Em Que força é essa, Madalena Barbosa constatou a inexistência de grupos feministas actuantes em Portugal antes de Abril.1974. Sem descurar a acção de algumas mulheres, como Elina Guimarães – ou a actividade de estruturas como o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (1914-1947) ou a Associação Feminina Portuguesa para a Paz (1936-1952), dissolvidas na sequência da repressão levada a cabo pelo regime na conjuntura política do pós-guerra. Referia-se à ausência de colectivos centrados na imbricação entre o público e o privado, na linha daquilo que ficou conhecido, a partir da década de 1960, como “feminismo de segunda vaga”.
Conhecem-se as razões que fizeram com que o Portugal do Estado Novo fosse um terreno árido para a emergência das temáticas feministas: o investimento ideológico do regime na criação de organizações apostadas em identificar a mulher com as funções de “mãe”, “esposa” e “fada-do-lar” e um edifício jurídico que entendia a mulher como ser tutelado, o cerco cultural produzido pela censura e a extensão aos mais variados domínios do quotidiano de uma moral católica conservadora.
O protagonismo feminino na oposição ao Estado Novo condensou-se em posturas “antifascistas”, em detrimento da problematização das relações sociais entre sexos, como se ilustra já no marcelismo, na acção e no discurso do Movimento Democrático de Mulheres, criado em 1969 na orla do PCP, e das Comissões Eleitorais Femininas, estruturadas em torno da CDE. Tal não significa que o 25 de Abril tenha aberto caminho largo aos feminismos. Demonstra-o a vida difícil e precária de um grupo como o Movimento de Libertação das Mulheres, do qual Madalena Barbosa fez parte. Seguir por aqui seria embarcar numa outra história, uma história de incompreensões datadas que tem o seu exemplo maior na evocação de uma não comprovada queima pública de soutiens na manifestação realizada em Jan.1975 no Parque Eduardo VII. Mas a “questão da mulher” adquiriu um protagonismo crescente na intervenção estudantil durante o Estado Novo sem que, no entanto, se desbloqueassem em efectivo os limites à irrupção de um discurso explicitamente feminista. Desde meados da década de 1950 que se davam nos meios académicos sinais evidentes de desencontro com o governo e com a ideologia oficial do regime. Destaque-se, no ano lectivo de 1956/57, a contestação ao decreto 40.900, projecto-lei que cerceava a “autonomia” das associações de estudantes, e a ampla e entusiasta participação juvenil em 1958 na campanha presidencial de Humberto Delgado. Pouco depois, em 1960, a Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra é conquistada por uma lista de esquerda, que introduz uma série de alterações qualitativas no discurso associativo, cuja face mais visível seria precisamente o conflito que então deflagra acerca do papel da mulher na sociedade.
As mulheres ocupavam um lugar de subalternidade no ambiente estudantil. Constituíam ainda uma minoria, apesar de durante os finais da década de 50 e inícios da década de 60 a percentagem de elementos do sexo feminino ter aumentado. Também a nível simbólico era evidente o seu lugar secundário, lembrando que, apenas a partir da década de 1950 lhes é permitido envergar a capa e batina, até então destinada exclusivamente a uso masculino. Dando cobertura jornalística ao assunto, a "Flama" questiona: “há ou não diferenças no tratamento e no convívio social entre rapazes e raparigas em Coimbra? A mulher que estuda é, principalmente, mulher ou estudante?”.
Olhando para o que se escrevia no jornal estudantil Via Latina, a resposta é clara: a “mulher que estuda” era, em primeiro lugar, mulher, constantemente remetida para o seu lugar na esfera privada. Maria Adelaide Calado (1956) afirma que a mulher se encontra, no essencial, “destinada para a família e para o Lar”, “capacitados ambos para exercer uma profissão, o homem pode e deve exercê-la sempre; a mulher só se a organização familiar em que está integrada não ficar lesada sem a sua presença”.
