Em vésperas do dia dos cravos, algumas notas sobre o legado que o 25 de Abril de 1974 deixou à sociedade portuguesa: a democracia e com esta um quadro mais promissor para o desenvolvimento. Os passos da democracia chegádos à maturidade viram nascer e crescer uma geração de portugueses que dá por adquirida um regime de direitos, liberdades e garantias, e o toma por banal. Cada vez, aparentemente, para um número crescente de jovens, o domingo próximo, que peca apenas por não ser um feriado a intervalar o frenesim diário, a revisão das imagens da transição para a democracia mais lhes parece a imagem desfocada de «um outro país», cuja compreensão interessa a pouco mais que aos historiadores. A própria história de vida de muitos dos homens que assumiram o protagonismo de Abril é-lhes desconhecida e os seus relatos surgem como memórias de um passado que não foi o seu e que muitos dos pais da minha geração não soube incorporar na herança genética desta nova massa de cidadãos. O desconhecimento do que era o silêncio e o medo de "as paredes terem ouvidos" nada representa numa época marcada pela desinformação e por uma libertinagem de pensamento e de ideias que confunde até os espíritos mais esclarecidos. Como em qualquer outra ruptura política, as memórias dos vencedores e perdedores perduraram nos tempos próximos, mas dificilmente se pode dizer que marcaram esta nova geração, ainda que via familiar, pelo que lhes é difícil, mesmo sob a prova comprovada dos filmes, imaginar como era o país em 1974 e como ele mudou.
A implantação da democracia em Portugal teve actores singulares e explicar os porquês destas singularidades não é fácil. Primeiro, há que lembrar que se tratou de um golpe de Estado militar pró-democrático, contrariamente à generalidade dos casos em que, no século XX, estes implantaram ditaduras. Segundo, explicar o muito que se seguiu, nomeadamente a crise do Estado, os fortes movimentos sociais, a reforma agrária, as nacionalizações ou alguma violência política. A memória desses tempos ainda apresenta controversos contrastes para as gerações mais velhas e sobretudo para as elites sociais portuguesas: a vaga anticapitalista de 1975 representou o maior «susto» que tiveram no século XX, mas o mais impressionante foi a rapidez com que a democracia se consolidou e muitas destas clivagens se apagaram na sociedade portuguesa. Realizar em simultâneo a descolonização do último império europeu e a democratização explica parte da crise inicial da institucionalização da democracia em Portugal. Manter as colónias era uma causa sacralizada do Salazarismo e foi esta resistência tenaz aos ventos da história que explica a curiosa forma da sua abrupta queda em 1974. Conhecendo uma forte, ainda que curta, radicalização, a institucionalização da democracia acabou por ser um sucesso.
A rápida emergência de uma legitimidade eleitoral que consagrou a vitória de uma esquerda e de uma direita democráticas não era inevitável, mas acabou por provocar o desaparecimento quer do legado da Ditadura quer da radicalização antidemocrática de 1975.
No início dos anos 80 do século passado, Portugal tornou-se finalmente «uma democracia como as outras», pela primeira vez na sua história.
Seria um erro primário e finalista ver os discursos da época com os olhos de hoje. Com as excepções do costume, cada vez mais raras, ficaríamos todos admiradores de Mário Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral ou Ramalho Eanes. Ainda que o amor não imperasse entre eles, o arco da institucionalização da democracia passou por aqui. O processo foi mais complexo, mas ainda assim ficámos sem alguns escolhos incómodos numa ainda frágil democracia. O Salazarismo não nos legou nenhum partido anti-sistema com expressão eleitoral e o PCP integrou-se rapidamente na ordem democrática.
Não é fácil consolidar uma democracia num quadro de pobreza, analfabetismo e ruralidade, problemas bem visíveis em muitas sociedades do mundo subdesenvolvido, ora Portugal era um país subdesenvolvido em 1974.
Por mais que nos queixemos das insuficiências e dramas dos dias de hoje, não é fácil imaginar um país onde quase metade dos seus cidadãos não tinham electricidade, água canalizada ou esgotos nas suas casas. Onde uma grande parte dos cidadãos não tinha acesso a cuidados primários de saúde e 30% deles não conseguia ler um letreiro de uma porta.
Esse Portugal, onde a modernidade de alguns coexistia com uma boa parte da população vestida de preto em cima de um burro desapareceu progressivamente nos últimos anos e não foi apenas produto de maior riqueza. Se assim fosse, muitos países do chamado «terceiro mundo» seriam certamente mais desenvolvidos do que Portugal. Sem democracia, riqueza nem sempre é sinónimo de desenvolvimento.
