Romero Magalhães diz que falta fazer justiça à I República e lembra que, no Estado Novo, os pretendentes monárquicos ignoravam a luta pela liberdade, no livro "Vem aí a República - 1906-1910".
Centra-se no período entre 1906 e 1910 aquilo a que o historiador Joaquim Romero Magalhães chama a sua proclamação da República. Mais do que fazer uma revisão da matéria dada, o autor visita as fontes, redescobrindo o processo de queda do regime monárquico em Portugal. No livro estão as respostas às questões que o tema suscita. Aqui, cabem outros assuntos, da escrita da História ao estado do país, aos olhos de um republicano dos quatro costados.
Centra-se no período entre 1906 e 1910 aquilo a que o historiador Joaquim Romero Magalhães chama a sua proclamação da República. Mais do que fazer uma revisão da matéria dada, o autor visita as fontes, redescobrindo o processo de queda do regime monárquico em Portugal. No livro estão as respostas às questões que o tema suscita. Aqui, cabem outros assuntos, da escrita da História ao estado do país, aos olhos de um republicano dos quatro costados.
Esta obra, sucessivamente adiada, vem a lume no momento oportuno, às portas do centenário. É urgente debater a República. A nossa interpretação do presente precisa de ser espicaçada pela história do nosso passado, história que muitas vezes anda escondida e deturpada por uma memória colectiva que foi sendo construída por propagandas adversas. A República é a concretização política da cidadania plena. O cidadão encontra-se no centro do regime democrático em que vivemos - reencontrado depois de ter estado abafado durante quase cinquenta anos. Há hoje muita gente que não recorda ou não sabe o que foram esses tempos, que não faz a mínima ideia do que é viver em regime autoritário. E que diferença entre a opressão e a liberdade!
A História, para além de ser uma forma de conhecimento "cientificamente conduzido" como queria Lucien Febvre, é também alimento de cidadania. Mas tem de se valer da escrita - é esse o seu veículo. Portanto os historiadores devem preocupar-se também com a qualidade da expressão que são capazes de conseguir. O que exige persistência - a menos de se dispor de um talento inato, o que poucos possuem. Acontece que nem todos os historiadores têm a paciência para treinar a expressão literária. E esses tornam difícil a transmissão daquilo que sabem, que descobrem, que explicam. Como convencer todos os historiadores a atentar na qualidade literária é coisa em que os leitores devem ter uma palavra: comprando ou não os livros que lhes apresentam.
A monarquia caiu de madura, assim como o Estado Novo. É um país que espera pelas rupturas, mais do que provocá-las? Não sei se há algum país onde as mudanças antecipem o que a realidade exige. Há predisposições sociais que vão gerando o ambiente onde as explosões depois ocorrem. E nem sempre o que é desejado por muitos acontece. Não estava maduro, diz-se. Com a República em Portugal foi assim. A grande indignação popular contra o ultimatum inglês conduziu à revolta do 31 de Janeiro de 1891 no Porto. Mas a grande massa ainda não estava convencida da necessidade da República. E assim a repressão pôde exercer-se. Só quando a propaganda soube mostrar o que estava errado na monarquia é que o regime caiu. Os propagandistas da República sabiam bem isso. Há fluxos e refluxos. Há momentos favoráveis e desfavoráveis. Como se diz popularmente, é preciso dar tempo ao tempo... Quando as frutas estão maduras caem da árvore.
Para a queda da monarquia foi essencial o descontentamento generalizado. Noutra medida, também hoje há desilusão. Hoje não há uma crise dos valores republicanos, pois que eles estão assentes e aceites por quase todos. A democracia que temos é republicana, sem contestação. Não há uma crise de regime, nem ele está posto em causa - há é deficiências de funcionamento, corrigíveis. E é assim desde 1910. A República impediu a restauração monárquica porque o povo português assim o quis. Nem as incursões vindas da Galiza (1911-1912), nem as inúmeras tentativas de sublevação, nem as ditaduras de Pimenta de Castro (1915) e Sidónio Pais (1917-1918), nem a Monarquia do Norte e a Traulitânia (1919), nem sequer a ditadura militar e depois civil a partir de 1926 conseguiram restaurar a monarquia. Era essa uma falsa questão. Mesmo com a perda de conteúdo democrático da ditadura de Salazar não houve o atrevimento de eliminar essa quase que só aparência republicana (Presidente, bandeira, hino e papel timbrado). Fazê-lo era arriscar a quebra da unidade nacional.
