quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

"Negligência do dever com o propósito de dar à luz!"

Numa época em que os direitos se nos apresentam como pré-adquiridos e de todos, vale a pena lembrar que quase todos eles foram conquistados e que, quase sempre também, se devem à coragem e à determinação de alguns.
A licença de maternidade, por exemplo, que, em Portugal, foi aprovada, pela primeira vez, pelo Decreto-Lei n.º 112/76, de 7 de Fevereiro, foi uma conquista.
Uma conquista que reporta à América, entre 1913 e 1915, e que foi o resultado de uma longa e dura batalha judicial de uma professora de Nova Iorque. Fora despedida a 22 de Abril de 1913, por estar grávida, a pretexto de “negligência do dever com o propósito de dar à luz”. Demonstrando uma coragem inusitada, a professora levou o caso a tribunal. 2 anos depois, o desfecho do processo marcou o reconhecimento do direito à licença de parto. Bridget Peixotto era membro da comunidade de judeus nova-iorquinos de ascendência portuguesa. Casara a 12 de Fevereiro de 1912 com Francis Raphael Maduro Peixotto e, por essa altura, trabalhava já há 18 anos no sistema de ensino primário nova-iorquino, passando sempre Com Distinção os exames de promoção aos escalões mais elevados do magistério primário. No ano lectivo de 1912/1913, Bridget e Francis Maduro Peixoto moravam no número 41 de St. Nichols Terrace, em Manhattan, e ela era professora principal da Escola Pública 14, em Thongs Neck, Bronx, com um salário anual de 2400 dólares. Em Fevereiro de 1913, Bridget, para além de estar grávida, adoece gravemente. Porque, em boa verdade, era suposto que as professoras não se deviam manter em funções após a maternidade, as autoridades escolares aproveitaram o facto, suspenderam-na e depois despediram-na, por “negligência do dever com o propósito de dar à luz”. Bridget Peixotto decidiu desafiar o status quo e declarou a 29 de Maio de 1913, ao New York Times: "Contestarei o caso até ao fim. O Conselho Educativo, ao permitir que mulheres casadas ensinem ao mesmo tempo que as proíbe de cumprirem uma função fundamental do casamento, está a agir de forma ilegal. É absolutamente imoral e não será apoiado por nenhum tribunal. Em nenhum lado se pode proclamar a maternidade como uma negligência do dever. É permitido às mulheres casadas ensinarem nas escolas públicas, mas negasse-lhes tempo para que tenham filhos." Como na primeira instância, o Conselho Educativo manteve a decisão (27 contra 5 a favor), avançou para os tribunais. O processo foi-se arrastando com várias decisões judiciais em seu favor, por ordem do Supremo Tribunal, e, em 1914, Bridget Peixotto faz uma exposição ao Comissário Estadual para a Educação, ao que este responde: “A Senhora Peixotto foi acusada de negligência do dever, mas não foi declarada culpada de negligência — foi sim declarada culpada de ter dado à luz.” Por fim, em Janeiro de 1915, John Finley dá ordens para que Bridget Peixotto seja reabilitada nas suas funções com salário pago por completo. 3 anos depois torna-se directora da escola. Quando falece aos 92 anos de idade, deixou um legado de que ainda hoje usufruimos. No obituário, o New York Times afirmava que ela era “responsável pela institucionalização da licença de parto por todo o país” e pelo mundo: “O seu caso permitiu que largos milhares de mulheres pudessem tirar uma licença para dar à luz. A decisão motivou também alterações no sistema do sector privado, fazendo com que hoje seja perfeitamente normal que uma mulher possa manter o emprego quando fica grávida.”
Uma mulher que não baixou os braços mas, ao invés, os levantou em prece para a Justiça. Certa de que, no que aos assuntos das mulheres se refere, às vezes, a Justiça "veste perfume de mulher".

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Alcoolemia: quando a multa dá em cadeia!