Assim se compreende o escândalo causado pela publicação na Via Latina da “Carta a uma Jovem Portuguesa”, assinada por um anónimo A., e posteriormente reivindicada por Artur Marinha de Campos. Nela, o autor escreve a uma genérica “jovem portuguesa”, mostrando-se perturbado com a sua situação social, marcada por um “determinismo” que a “oprime e define”. Afirma que aos rapazes coube “viver do lado de cá, onde temos uma ordem social que em relação a vós nos favorece”, enquanto às raparigas se encontra destinado “o lado de lá desse muro: o mundo inquietante da sombra e da repressão mental”. O autor exorta-as a “lutarem pela libertação através de uma mútua liberdade” e termina mencionando a “concretização sexual do amor”. O texto provocou uma onda de indignação nas faixas mais conservadoras, para quem a Carta erigia “a imoralidade em princípio orientador da juventude”. Ardentes tomadas de posição desdobraram-se em panfletos, abaixo-assinados, cartas e textos de maior ou menor fôlego que extravasaram o perímetro coimbrão. Esta confrontação político-moral não é alheia ao debate em torno da validade do “Convívio” entre elementos dos dois sexos e de Academias diferentes, a que se vinha desenvolvendo há já algum tempo. Na Via Latina, e já na “Carta” de Marinha de Campos se fazia eco desta problemática. Apesar do tom cauteloso de boa parte deles, houve posições menos consensualizadoras, como a de Eveline Nicolau, na qual se afirmou como necessária uma atitude de “recusa” do ambiente conservador dominante. Tratava-se de eliminar os “vestígios de um passado em que homem e mulher eram dois estranhos, de vidas inteiramente compartimentadas, em que para ele havia a rua, a boémia… o galanteio, a piadinha apimentada… e para ela o recolhimento do lar, a tímida admiração pela irreverência e liberdade dele, o rubor perante as pilhérias de certo tom muito ‘masculino’”.
A noção de “Convívio”, aparentemente pueril, mais não era do que a reivindicação simultânea de uma abertura moral e da adopção tácita da perspectiva sindicalista. Com a consciência disso, publicações conservadoras como o jornal Novidades aconselhavam “Cautela com os convívios!”, enquanto no Encontro, jornal oficial da JUC, dois estudantes advertiam: “Cuidado, quando falamos de igualdade entre os dois sexos, ao mesmo tempo que falamos de convívio”. Esta questão prolongou-se por todo este período e constituiu uma autêntica barreira divisória entre os campos académicos. Já no rescaldo da “crise de 62”, o Centro Académico da Democracia Cristã censurava, na "Estudos", a “atitude de muitas raparigas, que passaram a noite ao edifício da AA juntamente com os rapazes, onde as circunstâncias fariam diminuir para com elas o respeito de que sempre se devem rodear”.
Conhecem-se as razões que fizeram com que o Portugal do Estado Novo fosse um terreno árido para a emergência das temáticas feministas: o investimento ideológico do regime na criação de organizações apostadas em identificar a mulher com as funções de “mãe”, “esposa” e “fada-do-lar” e um edifício jurídico que entendia a mulher como ser tutelado, o cerco cultural produzido pela censura e a extensão aos mais variados domínios do quotidiano de uma moral católica conservadora.