Vê o regicídio como algo ambíguo, não pretendido nem desdenhado, fruto de uma conspiração que nem o terá chegado a ser. Precipitou, ou não, a queda da monarquia? O que teria sido se... é o chamado nariz de Cleópatra. Se o nariz da famosa rainha egípcia fosse muito comprido e feio os generais romanos não se teriam apaixonado por ela e o destino do mundo teria sido outro. Seria se... sempre o condicional. Quem sabe? A História não pode lidar com isso. O que parece, pelo encadear dos acontecimentos, é que a vontade do rei D. Carlos em sustentar a ditadura de João Franco foi violentamente vencida. E essa seria como que um último recurso para salvar a monarquia. Pelo menos assim parece que era a ditadura tida pelo rei e pelo governante. Que com o regicídio não teve continuidade. O tempo de reinado do jovem D. Manuel II mostrando falta de soluções para a crise, agravada pela conflitualidade entre várias forças políticas monárquicas que se combatiam entre elas puseram o regime à mercê de desaires sobre desaires e conduziram ao 5 de Outubro de 1910.
Em termos de conspirações, é muito difícil saber o que se passou, porque quase tudo é secreto, não se fazem actas... Mas, em geral, as tentativas anteriores falharam por deficiente organização e por falta de apoios devidamente preparados. Só quando se conjugaram alguns regimentos (poucos mas decisivos, como Infantaria 16 e Artilharia 1) com a Marinha, na sua quase totalidade, foi possível avançar. Junto com isto, destaca-se a acção da Carbonária, que se organizou para agir e, embora com pouco armamento, conseguiu dominar as ruas de Lisboa e paralisar e impedir a saída de unidades militares dos sítios onde as instalaram (Necessidades e Rossio). Além disso, houve um plano de defesa da monarquia que se revelou inadequado. Da convergência de tudo isto resultou a proclamação do 5 de Outubro, que logo teve enorme apoio popular em Lisboa e no Porto - e que foi proclamada pelo telégrafo em todo o País (como previra João Chagas). A monarquia nem sequer esboçou uma defesa.
É na estigmatização da I República que assenta, ainda, a defesa da monarquia. A ditadura salazarista (a que devemos chamar Estado Novo) ergueu uma tremenda propaganda contra a I República, culpada de todos os males da pátria. Mas sobretudo daquilo que os monárquicos e os reaccionários chamavam anarquia e desordem. E condenando todas as transformações modernizadoras por que passou a sociedade portuguesa - nomeadamente as leis de separação da Igreja e do Estado, as da família, a do registo civil - isto sem falar da legislação social, bem mais importante do que comummente se julga. O que os reaccionários pretendiam era a "ordem" e a ordem pela força. E ao fim de muitos anos a bater essa tecla naturalmente que o efeito de culpabilização da I República foi conseguido. Na II República (desde 1974) pouco ainda foi feito para que justiça fosse feita à I República, em termos de memória colectiva. E surgiram mesmo historiadores que procuram dar conteúdo histórico às acusações propagandísticas que eram feitas.
Excluindo Espanha, é na Europa meridional e conservadora que os regimes republicanos se impõem, mas mesmo no Norte da Europa as monarquias não são consensuais. Tampouco há um modelo apenas de monarquia, e muito menos a popularidade dos reis ou rainhas é idêntica em todos os países onde ainda subsistem, que são bem poucos. O que pode afirmar-se é que as famílias reinantes souberam perder as regalias políticas de que dispunham a favor da manutenção dos regimes monárquicos. Mesmo que o monarca tenha ficado só com uma figuração simbólica, e reduzido a meras funções protocolares, como é já o caso na Suécia. Mas sempre há que contar também com as pessoas. E houve, em tempos não muito longínquos, monarcas que se prestigiaram na defesa da liberdade para os seus povos. E assim se fizeram estimar, casos dos Países Baixos, da Dinamarca e da Noruega. A oposição ao regime nazi teve o efeito de reforçar essas realezas. Em Portugal, os pretendentes monárquicos bem se acomodaram com a ditadura salazarista, nunca se revelaram aliados da liberdade. Não há que esquecer que queriam a restauração e que ignoravam a luta pela liberdade.