Se é verdade que o alcoól pode matar, também é verdade que a Justiça sai ferida com a questão da (punição da) alcoolemia. Numa decisão de que resultarão contrariedades para a recolha de contraprovas nos casos de condução sob influência de álcool, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela inconstitucionalidade da norma do Código da Estrada que estabelece que "o resultado da contraprova prevalece sobre o resultado do exame inicial", seguindo o entendimento jurisprudencial adoptado em Setembro. Para mais, persiste a questão da recolha de sangue para efeitos de contraprova, quando o condutor se recusa a fazê-la, que os tribunais superiores também consideram inconstitucional, o que levou o Ministério da Justiça a admitir a alteração do decreto-lei que criminaliza aquela recusa.
A matéria é juridicamente complexa, por estar em causa uma inconstitucionalidade orgânica e que apenas abrange as situações em que as quantidades de álcool no sangue do condutor são susceptíveis de infracção criminal. Pelo contrário, nas demais situações, em que a taxa de alcoolemia subsume somente uma contra-ordenação, já não existe tal inconstitucionalidade. A questão coloca-se porque a alteração ao Código da Estrada que introduziu a dita norma partiu do Governo, ao abrigo de uma autorização legislativa da AR. Ora, os juízes do TC entendem que, quando aplicada em processo penal, ela reveste-se de natureza processual, obrigando a um específico regime de prova, matéria que sai fora da abrangência daquela autorização, que se restringia à revisão do Código da Estrada.
Nesta mais recente decisão, estava em causa um processo do Tribunal das Caldas da Rainha, tendo os juízes reafirmado as conclusões do acórdão de 28 de Setembro, suscitado por um processo do Tribunal de Cantanhede.
Deste modo, o governo terá de rever alguns dos artigos do Código da Estrada que regulamentam a fiscalização de condutores sob a influência de álcool, introduzidos em 2005, aquando da última revisão do Código. Estão postos em causa os processos penais pendentes contra as infracções cometidas por condutores que apresentaram valores acima de 1,2 g/l sangue - taxa que constitui crime. Depois de terem sido suscitadas dúvidas nos acórdãos na segunda instância, o TC confirma já três decisões no mesmo sentido. A terceira declaração de inconstitucionalidade permite que, a qualquer momento, um juiz do TC ou procuradores do Ministério Público requeiram a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
A situação encontra-se a ser apreciada na Secretaria de Estado da Protecção Civil, que tem competência delegada nessa matéria, até porque se trata de uma matéria juridicamente complexa e aplica-se a apenas alguns procedimentos da fiscalização de condutores. Como acontece com a obrigação de realizar a colheita de sangue, para efeito de contraprova e com a norma que determina que o resultado da contraprova prevalece sobre o resultado do exame inicial. O Ministério da Administração Interna pode agora: ou rever as normas, propondo um regime menos penalizador para o condutor; ou enviar uma proposta ao Parlamento para que este intervenha cirurgicamente, regulando a matéria.
O entendimento preconizado pelo TC e por outras decisões de tribunais da Relação é o de que quem se recusar a ceder amostras de sangue para medição do grau de alcoolemia não pode sequer ser punido. Até 2005, a lei previa a possibilidade de recusa, mas o condutor acabava por ser penalizado, por incorrer no crime de desobediência. Com a última alteração, passou a ser obrigatória a cedência de amostra sanguínea. Note-se que a questão da inconstitucionalidade não se coloca relativamente ao teste do balão, porque aqui o regime legal se manteve. Em Dezembro de 2009, a Relação do Porto anulou a condenação de uma multa de €400, bem como, a proibição de conduzir durante 3 meses aplicada a um vendedor de 41 anos que acusara uma taxa de 1,59 g/l, depois de ter ficado ferido num acidente de carro e de ter sido submetido, no hospital, a teste sanguíneo.
Uma falha jurídica que pode ter como efeito a despenalização de algumas "falhas" humanas! E, isso sim, é preocupante!