O protagonismo feminino na oposição ao Estado Novo condensou-se em posturas “antifascistas”, em detrimento da problematização das relações sociais entre sexos, como se ilustra já no marcelismo, na acção e no discurso do Movimento Democrático de Mulheres, criado em 1969 na orla do PCP, e das Comissões Eleitorais Femininas, estruturadas em torno da CDE. Tal não significa que o 25 de Abril tenha aberto caminho largo aos feminismos. Demonstra-o a vida difícil e precária de um grupo como o Movimento de Libertação das Mulheres, do qual Madalena Barbosa fez parte. Seguir por aqui seria embarcar numa outra história, uma história de incompreensões datadas que tem o seu exemplo maior na evocação de uma não comprovada queima pública de soutiens na manifestação realizada em Jan.1975 no Parque Eduardo VII. Mas a “questão da mulher” adquiriu um protagonismo crescente na intervenção estudantil durante o Estado Novo sem que, no entanto, se desbloqueassem em efectivo os limites à irrupção de um discurso explicitamente feminista. Desde meados da década de 1950 que se davam nos meios académicos sinais evidentes de desencontro com o governo e com a ideologia oficial do regime. Destaque-se, no ano lectivo de 1956/57, a contestação ao decreto 40.900, projecto-lei que cerceava a “autonomia” das associações de estudantes, e a ampla e entusiasta participação juvenil em 1958 na campanha presidencial de Humberto Delgado. Pouco depois, em 1960, a Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra é conquistada por uma lista de esquerda, que introduz uma série de alterações qualitativas no discurso associativo, cuja face mais visível seria precisamente o conflito que então deflagra acerca do papel da mulher na sociedade.
As mulheres ocupavam um lugar de subalternidade no ambiente estudantil. Constituíam ainda uma minoria, apesar de durante os finais da década de 50 e inícios da década de 60 a percentagem de elementos do sexo feminino ter aumentado. Também a nível simbólico era evidente o seu lugar secundário, lembrando que, apenas a partir da década de 1950 lhes é permitido envergar a capa e batina, até então destinada exclusivamente a uso masculino. Dando cobertura jornalística ao assunto, a "Flama" questiona: “há ou não diferenças no tratamento e no convívio social entre rapazes e raparigas em Coimbra? A mulher que estuda é, principalmente, mulher ou estudante?”.
Olhando para o que se escrevia no jornal estudantil Via Latina, a resposta é clara: a “mulher que estuda” era, em primeiro lugar, mulher, constantemente remetida para o seu lugar na esfera privada. Maria Adelaide Calado (1956) afirma que a mulher se encontra, no essencial, “destinada para a família e para o Lar”, “capacitados ambos para exercer uma profissão, o homem pode e deve exercê-la sempre; a mulher só se a organização familiar em que está integrada não ficar lesada sem a sua presença”.
Assim se compreende o escândalo causado pela publicação na Via Latina da “Carta a uma Jovem Portuguesa”, assinada por um anónimo A., e posteriormente reivindicada por Artur Marinha de Campos. Nela, o autor escreve a uma genérica “jovem portuguesa”, mostrando-se perturbado com a sua situação social, marcada por um “determinismo” que a “oprime e define”. Afirma que aos rapazes coube “viver do lado de cá, onde temos uma ordem social que em relação a vós nos favorece”, enquanto às raparigas se encontra destinado “o lado de lá desse muro: o mundo inquietante da sombra e da repressão mental”. O autor exorta-as a “lutarem pela libertação através de uma mútua liberdade” e termina mencionando a “concretização sexual do amor”. O texto provocou uma onda de indignação nas faixas mais conservadoras, para quem a Carta erigia “a imoralidade em princípio orientador da juventude”. Ardentes tomadas de posição desdobraram-se em panfletos, abaixo-assinados, cartas e textos de maior ou menor fôlego que extravasaram o perímetro coimbrão. Esta confrontação político-moral não é alheia ao debate em torno da validade do “Convívio” entre elementos dos dois sexos e de Academias diferentes, a que se vinha desenvolvendo há já algum tempo. Na Via Latina, e já na “Carta” de Marinha de Campos se fazia eco desta problemática. Apesar do tom cauteloso de boa parte deles, houve posições menos consensualizadoras, como a de Eveline Nicolau, na qual se afirmou como necessária uma atitude de “recusa” do ambiente conservador dominante. Tratava-se de eliminar os “vestígios de um passado em que homem e mulher eram dois estranhos, de vidas inteiramente compartimentadas, em que para ele havia a rua, a boémia… o galanteio, a piadinha apimentada… e para ela o recolhimento do lar, a tímida admiração pela irreverência e liberdade dele, o rubor perante as pilhérias de certo tom muito ‘masculino’”.
