Amores impossíveis. O de Afonso VIII de Castela e a Judia de Toledo como o de Pedro e Inês. Os historiadores da romântica medieval percebem entre as histórias de ambos semelhanças tais que os levam a crer que os relatos das narrativas da época sobre o segundo romance foram influenciados pela mística e destino do primeiro. Na historiografia hispânica, o desfecho da vida da Judia de Toledo prefigura a narrativa da morte de Inês de Castro. Do amor funesto do jovem Afonso VIII por uma Judia de Toledo com quem ele teria “visco mala vida” durante 7 meses/7 anos ao amor de D. Pedro, a história valeu-se da objectiva romancesca sobre a morte da Judia e o imoderado amor que o seu régio amante lhe dedicava. O romance datará de uma fase da extrema juventude do monarca, imediatamente após os esponsórios com a impúbere Eleonor de Inglaterra. Pode mesmo ter existido uma espécie de tradição prévia, culpabilizadora face a Afonso VIII, que teria projectado no passado uma causa eficiente capaz de justificar a derrota em Alarcos daquele que acabou por ser o vencedor das Navas de Tolosa: daí a postulada ligação pecaminosa com a Judia, atentado contra Deus e contra o Reino. Sobre essa tradição, e talvez já em contexto historiográfico, teria então sido forjada a narrativa de amor e morte que a Crónica de Castela transmite. Os mais recentes estudos sobre a nunca identificada Judia de Toledo parecem ter abandonado o pendor historicista, centrando a atenção nas potencialidades representativas do episódio em causa no contexto sóciopolítico e cultural do século XIII peninsular. A Judia de Toledo é a protagonista de uma lendária aventura amorosa transgressora de um poderoso monarca peninsular. Nunca terá sido morta pelos conselheiros régios, porque nunca terá existido, e o relato historiográfico que a entroniza na memória hispânica não passará de ficção cujas circunstâncias e motivações estão por avaliar. Voltando à temática inesiana, uma nova perplexidade se junta à discrepância temporal entre o relato sobre a Judia e a data da morte de Inês de Castro que suscitou o presente conjunto de reflexões. Pode um amor de verdade ter sido retratado como cópia à ficção? Um facto pode advir de uma lenda? Equacione-se o que é apurável sobre as circunstâncias históricas da vida e da morte de Inês de Castro, poderá ser compaginado com a personagem historiográfica da Judia de Toledo. As mais antigas referências a Inês de Castro datam do próprio ano da sua morte (diploma do pacto de amnistia e concórdia celebrado entre D. Afonso IV e seu filho o D. Pedro em Agosto de 1355, respeitante ao “desuayro” entre ambos “per Razon da morte de Dona Enes e dalgũas outras cousas que des entõ aaca Recrecerom”).
Vejamos a comparação entre a Judia de Toledo e Inês de Castro. Entre a lenda de uma e a história de outra, pouco haverá de comprovadamente sobreponível para além da morte por degolação. A Judia, pelo simples facto de o ser, era socialmente desclassificada; Inês, apesar de bastarda, era bisneta de Sancho IV de Castela. A Judia aparece como sozinha no mundo; Inês estava na realidade rodeada da sua poderosa parentela da linhagem dos Castros. A lenda não sugere que a Judia tenha dado filhos a Afonso VIII, mas a História regista o nascimento de três filhos da união de Inês com D. Pedro. O papel da Judia era o de uma concubina tomada na vigência de um vínculo matrimonial anterior; nada na documentação aponta para que Inês não tenha ocupado em legitimas núpcias o leito do infante, e muito menos permite postular uma ligação adúltera, prévia à viuvez deste. O arrependido amante da Judia acaba por renegá-la depois de morta, o que contrasta com o modo como D. Pedro assume a legalidade da sua união com a defunta Inês. É no amor e na morte que os destinos das duas figuras femininas se fundem. Na encenação literária da morte violenta de uma mulher impiedosamente degolada no lugar onde a tinha instalado o homem poderoso que com ela coabitava e obsessivamente a amava. É esta encenação que estabelece uma identidade virtual entre ambas as personagens historiográficas. A convergência imagética da construção literária da morte de Inês de Castro com a da Judia de Toledo terá sido o primeiro indício da obsessividade desse amor.
A crónica de D. Pedro e a de D. João I guardam elementos que garantem que Fernão Lopes não só dá grande peso à relação erótico-sentimental entre Pedro e Inês como a problematiza de modo ideologicamente compatível com o modelo fornecido por Afonso VIII e a sua Judia. Usando a ambiguidade que tão bem maneja, começa por descrever o romance de Pedro e Inês como um “verdadeiro amor”, mas vai, pouco a pouco, desvendando a natureza nefasta desse sentimento obsessivo. O romance dos primeiros não cessava de lhe enviar recados com a acumulação das suas transgressoras circunstâncias e funestas consequências e com o registo dos actos excessivos e tresloucados a que tal amor conduz o infante de Portugal, e que são a essência, a teia e o trama da lenda inesiana. Moldada à imagem da morte da Judia de Toledo, a morte de Inês de Castro era vista como a consequência de um amor ilícito e excessivo. Amor marginal, amor paixão .... Mas o AMOR bastaria para Fernão Lopes não duvidar acerca do sentimento de que se tratava e das potencialidades da sua evocação. Produto de uma elaborada codificação literária, mais do que como emoção experienciável, o amor entre um homem e uma mulher assumiu no imaginário medieval um poderoso potencial dissociador relativamente à noção institucional de casamento. Dependendo do contexto, esse potencial podia ter conotações positivas ou negativas. Quanto à Judia de Toledo, a concubina maldita que afasta o amante dos seus deveres para com Deus e os homens, não havia lugar para dúvidas. Moldar o romance de Pedro e Inês à imagem do amor de Afonso VIII pela Judia de Toledo era indiciar a respectiva história como uma história de amantes, intrinsecamente incompatível com o vínculo conjugal; e, por outro, a instituí-los como amantes condenados. Que outra estratégia serviria tão bem os interesses legitimadores que a escrita de Fernão Lopes promovia do que a replicação, no imaginário colectivo, das manobras de descrédito do casamento de D. Pedro com Inês de Castro a que a argumentação jurídica de João das Regras procedia, no plano lógico. E esta razão pode justificar a apropriação pelo cronista de Aviz do relato da Judia de Toledo como modelo para a morte de Inês de Castro. (vd. tese de Maria do Rosário Ferreira) Ambos grandes amores e amores impossíveis! Ambos vividos! Ambas amavam a vida e ambas a perderam por causa do AMOR!