Republicanos, Carbonários e Monárquicos: o Regicídio


O centenário da República devolve à tona o tema do Regícidio. História é História, e, portanto, se sobre dalguns factos se pode falar com maior segurança a outros apenas se lhes pode dar a mera probabilidade de serem verídicos. De todo o modo, a História obriga à contextualização dos eventos e à sua compreensão à luz das motivações da época. Isto a propósito da coabitação amigável entre republicanos e monárquicos. Um facto que demonstra o que digo é que D. Duarte de Brangança, antes de casar com Isabel de Herédia, conhecia as responsabilidades do visconde de Ribeira Brava na marcha dos acontecimentos que, há cem anos, a meio da tarde do dia 1 de Fevereiro de 1908, levaram à morte de D. Carlos e do príncipe real Luís Filipe.
O que é dado a saber é que ambos foram baleados, em pleno Terreiro do Paço, por um professor de instrução primária, Manuel dos Reis Buíça, e por um empregado do comércio, Alfredo Costa.
Mas o que se fica por saber, e o que apenas pode ser relatado com algum grau de probabilidade, são as verdadeiras causas (imediatas, porque as mediatas são conhecidas), os autores morais de quem comandou, de quem ordenou e até - e é aqui que o avô de Isabel de Herédia (visconde de Ribeira Brava) vem ao caso - de quem os armou. O fim de uma monarquia de oito séculos. Nem sequer é seguro afirmar-se que o rei e o príncipe foram assassinados por estes dois homens. Peritagens recentes sugerem que Buíça seja tecnicamente responsável por ambas as mortes, porque Alfredo Costa já esvaziara o seu revólver em D. Carlos. A bala que matou D. Luís Filipe saíu da carabina Winchester, que Buíça escondera no seu capote, enquanto aguardava a chegada do landau que transportava o rei, a rainha D. Amélia e os dois filhos do casal: o herdeiro da Coroa e aquele que efectivamente a veio a herdar, ainda que por pouco tempo, o futuro D. Manuel II.
A polémica instala-se logo com a história da compra das armas. Em 1907, a fábrica norte-americana Winchester lançara um novo modelo de carabina semiautomática, com bloco de culatra reforçado para suportar o elevado calibre 351. Era uma arma de grande fiabilidade, que dava garantias de grande precisão. O armeiro Heitor Ferreira, estabelecido no actual Largo D. João da Câmara (a loja ainda existe) encomendou à sucursal europeia da Winchester, a casa Monkt, de Hamburgo, 9 carabinas do novo modelo, pelo preço de uma pequena fortuna. Mal a encomenda chegou, vendeu 3 carabinas a gente conhecida e rica (as vendas foram registadas num livro que, durante as investigações do processo do regicídio, desapareceu). As restantes 6 ficaram reservadas. A outra arma encontrada no local do atentado, a pistola FN Browning de calibre 7,65, usada por Alfredo Costa era também de um modelo muito avançado, portátil, funcional e foi, igualmente, adquirida a Heitor Ferreira (com o número de registo 349-432).
Compradas as armas, faltava decidir quem as usaria. E, para tanto, requisitaram-se os serviços da «Coruja» (a célula-canteiro que funcionava fora do controlo da Alta Venda). Entre 28 e 31 de Janeiro, depois da reunião da Quinta do Ché e de outras, o plano foi afinado. E foi aqui que a «Coruja» entrou em cena. A «Coruja» funcionava como uma estrutura paralela à Carbonária, chefiada por José Maria de Sousa, António José dos Santos, Coelho Bastos e Henrique Cordeiro e era composta por gente corajosa e exaltada, cujo ideal era o de cumprir uma missão que, em consciência, podia implicar a perda da própria vida (horas antes do atentado, Costa pagou uma dívida, explicando ao credor que depois já não a poderia saldar e Buíça fez um testamento político e deixou uma carta à mulher que amava, explicando que se sacrificava pela pátria e que o fazia com a consciência de estar a “cumprir um dever”). Fica assim provado que os conspiradores republicanos e carbonários forneceram a mão-de-obra.
Persiste a questão de quem lhes pôs as armas nas mãos. Até há pouco tempo, acreditava-se que a Winchester de Buíça, dispendiosa, fora adquirida pelo visconde da Ribeira Brava e mais cinco. Mendo Castro Henriques, coordenador da obra "Dossier Regicídio: O Processo Desaparecido", assegura ter evidências documentais de que o comprador foi, afinal, o visconde de Pedralva que comprou as seis armas.
E se há evidências de que o plano foi bem arquitectado, o certo é que houve alguma displicência por parte do Governo quanto à segurança do chefe de Estado e dos seus familiares. No auge do clima pré-revolucionário, optar por os transportar em landau e não em automóvel fechado e sem uma escolta reforçada, é estranho. Uns dizem que nem João Franco nem o rei punham a hipótese de um atentado. Sabe-se que foi João Franco a exigir os landaus, em vez dos automóveis fechados, só não se sabe se foi ele que insistiu para viajar com a capota aberta. E porque é que João Franco não lhes garantiu a protecção policial adequada? D. Amélia viria a qualificar tal falta de loucura e ela mereceu-lge grande censura na época.
A verdade sobre o Regicídio, na fidelidade e lealdade aos factos, dificilmente virá a ser conhecida. O desaparecimento do respectivo processo fez com que restassem as conjecturas, as suposições, as teorias. Daí que José de Alpoim tenha dito «Só há duas pessoas em Portugal que sabem tudo – eu e outra» (referindo-se ao visconde da Ribeira Brava).
Não têem, pois, republicanos e monárquicos que fomentar antagonismos e, muito menos, protagonismos, porque a História tem um quadro cujos matizes nunca se conhecerão na íntegra e inequivocamente. A única coisa que lhes resta é a compreensão de que os tempos mudaram, que hoje se vive em Democracia, e que voltar atrás, seja para o Estado Novo seja para a Monarquia não é um caminho viável. É mesmo até impensável.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Verdades e Dogmas: a Santa Inquisição

