terça-feira, 20 de abril de 2010

Pena de morte: apontamentos político-criminais-dogmáticos

Portugal goza de um património histórico ímpar no contexto das nações mundiais quanto ao tema da pena máxima. Fomos um dos primeiros países a abolir a pena de morte, primeiro em 1852 para os crimes políticos e depois, em 1867, para todos os crimes. Não será dispiciendo lembrar que o Protocolo n.º 6 à convenção Europeia de Direitos do Homem, em vigor desde 1985 prescreve que: “A pena de morte é abolida. Ninguém pode ser condenado a tal pena ou executado.” E que o Protocolo n.º 13, adoptado pelo Conselho da Europa em 2002, consagra a absolvição da pena de morte em todas as circunstâncias, incluindo em tempo de guerra ou ameaça iminente de guerra. Pode dizer-se que a abolição da pena de morte constitui um dos principais progressos do Direito na cultura e na civilização ocidentais, não obstante alguns países retencionistas, como os Estados Unidos. Mas, o seu alcance tornou-se universal com a aprovação pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1989, do 2º Protocolo ao Acordo Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos visando a abolição de pena de morte, com a ressalva do tempo de guerra, que foi rectificado por Estados de todos os Continentes. No mesmo sentido, o Protocolo à Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, aprovado pela Assembleia Geral da OEA, em 1990, também consagra a abolição total da pena de morte, com ressalva do tempo de guerra.
Com enfoque na tese de ANDRÉ LAMAS LEITE, alguns pontos a suscitar nesta ordem de equação. Numa sociedade dita «pós-moderna», em que o terrorismo e a criminalidade altamente organizada e especialmente violenta são fenómenos diários, assiste-se, em muitas democracias, àquilo que se vem designando por «punitive turn». Ora, não obstante na pátria lusa a pena capital não ter, nos últimos tempos, encontrado assinalável brado público, ela permanece, amiúde de jeito latente, em alguma discursividade política. Aceitar ou não a pena capital em um ordenamento jurídico é, para além de outros pontos de vista, um problema de escolha político-criminal e de fundamentação técnico-dogmática. Se VICTOR HUGO saudou Portugal, esse «pequeno povo», augurando que «a Europa imitar[ia] Portugal», pois «a liberdade é uma cidade imensa da qual todos somos concidadãos», Autores portugueses de Oitocentos e da centúria seguinte pronunciavam-se a favor da reintrodução da pena de morte, louvando-se, inter alia, dos trabalhos de FERRI e de TARDE. FERRI, p. ex., aproximou a teoria darwiniana da «evolução das espécies» à sanção capital, entendendo a sua execução como «contínua selecção operada pela morte dos que são menos aptos para a luta pela vida». Durante largo tempo se associou esta sanção às concepções absolutas dos fins das penas. A justa retribuição do mal, ainda que entendida em perspectiva não taliónica, mas axiológico-valorativa, levaria ínsita a necessidade de, nos crimes em que a culpa fosse mais elevada, se privar o delinquente da própria vida. Como, entre outros, MARC ANCEL e BETTIOL advogavam, inexiste tal relação entre pena capital e teorias ético-retributivas, desde logo porquanto estas afivelam «o indivíduo como supremo valor» da intervenção penal, o que se exprime em uma concepção personalista de culpa, condição de um Estado de Direito democrático.
De um prisma preventivo-geral negativo, dir-se-á, agora, que nada mais pode afastar a comunidade do crime que a dureza e a severidade das suas sanções. BECCARIA, porventura como ninguém, lançou as bases teóricas de posição contrária, chamando a atenção para a efectividade e rapidez na aplicação sancionatória. Bases essas a que se juntam repetidos estudos criminológicos que concluem no sentido de que, introduzindo a pena de morte, após um ligeiro abaixamento da taxa de criminalidade, a mesma retorna aos habituais níveis, mercê da enorme complexidade factorial justificativa do delito. Permitimo-nos destacar, de entre esses aspectos, a fraca ou inexistente ressonância da pena capital nos ditos «criminosos por tendência», nos «criminosos por convicção» ou naqueles – realidade tão actual – que se sentem parte de um plano a eles próprios superior, de cariz religioso, ideológico ou político.
Para as concepções preventivas-especiais nascidas do Positivismo, em especial, a escola italiana e a «moderna escola alemã», encarado o crime como «doença», dar a morte aos delinquentes mais perigosos era realidade que por si se justificava. O utilitarismo e o determinismo de que partiam impunham a pena capital. Tragam-se de novo à lembrança FERRI e GARÓFALO. Mais ainda, cite-se JOÃO DE LEBRE E LIMA: «Pois que culpa tem o lôbo de ser um animal feroz? E, no entretanto, é precisamente a sua ferocidade que me obriga a apontar-lhe a carabina e a despejar-lhe na carcassa as balas precisas para o inutilizar.»
Com o trânsito para o Estado de Direito Social, o enfoque centra-se na ressocialização do agente, entendida não como imposição de uma metanóia interior, mas tão-somente como estabelecimento de condições adequadas a evitar a reincidência. Patrocinando-se tal entendimento, nascido de um optimismo antropológico, a pena de morte não encontra possibilidade lógica de defesa. Acresce a necessidade de o Estado demonstrar uma superioridade ética em relação ao próprio condenado, munindo-se de diversos instrumentos reactivos. Parafraseando MIGUEL TORGA, a pena de morte importaria «responder a um crime punível através de um crime não punido (…), pois que se abate, do mesmo passo, a parcela atacada e a soma atacante».
No tangente à irreparabilidade da pena capital e aos erros judiciários a que nenhum sistema está imune, é prudente recordar OSCAR WILDE«All trials are trials for one’s life as all sentences are sentences of death», e até mesmo os mais encarniçados apologistas da pena em mérito julgam ser esta «a única objecção séria que (…) [contra ela] se pode aduzir».
Duas questões. Se, parafraseando LACASSAGNE, cada sociedade tem os criminosos que merece, estaremos preparados para assumir a responsabilidade que nos impomos quando a comunidade se pronuncia pela pena máxima? Regressando ao imortal TORGA: não nos transformaremos, então, em «um grotesco Deus de pacotilha»?