A noção de “Convívio”, aparentemente pueril, mais não era do que a reivindicação simultânea de uma abertura moral e da adopção tácita da perspectiva sindicalista. Com a consciência disso, publicações conservadoras como o jornal Novidades aconselhavam “Cautela com os convívios!”, enquanto no Encontro, jornal oficial da JUC, dois estudantes advertiam: “Cuidado, quando falamos de igualdade entre os dois sexos, ao mesmo tempo que falamos de convívio”. Esta questão prolongou-se por todo este período e constituiu uma autêntica barreira divisória entre os campos académicos. Já no rescaldo da “crise de 62”, o Centro Académico da Democracia Cristã censurava, na "Estudos", a “atitude de muitas raparigas, que passaram a noite ao edifício da AA juntamente com os rapazes, onde as circunstâncias fariam diminuir para com elas o respeito de que sempre se devem rodear”.
Se os sectores católicos se foram aproximando das posições contestatárias, em termos morais, estavam sintonizados com aquilo que era, na massa estudantil, a imagem dominante acerca da mulher. Nos inquéritos à população universitária, promovidos pela JUC em 1964/65, no capítulo do comportamento sexual, a virgindade é tida como importante para a felicidade do casamento por uma ampla maioria dos inquiridos (77% nos rapazes e 83,4% nas raparigas), situando-se em perto de 90% a percentagem de raparigas universitárias que encaram como “repreensível” ou “perigosa” a actividade sexual antes do casamento. Por sua vez, a maioria dos rapazes (63,6%) consideram o sexo pré-matrimonial, para si próprios, um comportamento “sem gravidade” ou “por vezes útil”, ainda que apenas 26,2% o entendam da mesma forma para as raparigas. No que concerne aos métodos anticoncepcionais, 7,2% das raparigas aprovam o uso de todos os meios conhecidos e de resultados comprovados (contra 20,4% de rapazes), enquanto 50,9% apenas concordam com o uso de métodos naturais, como o método da contagem ou das temperaturas. Mais de 40% das raparigas não responderam ou não tinham opinião sobre este assunto.
Na parte relativa ao trabalho da mulher, a maioria considera que a mulher casada só deve empregar-se “se conseguir um horário de trabalho compatível com as exigências da vida familiar” ou “em caso de extrema necessidade”. Apenas 6,4% dos inquiridos consideram que “a mulher deve ter um emprego durante toda a vida”. Esta posição é mais frequente nas raparigas do que nos rapazes e mais marcada em Lisboa (8%) do que no Porto (5,2%) ou em Coimbra (4%) (Situação e Opinião dos Universitários, 1967).
No último decénio de existência do Estado Novo, a presença das mulheres na Universidade sofre um acréscimo considerável. No ano lectivo de 1970/71 chegam a estarem matriculadas mais mulheres do que homens nas universidades de Coimbra e Lisboa, tendo a taxa de feminização duplicado relativamente aos 20 anos anteriores. Este aumento é fruto dos reflexos da emancipação feminina, visíveis um pouco por todo o mundo ocidental, e das mobilizações masculinas para os conflitos armados em África e da forte vaga emigratória que assola o país, e que se reflectiu mais no sexo masculino. A entrada em força das mulheres nas universidades alterou significativamente as características do movimento estudantil. No entanto, as lutas estudantis da época nunca tiveram como bandeira a emancipação feminina, o que se justifica pela urgência de todas as outras causas que a montante se colocavam: a liberdade de expressão, de associação, a autonomia da universidade, a reforma e democratização do ensino. Se, na curva da década de 60-70, se acrescenta a guerra colonial no corpus contestatário estudantil, as questões relativas à sexualidade, à violência sobre as mulheres ou às desigualdades, jurídicas e de facto, mantêm dificuldade em ser integradas no discurso reivindicativo.