Falar de verdades pré-adquiridas, produtos vendidos a incautos, é falar em dogmas - a atitude de se afirmar qualquer coisa, sobre o quer que seja, sem a demonstrar: a atitude de quem avança um certo número de "verdades" sem admitir discussão -- de um modo autoritário e peremptório.
A Inquisição foi talvez o maior exemplo do perigo que é transformar uma qualquer "verdade" (a verdade conveniente, adequada, politicamente correcta) num dogma.
Ilustra-o bem Dostoievski. Conta uma história. Resolve fazer Jesus Cristo regressar à terra. Ora, Jesus, achando que é sua missão, faz alguns milagres e outras tantas magias. A multidão reconhece-o, mas ante a incompreensão do que faz, trai-o quando o cardeal grande inquisidor ordena à sua polícia que o prenda. Já no calabouço, Jesus, na véspera de ser condenado à fogueira, começa um longo monólogo que é um dos mais belos trechos da literatura anti-romana. "Por que vieste inquietar-nos?", pergunta o grande inquisidor. "Porque Tu vieste inquietar-nos, sabe-lo bem. Amanhã vou condenar-Te a arder na fogueira como pai dos hereges, e este povo que hoje beijou os teus pés precipitar-se-á, amanhã, ao menor sinal meu, para atear as chamas da tua fogueira, estás ciente disso? (...) A liberdade da fé deles em Ti era o que, a Teus olhos, havia de mais precioso há quinze séculos. Não foste Tu quem disse: «Quero tornar-vos livres»? Ora aí está, já viste os homens livres (...) Sim, isso custou-nos caro, mas levámos essa obra até ao fim em Teu nome. Durante 15 séculos, esta liberdade deu-nos que fazer, mas agora acabou-se, acabou-se de vez. Não acreditas que se acabou de vez? Olhas-me com doçura e nem sequer te dignas insurgir-te? Mas fica sabendo que é agora, mais do que nunca, que os homens estão convencidos de que são totalmente livres, e no entanto foram eles próprios que nos entregaram a sua liberdade, depositando-a docilmente a nossos pés. Essa foi obra nossa, mas era esta a liberdade que Tu desejavas?"
Como em todas as histórias, também esta tem uma moral: os homens preferem certezas tranquilizadoras e a obediência e disciplina cegas, aos tormentos da liberdade, e, provavelmente, será por compaixão para com estes que a Igreja esmaga tudo o que considera heresia, todo o pensamento heterodoxo, todo o comportamento desviante, e impõe o "seu" magistério e a "sua" verdade.
É uma explicação que se aplica a todas as ditaduras do mundo.
Mas foi com a "Santa" Inquisição, lançada na Idade Média contra as heresias dos cátaros e dos valdenses, contra os judeus e os iluminados (alumbrados), na Espanha dos Reis Católicos, ou contra a república teocrática de Savonarola em Florença, que se provou uma das maiores perplexidades para a sabedoria humana: é mais fácil acreditar na verdade, como dogma, sem a questionar, sem exigir prova da sua veracidade, do que demandá-la, inquiri-la, e reclamar argumentos ou provas que a sufragem. Porque a(s) verdade(s) do(s) outro(s) já está feita e descobrir a verdade, exigir que se ateste a verdade, implica tempo e obriga a que descubramos uma verdade maior, às vezes oculta, despercebida, e, muitas vezes, incómoda e complexa. Quem foi que disse que a verdade é sempre simples? Quem a tem assente. Quem a acha um dogma.

Media e direito ao contraditório: o anátema!

