Shahd Wadi queria poder chamar feministas às palestinianas. Começou por estudar as mulheres palestinianas como forma de se conhecer melhor a si própria e escreveu a primeira tese em Estudos Feministas feita em Portugal. Shahd Wadi estava à procura das suas raízes. Tinha 15 anos quando pisou o solo da Palestina pela primeira vez, com autorização para ir à Cisjordânia ver os pais, exilados na Jordânia. Durante a visita, uma amiga apontou para uma montanha e disse-lhe que ali era a vila de onde os seus avós tinham sido obrigados a partir em 1948. Ainda levaram a chave de casa, acreditando que seria temporário. Estava tão próxima e não podia lá ir. Foi assim que Shahd Wadi, hoje com 27 anos e a viver em Portugal, percebeu o que queria dizer "ocupação" e foi "naquele momento" que a Palestina se tornou o seu "projecto de vida".
"Feminismos dos corpos ocupados: As mulheres palestinianas entre duas resistências" é o título da tese de mestrado que Shahd Wadi defendeu a 25 de Janeiro na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, notada com 18 valores. É a primeira tese em Estudos Feministas do país - apesar de existirem áreas semelhantes noutras faculdades, nenhuma adopta a designação "feministas". Mas porquê este tema? Shahd Wadi vem de uma família que, nas suas palavras, foi "forçada ao exílio duas vezes". "Antes da ocupação a minha família vivia numa vila nos territórios que foram ocupados em 1948, hoje Israel, e foram obrigados ao exílio para a Cisjordânia. O meu pai nasceu lá, numa tenda de refugiados, e, depois, foram obrigados ao exílio, uma vez mais, em 1967, para a Jordânia", conta. Apesar de ter nascido no Egipto - a mãe é egípcia - e de ter vivido a maior parte do tempo na Jordânia, onde estudou Línguas, Shahd Wadi é também palestiniana. Hoje vive em Portugal, onde está a fazer um estágio no gabinete de tradução e imprensa na Delegação-Geral da Palestina. Veio "por amor", casou-se com um português e mora em Lisboa há 4 anos. "A Palestina está em todo o lado. Como perdemos a terra, recuperámo-la em qualquer sítio.", e isso é ser palestiniana. Na Cisjordânia esteve apenas duas vezes e por "pequenos períodos". Ao irmão nunca foi dado o bilhete de identidade necessário e o resto da família, apesar de autorizada, não quis voltar lá sem ele. "É agnóstica. E interessa-se por feminismo - podia estar mais longe dos estereótipos que diz existirem no Ocidente sobre as mulheres árabes? "Cá poucas pessoas conhecem as políticas, as escritoras, as pintoras...", afirma. Conhecem a refugiada em frente à tenda, a mãe com o vestido tradicional que, às vezes, chora, outras celebra a morte dos filhos, a lutadora com pedras, a bombista suicida, a oprimida, a revolucionária, a pobre, a terrorista. Representações que fazem parte de uma realidade bem mais complexa que é a Palestina e o conflito israelo-palestiniano, continua. Quem são elas afinal? Esta foi a pergunta de Shahd Wadi, que ouviu muitas "estórias das mulheres palestinianas" contadas pela mãe, Sana, a Moharram, que trabalha na área da cultura da Organização de Libertação da Palestina (OLP). O pai, Farouq Wadi, é escritor. Na sua tese, Wadi - que teve como orientadora Adriana Bebiano, investigadora do Centro de Estudos Sociais de Coimbra e uma das coordenadoras do mestrado e doutoramento em Estudos Feministas - situa-as no conflito, percebe que efeitos tem na vida delas. A conclusão a que chega é a de que, "apesar de viverem sob ocupação e numa sociedade sexista, há muitos sinais de um certo grau de emancipação política e cultural". Com a ocupação, "as mulheres emergiram no espaço público". De todas as classes e idades, com ou sem consciência feminista: de políticas que organizaram congressos a camponesas que tiraram o véue dividiram o trabalho com os homens. Muitas mulheres, conta, começaram a "participar activamente", de forma espontânea ou formal, no "movimento da resistência". Há vários testemunhos citados na tese - retirados de jornais, livros, filmes -, como o de uma mulher que "foi aprisionada por ter contrabandeado cartas da OLP para o filho". Quando foi presa, afirmou não pertencer a "nenhum movimento político palestiniano", mas desde que lhe levaram o filho, arranjou o "passatempo" de "trabalhar para a revolução". Shahd Wadi diz que as casas de muitas mulheres se tornaram "espaços públicos" e conta a história de uma mãe que disse não poder "ficar parada, com as mãos cruzadas, à espera" que o filho lhe desse uma tarefa. Quando o via em casa com colegas "a discutir coisas com a porta fechada" assumia a "função de vigiar". Era ela quem ia ao advogado e ao médico tratar dos assuntos do filho quando ele estava preso. Estivesse ele "fora ou dentro da prisão", ela, mesmo sem ser membro, sentia-se "recrutada" pelo partido "a que ele pertence". "As mães têm um papel político, para além do tradicional", explica. Há ainda o relato de uma mulher que "enfrentou os soldados", depois de ter escondido o marido na cozinha, dizendo-lhe que "as mulheres aguentam mais do que os homens". Porém, muitas destas mulheres ainda recusam os "feminismos" por os associarem a "valores ocidentais inadequados". Serão, afinal, "movimentos nacionalistas ou feministas?", pergunta-se Wadi, para quem não há uma luta ou outra, as duas são formas de "libertação" que existem lado a lado. Mas "podemos ter a coragem de lhes chamar movimentos feministas?", pergunta na sua tese. "Não sei se tenho coragem, mas gostaria de dizer: "Acho que sim." (Público)
Mulheres que não se vergam nem cedem às suas próprias culturas, porque é outra a cultura (a dos direitos das mulheres) por que lutam.