A grande visibilidade dada a sectores monárquicos da nossa sociedade, que aparentam ser pouco representativos, justifica-se porque cada um tem as posições políticas que entende serem as melhores. É um direito inerente à pessoa humana, que merece todo o respeito. Há quem tenha naturalmente boas razões para isso, quem prefira ser súbdito a ser cidadão, quem entenda que se deve preferir a desigualdade à igualdade. Há também os sempre saudosistas, há os sempre reaccionários, há sempre os que gostariam de possuir títulos de nobreza, que a monarquia no século XIX vendeu com fartura. E há também aqueles que ambicionam tornar-se objecto de atenção do público. Para isso há até alguma imprensa especializada. Há quem goste disso: quer os que são vistos, quer os que vêem. Uma sociedade tem que englobar tudo: para que haja exibicionistas tem que haver quem goste de assistir a exibições.
A História, para além de ser uma forma de conhecimento "cientificamente conduzido" como queria Lucien Febvre, é também alimento de cidadania. Mas tem de se valer da escrita - é esse o seu veículo. Portanto os historiadores devem preocupar-se também com a qualidade da expressão que são capazes de conseguir. O que exige persistência - a menos de se dispor de um talento inato, o que poucos possuem. Acontece que nem todos os historiadores têm a paciência para treinar a expressão literária. E esses tornam difícil a transmissão daquilo que sabem, que descobrem, que explicam. Como convencer todos os historiadores a atentar na qualidade literária é coisa em que os leitores devem ter uma palavra: comprando ou não os livros que lhes apresentam.
A monarquia caiu de madura, assim como o Estado Novo. É um país que espera pelas rupturas, mais do que provocá-las? Não sei se há algum país onde as mudanças antecipem o que a realidade exige. Há predisposições sociais que vão gerando o ambiente onde as explosões depois ocorrem. E nem sempre o que é desejado por muitos acontece. Não estava maduro, diz-se. Com a República em Portugal foi assim. A grande indignação popular contra o ultimatum inglês conduziu à revolta do 31 de Janeiro de 1891 no Porto. Mas a grande massa ainda não estava convencida da necessidade da República. E assim a repressão pôde exercer-se. Só quando a propaganda soube mostrar o que estava errado na monarquia é que o regime caiu. Os propagandistas da República sabiam bem isso. Há fluxos e refluxos. Há momentos favoráveis e desfavoráveis. Como se diz popularmente, é preciso dar tempo ao tempo... Quando as frutas estão maduras caem da árvore.
Para a queda da monarquia foi essencial o descontentamento generalizado. Noutra medida, também hoje há desilusão. Hoje não há uma crise dos valores republicanos, pois que eles estão assentes e aceites por quase todos. A democracia que temos é republicana, sem contestação. Não há uma crise de regime, nem ele está posto em causa - há é deficiências de funcionamento, corrigíveis. E é assim desde 1910. A República impediu a restauração monárquica porque o povo português assim o quis. Nem as incursões vindas da Galiza (1911-1912), nem as inúmeras tentativas de sublevação, nem as ditaduras de Pimenta de Castro (1915) e Sidónio Pais (1917-1918), nem a Monarquia do Norte e a Traulitânia (1919), nem sequer a ditadura militar e depois civil a partir de 1926 conseguiram restaurar a monarquia. Era essa uma falsa questão. Mesmo com a perda de conteúdo democrático da ditadura de Salazar não houve o atrevimento de eliminar essa quase que só aparência republicana (Presidente, bandeira, hino e papel timbrado). Fazê-lo era arriscar a quebra da unidade nacional.
Vê o regicídio como algo ambíguo, não pretendido nem desdenhado, fruto de uma conspiração que nem o terá chegado a ser. Precipitou, ou não, a queda da monarquia? O que teria sido se... é o chamado nariz de Cleópatra. Se o nariz da famosa rainha egípcia fosse muito comprido e feio os generais romanos não se teriam apaixonado por ela e o destino do mundo teria sido outro. Seria se... sempre o condicional. Quem sabe? A História não pode lidar com isso. O que parece, pelo encadear dos acontecimentos, é que a vontade do rei D. Carlos em sustentar a ditadura de João Franco foi violentamente vencida. E essa seria como que um último recurso para salvar a monarquia. Pelo menos assim parece que era a ditadura tida pelo rei e pelo governante. Que com o regicídio não teve continuidade. O tempo de reinado do jovem D. Manuel II mostrando falta de soluções para a crise, agravada pela conflitualidade entre várias forças políticas monárquicas que se combatiam entre elas puseram o regime à mercê de desaires sobre desaires e conduziram ao 5 de Outubro de 1910.