O direito de defesa e a presunção de inocência, segundo preceitos constitucionais e da reacção contrária a estes princípios pela media na actualidade, ultrapassa os limites da razoabilidade e condena sumariamente e antecipadamente o acusado.
O presidente do Sindicato de Jornalistas critica o "Sol" por não ouvir os visados sobre o alegado plano do Governo para controlar os media. “As revelações do 'Sol' confirmam a necessidade de um esclarecimento cabal - inclusivamente pela Assembleia da República - porque há aqui uma nuvem muito densa que não pode continuar a pairar ou que deve ser dispersa o mais rapidamente possível”, afirmou Alfredo Maia. Tais notícias “criam na sociedade uma inquietação muito grande acerca da forma como o poder político e o poder económico se relacionam entre si e com os meios de comunicação social”, disse.
AM criticava, assim, o facto de o "Sol" não ter convidado os "arguidos" (porque, agora, o "Sol" é um tribunal-tipo-Santa-Inquisição, constitui arguidos, julga-os e condena-os) a exercer o seu direito ao contraditório. “Há um preceito no código deontológico que defende que é dever do jornalista ouvir todas as pessoas com interesses [na matéria], ouvir a outra face”, ou seja, “aquilo que se consagrou chamar o contraditório”, referiu. Esta obrigação de ouvir todos os interessados tem duas ordens de razão, explicou ainda, acrescentando que “é um direito dos visados e é um direito dos cidadãos conhecer o ponto de vista dos visados”.
Seguindo a curiosidade lançada por Armando Vara na audição perante a comissão parlamentar (mas já alvitrada por muitos outros cidadãos, incluindo jornalistas e políticos), talvez não fosse desinteressante seguir o rastilho à pergunta: Quem são os "verdadeiros" donos de o "Sol"?. Porque pode ser um forte contributo, para aquele que é o desiderato final do processo judicial (penal ou outro): a descoberta da verdade. Não a verdade de o "Sol", mas a verdade material. Coisa em que parece o "Sol" não está assim tão empenhado. Mas esta tendência generalizada para acusar sem auditar e contra-auditar é peculiar de um outro exercício que é o grande inimigo daqueloutro (do contraditório), que é o da prepotência. E, no caso, o da palavra prepontente, omnipresente e omnisciente. A do "Sol".
A lembrar uma história de um juiz numa comarca distante, no tempo em que havia despacho de citação. Recebida uma petição inicial, o juiz proferiu o seguinte despacho/sentença: "Nesta fase deveria ser proferido despacho a ordenar a citação do Réu (para exercer o contraditório e apresentar a sua versão dos factos). Porém, é do meu conhecimento pessoal que o Autor é uma pessoa séria e que portanto o que alega não pode deixar de ser verdade, não sendo em consequência necessário perder tempo a ouvir o Réu. Assim, julgo a acção procedente e condeno o Réu no pedido."
Acontece ainda hoje, não nos tribunais institucionais, mas nos tribunais instituídos, como pretendem ser hoje os media. Há sempre quem se baste com a versão dos factos do autor por entender ser absolutamente desnecessário e uma enorme perda de tempo permitir que o "arguido" exerça o seu direito inalienável ao contraditório.
São adeptos ferverosos da verdade-dogma, da verdade-anátema. A Justiça evoluiu. Os homens nem por isso.

Justiça Auditada: Vamos conhecer o relatório?


A 27.Jan assinalou-se a abertura do Ano Judicial e a estreia do ministro da Justiça, Alberto Martins. A intervenção de AM era aguardada com alguma expectativa já que nos primeiros três meses de mandato mostrou "vontade de mudar o que está mal" (presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais, Fernando Jorge). Ao contrário, o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, João Palma, disse "não ter grandes expectativas" em relação à Abertura do Ano Judicial. Da mesma opinião, foi o presidente da Associação Sindical dos Juízes Português, António Martins. Rui Rangel, da Associação Juízes pela Cidadania, disse que este tipo de cerimónia serve para "tirar o pó das togas e dos colares" e que "não espera nada" do evento.
Os portugueses têem manifestado a sua grande preocupação pelo estado da Justiça em Portugal.
Por isso, há que ficar atento às conclusões que venham a sair pelos magistrados europeus que iniciam hoje uma auditoria ao sistema de Justiça português. É uma iniciativa da Medel (associação de magistrados europeus). O objectivo é verificar se o sistema está de acordo "com as recomendações do Conselho da Europa" e "comparar e aproveitar experiências" (José Pedro Baranita, do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público).
Durante esta semana estarão em Portugal o juiz alemão Cristophe Strecker e o procurador espanhol José Maria Mena, que contactarão com magistrados de ambas as magistraturas - do topo e da base e de todos os tipos de tribunais -, com advogados, com deputados e com os sindicatos dos funcionários judiciais e das polícias.
Vão ainda visitar o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em Coimbra, onde serão recebidos por Boaventura de Sousa Santos, e pelo Centro de Estudos Judiciários.
"O objectivo é ter uma panorâmica o mais ampla possível" (José Pedro Baranita).
A mostrar que os auditores cumprem, e cumprem a tempo, o relatório da auditoria estará pronto dentro de um mês. A auditoria abrange o estudo da legislação, desde a Constituição, aos Códigos e às leis orgânicas, e segue-se de "um trabalho de campo". Vão estudar "o volume processual", "a forma como o sistema se organiza para dar resposta" e recolher depoimentos dos magistrados. Uma "monitorização" que permitirá uma análise comparada dos vários sistemas judiciários, em termos de "métodos" e "resultados obtidos". Qualquer coisa que feito por auditores portugueses demoraria perto de um ano (com boa vontade, claro!).
Os magistrados-auditores vão ainda analisar os últimos casos mais mediáticos, como o Casa Pia, o Freeport, o Apito Dourado ou o Face Oculta.
Já agora, e não me entendam mal: o relatório será público?