A análise do percurso de um organismo como o Conselho Feminino da AAC (CF) demonstra-o. Embora não o visse como uma secção "feminina", a esquerda académica também não lhe encontrava um lugar definido. Em 1964/65, o programa de Candidatura da Lista de Colaboradores e Conselho de Repúblicas (CF), aferia a sua legitimidade por dois modelos possíveis: 1) partir da ideia de que existem certos interesses específicos de um e outro sexo ou 2) funcionar em torno de objectivos que visassem a integração da estudante universitária na vida associativa. Em 1968/69, a lista vencedora do Conselho das Repúblicas reafirma, em programa eleitoral, a mesma posição e propõe-se fazer uma “revisão da problemática suscitada pela existência de um CF”, chegando a afirmar que “uma diferença de sexos não nos parece poder justificar a existência de uma parte especializada na AAC sob pena de se ter de criar uma outra especializada para homens”, embora, como o que “está previsto nos Estatutos”, o funcionamento do CF se deveria orientar “num sentido que negue todo e qualquer tipo de discriminação tendente a dar à mulher um papel subalterno face ao homem”. Por alturas da “crise de 69”, a larga maioria das estudantes universitárias participava já com assiduidade nas realizações do movimento associativo, partilhando com maior informalidade os espaços comuns. Celso Cruzeiro evoca a votação na ordem dos 80% na lista do CR na Faculdade de Letras, onde o índice de concentração feminina era bastante elevado e fala mesmo de uma mudança corporizada neste período. Pio de Abreu reconhece que a libertação feminina nunca foi uma “preocupação”, já que “o que importava não era a libertação deste ou daquele grupo, mas sim a libertação total”, e salienta o papel activo das mulheres durante a “crise”. Apesar disso, é possível encontrar na época, em círculos restritos, uma abordagem política de temáticas dominantemente entendidas como pertencentes ao âmbito do privado. Interessam alguns textos produzidos pelo grupo Quem somos e o que Queremos, compilados no volume Igualdade Radical para a Mulher. Problematiza-se o casamento, a virgindade, a pornografia, os concursos de beleza, a moda, o nudismo, a homossexualidade, a paz, o papel das mulheres perante a guerra colonial, a segregação sexual no desporto e o machismo. O grupo era composto essencialmente por estudantes universitários de Coimbra, oriundos dos sectores católicos e que se haviam debruçado sobre estas questões no ano lectivo de 1969/70. Alguns textos publicados entre 1968-1971 na Capa e Batina criticam o lugar subalterno da mulher. Maria Margarida considera a posição da mulher na sociedade como de “submissão e subordinação incondicional ao homem”, afirmando que “a mulher inteiramente válida e consciente não vê no casamento um meio de subsistência ou amparo”. Noutro texto, com intenções de ressoar numa Coimbra estudantil onde os resquícios da “tradição académica” iam sendo eliminados, aponta-se o dedo ao “marialvismo” como manifestação social que leva à apreciação da mulher como “serva do homem e objecto de satisfação das suas necessidades”. A fundação, em 1972, da República Rosa Luxemburgo, rompeu com um universo até então confinado ao sexo masculino e mostrava como estas mudanças tinham expressão nas estruturas típicas do mundo estudantil. A identificação de um episódio como a ocupação da sala das alunas do Instituto Superior Técnico, em Dez.1968, permite perceber momentos de exemplar radicalidade. Pouco antes, é publicado no Binómio o texto “Mulher no Mundo”, que fala da “emancipação da mulher” e da prática do aborto, e propõe uma “relação sexual durável, que não precisa da existência da reprodução para ser justificada”, em oposição ao “casamento instituição”, apoiado na “família autoritária, que é a célula base da sociedade capitalista”. Entretanto, no contexto de uma reivindicação de subsídios para a cantina autogerida do Técnico, os estudantes ocupam o Pavilhão Central e efectuam um piquenique de protesto. O director do IST impediu a entrada de alunos no pavilhão mas alguns alunos entram pela janela da sala das alunas no espaço, o que fez com que o director a mande encerrar. Os alunos que permaneciam no exterior entram pela porta principal e a seguir ao almoço ocupam a “sala das alunas” cuja placa é substituída por “Sala de Convívio 4 de Dezembro”. Aprovada uma proposta de greve a iniciar a 9.Dez., o edifício e a Associação de Estudantes do IST são ocupadas pela polícia no sábado. É instaurado um processo disciplinar à direcção, o que motiva uma greve geral em toda a Universidade de Lisboa.
