufrágio, com programa definido e com os candidatos que preferirem?”.
As questões chegaram aos nossos dias. Como resposta teve um exílio de dez anos.