Vida pública/Vida privada/Media


Um dos temas que já deu e sempre dará que falar é o da fronteira ténue entre vida pública e vida privada. O caso Fernanda Câncio/José Socrates foi um deles. As escutas telefónicas serão sempre outro deles. Aproveitando o facto de um conjunto de cidadãos de reputada consciência política, entre os quais Miguel Sousa Tavares, ter vindo a público insurgir-se contra a banalidade das mesmas e e intromissão e devassa que, a torto e a direito, se faz das vidas privadas, a pretexto do interesse público, e de eu me colocar insistentemente do lado dos escutados (a não ser que o fundamento do pedido de escutas seja suficientemente fundamentado, o que nem sempre ocorre), julgo ser de alguma utilidade deixar-vos com algumas questões.
A questão desta fronteira trava-se, sobretudo, a propósito da relação vida pública/vida privada/comunicação social.
Nos Estados Unidos, a fronteira é ténue ou mesmo inexistente. Basta lembrarmo-nos dos casos Monica Lewinsky e Tiger Woods.
Em Inglaterra, várias figuras públicas recorreram, com sucesso, à "super injuction" impedindo a publicação de situações relacionadas com a sua vida privada. O debate está reaberto na sequência da últimas decisões da "a major step towards ending the culture of secrecy in Britain’s courts". O capitão da selecção inglesa (John Terry, colega dos internacionais portugueses Deco, Paulo Ferreira, Ricardo Carvalho e Hilário no Chelsea) está confrontado com uma história de traição estampada nos jornais, com o Juiz do High Court a considerar que a liberdade de expressão tem prevalência sobre a vida privada (aqui, aqui e aqui).
Na esteira de Warner e Stone, a privacidade abarca até o direito à solidão, à intimidade da vida familiar e privada, ao anonimato e à distância em relação a estranhos. A PGR reconheceu já que a intimidade da vida privada é protegida pela lei protege, compreendendo os actos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos e afectos familiares, os costumes de vida e as vulgares práticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e, até, por vezes, o amor da simplicidade, aparecer desconforme com a grandeza dos cargos e a elevação das posições sociais; sentimentos, acções e abstenções, que podem ser altamente meritórios do ponto de vista da pessoa a que se referem, mas que, vistos do exterior, tendem a apoucar a ideia que deles faz o público em geral (Parecer nº 121/80, de 23 de Julho de 1981).
Um autor italiano entende por "esfera íntima da vida privada" o sector da vida que se desenvolve entre as paredes domésticas e no âmbito da família e considera o direito da pessoa a conservar a discrição mesmo em torno dos acontecimentos e do desenvolvimento da sua vida como uma manifestação do "direito ao resguardo" (diritto alla riservatezza) - De Cupis, "Os direitos da personalidade", trad. de Adriano Vera Jardim, e António Miguel Caeiro, Morais Editora, Lisboa, 1961, págs. 142 e segs. Mas admite que estes direitos consentem certas limitações. A notoriedade de certas pessoas implica que não possam opor-se à difusão da própria imagem e à divulgação dos acontecimentos da sua vida. O interesse público sobrelevará, então, o interesse privado. São consequências do que a doutrina apelida de "custo da notoriedade", o "direito à curiosidade" (expressão sugestiva mas tecnicamente menos correcta).
Excepcionando estes casos, as exigências do público devem deter-se perante a esfera íntima da vida privada, o "santuário da privacidade" ou a "noyau irréductible" da intimidade pessoal (Stefano Rodotà, "Protection de la vie privée et controle de l´information: deux sujets d´inquiétude croissante pour l´opinion publique apud OCDE" - Etudes d´informatique, nº 10, pág. 158).
O direito de liberdade de expressão e informação (artigo 37º da CRP), por um lado, e o direito ao respeito pela intimidade da vida privada, por outro; o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, em correspondência com o princípio da administração aberta (artigo 268º, nº 2, da CRP e Lei nº 65/93, de 26 de Agosto), por um lado, e a tutela de bens constitucionalmente protegidos - a segurança interna e externa, a investigação criminal e a intimidade das pessoas (artigos 26º e 35º, nº1, da CRP, a mero título de exemplo), por outro; enfim, o dever de guardar sigilo profissional em face do dever de fornecimento de informações obrigatórias (artigo 32º, nºs 1 e 3 da Lei nº 10/91), são os pontos e contrapontos desta questão. Tem de ter-se presente, poreém, o carácter não absoluto do direito à reserva da intimidade pessoal e a própria relatividade do seu conteúdo, reconhecida pelo artigo 80º, nº 2, do Código Civil, que defende que "a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas".