O que estava em causa era a persistência de códigos morais não coadunáveis com as posturas descontraídas e igualitárias que animavam o movimento associativo estudantil. O que explica porque é que o feminismo permaneceu, no meio estudantil destes anos, uma reivindicação bloqueada. Ou, para utilizar uma expressão alternativa, um silêncio ainda assim ruidoso. (Olhares sobre uma ausência: o movimento estudantil no Estado Novo e o feminismo, Miguel Cardina, Ensaio)
Na parte relativa ao trabalho da mulher, a maioria considera que a mulher casada só deve empregar-se “se conseguir um horário de trabalho compatível com as exigências da vida familiar” ou “em caso de extrema necessidade”. Apenas 6,4% dos inquiridos consideram que “a mulher deve ter um emprego durante toda a vida”. Esta posição é mais frequente nas raparigas do que nos rapazes e mais marcada em Lisboa (8%) do que no Porto (5,2%) ou em Coimbra (4%) (Situação e Opinião dos Universitários, 1967).
No último decénio de existência do Estado Novo, a presença das mulheres na Universidade sofre um acréscimo considerável. No ano lectivo de 1970/71 chegam a estarem matriculadas mais mulheres do que homens nas universidades de Coimbra e Lisboa, tendo a taxa de feminização duplicado relativamente aos 20 anos anteriores. Este aumento é fruto dos reflexos da emancipação feminina, visíveis um pouco por todo o mundo ocidental, e das mobilizações masculinas para os conflitos armados em África e da forte vaga emigratória que assola o país, e que se reflectiu mais no sexo masculino. A entrada em força das mulheres nas universidades alterou significativamente as características do movimento estudantil. No entanto, as lutas estudantis da época nunca tiveram como bandeira a emancipação feminina, o que se justifica pela urgência de todas as outras causas que a montante se colocavam: a liberdade de expressão, de associação, a autonomia da universidade, a reforma e democratização do ensino. Se, na curva da década de 60-70, se acrescenta a guerra colonial no corpus contestatário estudantil, as questões relativas à sexualidade, à violência sobre as mulheres ou às desigualdades, jurídicas e de facto, mantêm dificuldade em ser integradas no discurso reivindicativo.