Em termos de conspirações, é muito difícil saber o que se passou, porque quase tudo é secreto, não se fazem actas... Mas, em geral, as tentativas anteriores falharam por deficiente organização e por falta de apoios devidamente preparados. Só quando se conjugaram alguns regimentos (poucos mas decisivos, como Infantaria 16 e Artilharia 1) com a Marinha, na sua quase totalidade, foi possível avançar. Junto com isto, destaca-se a acção da Carbonária, que se organizou para agir e, embora com pouco armamento, conseguiu dominar as ruas de Lisboa e paralisar e impedir a saída de unidades militares dos sítios onde as instalaram (Necessidades e Rossio). Além disso, houve um plano de defesa da monarquia que se revelou inadequado. Da convergência de tudo isto resultou a proclamação do 5 de Outubro, que logo teve enorme apoio popular em Lisboa e no Porto - e que foi proclamada pelo telégrafo em todo o País (como previra João Chagas). A monarquia nem sequer esboçou uma defesa.
É na estigmatização da I República que assenta, ainda, a defesa da monarquia. A ditadura salazarista (a que devemos chamar Estado Novo) ergueu uma tremenda propaganda contra a I República, culpada de todos os males da pátria. Mas sobretudo daquilo que os monárquicos e os reaccionários chamavam anarquia e desordem. E condenando todas as transformações modernizadoras por que passou a sociedade portuguesa - nomeadamente as leis de separação da Igreja e do Estado, as da família, a do registo civil - isto sem falar da legislação social, bem mais importante do que comummente se julga. O que os reaccionários pretendiam era a "ordem" e a ordem pela força. E ao fim de muitos anos a bater essa tecla naturalmente que o efeito de culpabilização da I República foi conseguido. Na II República (desde 1974) pouco ainda foi feito para que justiça fosse feita à I República, em termos de memória colectiva. E surgiram mesmo historiadores que procuram dar conteúdo histórico às acusações propagandísticas que eram feitas.
Excluindo Espanha, é na Europa meridional e conservadora que os regimes republicanos se impõem, mas mesmo no Norte da Europa as monarquias não são consensuais. Tampouco há um modelo apenas de monarquia, e muito menos a popularidade dos reis ou rainhas é idêntica em todos os países onde ainda subsistem, que são bem poucos. O que pode afirmar-se é que as famílias reinantes souberam perder as regalias políticas de que dispunham a favor da manutenção dos regimes monárquicos. Mesmo que o monarca tenha ficado só com uma figuração simbólica, e reduzido a meras funções protocolares, como é já o caso na Suécia. Mas sempre há que contar também com as pessoas. E houve, em tempos não muito longínquos, monarcas que se prestigiaram na defesa da liberdade para os seus povos. E assim se fizeram estimar, casos dos Países Baixos, da Dinamarca e da Noruega. A oposição ao regime nazi teve o efeito de reforçar essas realezas. Em Portugal, os pretendentes monárquicos bem se acomodaram com a ditadura salazarista, nunca se revelaram aliados da liberdade. Não há que esquecer que queriam a restauração e que ignoravam a luta pela liberdade.
A grande visibilidade dada a sectores monárquicos da nossa sociedade, que aparentam ser pouco representativos, justifica-se porque cada um tem as posições políticas que entende serem as melhores. É um direito inerente à pessoa humana, que merece todo o respeito. Há quem tenha naturalmente boas razões para isso, quem prefira ser súbdito a ser cidadão, quem entenda que se deve preferir a desigualdade à igualdade. Há também os sempre saudosistas, há os sempre reaccionários, há sempre os que gostariam de possuir títulos de nobreza, que a monarquia no século XIX vendeu com fartura. E há também aqueles que ambicionam tornar-se objecto de atenção do público. Para isso há até alguma imprensa especializada. Há quem goste disso: quer os que são vistos, quer os que vêem. Uma sociedade tem que englobar tudo: para que haja exibicionistas tem que haver quem goste de assistir a exibições.
O importante é que em Portugal não haja uma questão de regime e que a República satisfaça plenamente a realização dos direitos do homem e do cidadão.