Pode entender-se a "vida privada", como "aquele conjunto de actividades, situações, atitudes ou comportamentos individuais que, não tendo relação com a vida pública (privada entendido como separado da coisa pública), respeitam estritamente à vida pessoal e familiar da pessoa" (Garcia Marques, "Informática e Vida Privada", Lisboa, 1988, Separata do "Boletim do Ministério da Justiça", nº 373). Ou através de uma conotação com a ideia de vida tranquila ("the right to be let alone") e do direito de a pessoa se opor às ingerências externas e ilegítimas de outrem. Mas, como se reconhece num outro parecer do Conselho Consultivo da P.G.R., no âmbito do qual se aborda a tutela penal do direito à reserva da vida privada, não ficam por aqui as possibilidades de enriquecimento do conceito, a pressuporem elaboração doutrinal e jurisprudencial permanentes (Parecer nº 17/83, de 18 de Março de 1983, publicado no "Boletim do Ministério da Justiça", nº 330, págs. 306 e segs.)
O direito à protecção de uma "esfera reservada e íntima" é, dentro dos direitos de personalidade, o de concepção legislativa mais recente. A "intimidade só mereceu a atenção dos homens do Direito quando, nos fins do século passado, começou, muito timidamente, a princípio, aquilo que alguém chamou a revolução da informação. A paulatina divulgação das técnicas de impressão e fotografia, bem como o aparecimento do telégrafo e do telefone, possibilitaram uma eficaz difusão da informação num espaço cada vez maior. Os pequenos aglomerados, onde todos se conheciam, transformaram-se rapidamente em grandes cidades onde o homem comum passou a ser cada vez mais um leitor de jornais" (Januário Gomes, "O Problema da salvaguarda da privacidade antes e depois do computador", no "Boletim do Ministério da Justiça", nº 319, págs. 23 e segs.).
É conveniente reservar o direito à intimidade contra duas diferentes formas de agressão. Contra os atentados ao segredo da vida privada. E contra os atentados à liberdade da sua vida privada. Se a vida privada e familiar tem necessidade de segredo para se desenrolar, isso resulta também do facto de o segredo ser uma condição da sua liberdade (Pierre Kayser, "La Protection de la Vie Privée", Presses Universitaires D´Aix-Marseille, 2ª edição, 1990, págs. 3 e segs.).
Qual o âmbito de protecção constitucional da reserva da "intimidade da vida privada"? O conteúdo que se defina para os efeitos do artigo 26º influenciará a apreciação do espaço conceitual de "vida privada", do nº 3 do artigo 35º (CRP). O âmbito normativo do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada e familiar deve, pois, delimitar-se com base num conceito de "vida privada" baseado numa referência civilizacional a três aspectos: (1) o respeito dos comportamentos; (2) o respeito do anonimato; (3) o respeito da vida em relação (Gomes Canotilho/Vital Moreira, "Constituição da República Portuguesa Anotada", Coimbra Editora, 1993, anotação ao artigo 26º, pág. 182).
A tutela da vida privada é perspectivada por oposição ao conceito de "vida pública". O núcleo da "vida privada" é composto por uma série de dados pessoais com vários níveis de "sensibilidade". Esse núcleo inclui os dados relativos à filiação, residência, número de telefone, estado de saúde, vida conjugal, amorosa e afectiva, os factos ocorridos "entre paredes", as informações transmitidas por carta ou outros meios de telecomunicações, os factos passados "esquecidos", objectos e recordações pessoais, situação patrimonial, encontros com os amigos, saídas e entradas de casa ... E assim é porque "a pessoa tem em relação a estes acontecimentos, desde que sejam pessoais (...) um interesse de privacidade" (Mota Pinto, "O direito á reserva sobre a intimidade da vida privada", BFDUC, 1993, nº 69, págs. 526 e segs.).
Mais, o âmbito do direito consagrado no artigo 26º da CRP diz respeito não à vida privada, mas à reserva da intimidade da vida privada (Helena Moniz, "Notas sobre a protecção de dados pessoais perante a Informática - O caso especial dos dados pessoais relativos à saúde" - Separata da Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC 7 (1997), Coimbra Editora, AEQUITAS, págs. 231 e segs.).
Concluindo, a tutela da intimidade da vida privada, a "esfera da intimidade", não incluirá, no âmbito da protecção, a "esfera da vida privada" e a "esfera da vida normal de relação" - os factos que o interessado, apesar de os subtrair ao domínio do "olhar público" (hoc sensu, da publicidade), não resguarda do conhecimento e do acesso dos outros. Inclui, nessa medida, todos os aspectos do domínio particular e íntimo que se quer afastar do conhecimento alheio. Em jeito de sumário, uma coisa é a esfera privada e a esfera individual; outra, é a esfera íntima ou a esfera do segredo.
E isto é algo que merece a nossa reflexão. A bem da liberdade.