A análise do percurso de um organismo como o Conselho Feminino da AAC (CF) demonstra-o. Embora não o visse como uma secção "feminina", a esquerda académica também não lhe encontrava um lugar definido. Em 1964/65, o programa de Candidatura da Lista de Colaboradores e Conselho de Repúblicas (CF), aferia a sua legitimidade por dois modelos possíveis: 1) partir da ideia de que existem certos interesses específicos de um e outro sexo ou 2) funcionar em torno de objectivos que visassem a integração da estudante universitária na vida associativa. Em 1968/69, a lista vencedora do Conselho das Repúblicas reafirma, em programa eleitoral, a mesma posição e propõe-se fazer uma “revisão da problemática suscitada pela existência de um CF”, chegando a afirmar que “uma diferença de sexos não nos parece poder justificar a existência de uma parte especializada na AAC sob pena de se ter de criar uma outra especializada para homens”, embora, como o que “está previsto nos Estatutos”, o funcionamento do CF se deveria orientar “num sentido que negue todo e qualquer tipo de discriminação tendente a dar à mulher um papel subalterno face ao homem”. Por alturas da “crise de 69”, a larga maioria das estudantes universitárias participava já com assiduidade nas realizações do movimento associativo, partilhando com maior informalidade os espaços comuns. Celso Cruzeiro evoca a votação na ordem dos 80% na lista do CR na Faculdade de Letras, onde o índice de concentração feminina era bastante elevado e fala mesmo de uma mudança corporizada neste período. Pio de Abreu reconhece que a libertação feminina nunca foi uma “preocupação”, já que “o que importava não era a libertação deste ou daquele grupo, mas sim a libertação total”, e salienta o papel activo das mulheres durante a “crise”. Apesar disso, é possível encontrar na época, em círculos restritos, uma abordagem política de temáticas dominantemente entendidas como pertencentes ao âmbito do privado. Interessam alguns textos produzidos pelo grupo Quem somos e o que Queremos, compilados no volume Igualdade Radical para a Mulher. Problematiza-se o casamento, a virgindade, a pornografia, os concursos de beleza, a moda, o nudismo, a homossexualidade, a paz, o papel das mulheres perante a guerra colonial, a segregação sexual no desporto e o machismo. O grupo era composto essencialmente por estudantes universitários de Coimbra, oriundos dos sectores católicos e que se haviam debruçado sobre estas questões no ano lectivo de 1969/70. Alguns textos publicados entre 1968-1971 na Capa e Batina criticam o lugar subalterno da mulher. Maria Margarida considera a posição da mulher na sociedade como de “submissão e subordinação incondicional ao homem”, afirmando que “a mulher inteiramente válida e consciente não vê no casamento um meio de subsistência ou amparo”. Noutro texto, com intenções de ressoar numa Coimbra estudantil onde os resquícios da “tradição académica” iam sendo eliminados, aponta-se o dedo ao “marialvismo” como manifestação social que leva à apreciação da mulher como “serva do homem e objecto de satisfação das suas necessidades”. A fundação, em 1972, da República Rosa Luxemburgo, rompeu com um universo até então confinado ao sexo masculino e mostrava como estas mudanças tinham expressão nas estruturas típicas do mundo estudantil. A identificação de um episódio como a ocupação da sala das alunas do Instituto Superior Técnico, em Dez.1968, permite perceber momentos de exemplar radicalidade. Pouco antes, é publicado no Binómio o texto “Mulher no Mundo”, que fala da “emancipação da mulher” e da prática do aborto, e propõe uma “relação sexual durável, que não precisa da existência da reprodução para ser justificada”, em oposição ao “casamento instituição”, apoiado na “família autoritária, que é a célula base da sociedade capitalista”. Entretanto, no contexto de uma reivindicação de subsídios para a cantina autogerida do Técnico, os estudantes ocupam o Pavilhão Central e efectuam um piquenique de protesto. O director do IST impediu a entrada de alunos no pavilhão mas alguns alunos entram pela janela da sala das alunas no espaço, o que fez com que o director a mande encerrar. Os alunos que permaneciam no exterior entram pela porta principal e a seguir ao almoço ocupam a “sala das alunas” cuja placa é substituída por “Sala de Convívio 4 de Dezembro”. Aprovada uma proposta de greve a iniciar a 9.Dez., o edifício e a Associação de Estudantes do IST são ocupadas pela polícia no sábado. É instaurado um processo disciplinar à direcção, o que motiva uma greve geral em toda a Universidade de Lisboa.
O que estava em causa era a persistência de códigos morais não coadunáveis com as posturas descontraídas e igualitárias que animavam o movimento associativo estudantil. O que explica porque é que o feminismo permaneceu, no meio estudantil destes anos, uma reivindicação bloqueada. Ou, para utilizar uma expressão alternativa, um silêncio ainda assim ruidoso. (Olhares sobre uma ausência: o movimento estudantil no Estado Novo e o feminismo, Miguel Cardina, Ensaio)