A inserção internacional de Portugal no quadro da União Europeia a partir dos anos 80 não representou apenas uma opção de consolidação da democracia, mas também o reconhecimento da necessidade de criar um imperativo para as elites e a sociedade portuguesa, no sentido de as impulsionar para a modernização e o desenvolvimento. O relativo consenso dos maiores partidos da nossa democracia em torno da integração europeia e das reformas que tornaram Portugal uma sociedade mais aberta foram um passo essencial para a melhoria sensível das condições de vida dos portugueses.
Quando os nossos jovens olham, hoje, para as imagens de 1974 como as de «um outro país», é importante que lhes lembremos que é a elas que devemos a espantosa evolução que caracterizou Portugal nos últimos anos da sua (já quase madura, porém imatura) democracia.
A implantação da democracia em Portugal teve actores singulares e explicar os porquês destas singularidades não é fácil. Primeiro, há que lembrar que se tratou de um golpe de Estado militar pró-democrático, contrariamente à generalidade dos casos em que, no século XX, estes implantaram ditaduras. Segundo, explicar o muito que se seguiu, nomeadamente a crise do Estado, os fortes movimentos sociais, a reforma agrária, as nacionalizações ou alguma violência política. A memória desses tempos ainda apresenta controversos contrastes para as gerações mais velhas e sobretudo para as elites sociais portuguesas: a vaga anticapitalista de 1975 representou o maior «susto» que tiveram no século XX, mas o mais impressionante foi a rapidez com que a democracia se consolidou e muitas destas clivagens se apagaram na sociedade portuguesa. Realizar em simultâneo a descolonização do último império europeu e a democratização explica parte da crise inicial da institucionalização da democracia em Portugal. Manter as colónias era uma causa sacralizada do Salazarismo e foi esta resistência tenaz aos ventos da história que explica a curiosa forma da sua abrupta queda em 1974. Conhecendo uma forte, ainda que curta, radicalização, a institucionalização da democracia acabou por ser um sucesso.
A rápida emergência de uma legitimidade eleitoral que consagrou a vitória de uma esquerda e de uma direita democráticas não era inevitável, mas acabou por provocar o desaparecimento quer do legado da Ditadura quer da radicalização antidemocrática de 1975.
No início dos anos 80 do século passado, Portugal tornou-se finalmente «uma democracia como as outras», pela primeira vez na sua história.
Seria um erro primário e finalista ver os discursos da época com os olhos de hoje. Com as excepções do costume, cada vez mais raras, ficaríamos todos admiradores de Mário Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral ou Ramalho Eanes. Ainda que o amor não imperasse entre eles, o arco da institucionalização da democracia passou por aqui. O processo foi mais complexo, mas ainda assim ficámos sem alguns escolhos incómodos numa ainda frágil democracia. O Salazarismo não nos legou nenhum partido anti-sistema com expressão eleitoral e o PCP integrou-se rapidamente na ordem democrática.
Não é fácil consolidar uma democracia num quadro de pobreza, analfabetismo e ruralidade, problemas bem visíveis em muitas sociedades do mundo subdesenvolvido, ora Portugal era um país subdesenvolvido em 1974.
Por mais que nos queixemos das insuficiências e dramas dos dias de hoje, não é fácil imaginar um país onde quase metade dos seus cidadãos não tinham electricidade, água canalizada ou esgotos nas suas casas. Onde uma grande parte dos cidadãos não tinha acesso a cuidados primários de saúde e 30% deles não conseguia ler um letreiro de uma porta.
Esse Portugal, onde a modernidade de alguns coexistia com uma boa parte da população vestida de preto em cima de um burro desapareceu progressivamente nos últimos anos e não foi apenas produto de maior riqueza. Se assim fosse, muitos países do chamado «terceiro mundo» seriam certamente mais desenvolvidos do que Portugal. Sem democracia, riqueza nem sempre é sinónimo de desenvolvimento.
A inserção internacional de Portugal no quadro da União Europeia a partir dos anos 80 não representou apenas uma opção de consolidação da democracia, mas também o reconhecimento da necessidade de criar um imperativo para as elites e a sociedade portuguesa, no sentido de as impulsionar para a modernização e o desenvolvimento. O relativo consenso dos maiores partidos da nossa democracia em torno da integração europeia e das reformas que tornaram Portugal uma sociedade mais aberta foram um passo essencial para a melhoria sensível das condições de vida dos portugueses.
Quando os nossos jovens olham, hoje, para as imagens de 1974 como as de «um outro país», é importante que lhes lembremos que é a elas que devemos a espantosa evolução que caracterizou Portugal nos últimos anos da sua (já quase madura, porém imatura) democracia.