"O povo não existe"


A Lei da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, embora se encontre em vigor desde 2007, desde o caso da suspensão da notação do juiz Rui Teixeira que tem dado azo a um desconforto na classe da magistratura. Porém, e ainda que se apregoe por aí que não se vive num Estado de Direito Democrático, que o Governo intenta processos maquiavélicos contra quem o contesta e mais um chorrilho de asneiras que pretende ser um fait diver para o povo, afastando-o de outras análises que incomodariam ainda muito mais a oposição, li há tempos um artigo da Nicolina Cabrita, que ilustra o que é, de facto e de direito, uma ditadura, e do que nela se pode ou não fazer.
O artigo intitula-se O povo não existe. NC toma como base um outro artigo do «Consultor Jurídico», e a notícia "Juíza liberta preso na Venezuela e acaba presa".
Elísio Cedeño - um banqueiro venezuelano e um dos principais apoiantes da oposição ao presidente Chavez - está em prisão preventiva, em Caracas, há 2 anos e 10 meses (2 anos é o limite máximo para a duração da prisão preventiva, na Venezuela). A 10 de Dez.2009, a prisão foi considerada arbitrária e ordenou-se a libertação do banqueiro pela juíza María Lourdes Afiuni. No mesmo dia, foi presa, nesse mesmo dia. Viu a sua decisão revogada e as gravações da audiência confiscadas, a 13, num domingo. O próprio «El País» e o Serviço de Notícias das Nações Unidas, que informa que o assunto é seguido por «three independent United Nations human rights experts» que, «decrying what they termed “a blow by President Hugo Chávez to the independence of judges and lawyers in the country,” today called for the immediate release of a Venezuelan judge arrested after ordering the conditional release of a prisoner held for almost three years without trial.»[aqui].
Foi o próprio presidente Chavez que terá exigido a punição exemplar da juíza, a qual responde com um texto que nos deve fazer reflectir (aqui), e que se transcreve:
«Diante do constante abuso e das infâmias cometidas pelo Ministério Público, divulgando por diversos meios de comunicação versão totalmente distorcida dos acontecimentos ocorridos no dia 10 de dezembro de 2009 - versão pela qual tentam convencer a opinião pública de que estaria eu sujeita à Comissão de Ilícitos Penais pela manipulação de atas em expediente no qual simplesmente se substituiu a privação de liberdade no acto de deferimento da audiência preliminar por ausência do Ministério Público por medida que, fundamentada simplesmente em normas constitucionais, é de obrigatório cumprimento a favor de um réu, independentemente de inocência ou culpa quanto aos actos a ele imputados, posto não ser aquela a fase processual para determiná-la. De acordo com o artigo 264 do Código Orgânico de Processo Penal (COPP) e o evidente adiamento do processo de que é alvo fez do réu merecedor de pleno direito da medida como qualquer outro indiciado, sem distinção possível.
Senti necessidade de escrever esta carta para esclarecer a minha família, a meus entes queridos, à opinião pública e até mesmo ao Presidente desta República, que decisões similares à que produzi em 10 de dezembro se realizam todos os dias em vários tribunais do país. A presença das partes na audiência preliminar não é exigida oficialmente, uma vez que a sessão é transcrita e analisada por um juiz. Neste caso específico, 278 peças foram revistas em sua totalidade. Condutas menos rígidas podem ser solicitadas em qualquer nível e estado do processo, o que garante ao juiz do caso exercer as medidas que considere adequadas. No caso contrário, quando é o réu que não comparece à audiência agendada pelo juiz, o representante do Ministério Público tem poderes para revogar a decisão da liberdade condicional.
Por outro lado, a afirmação de que o Ministério Público garante a minha segurança e o meu direito à vida é absolutamente irresponsável. É inconcebível que o órgão se comprometa com a segurança de um funcionário da Justiça preso no mesmo centro penitenciário de pessoas que ele mesmo condenou. A declaração do Ministério Público é ultrajante e coloca em risco todas as pessoas que se encontram nesta situação. Isto tudo demonstra as deficiências destas instituições, que obrigam seus funcionários a trabalhar em situações limite, com prejuízo dos processados, que ficam sem nenhuma sentença final, sendo que segundo a Constituição, todos são inocentes até que se prove o contrário. É por estes motivos que faço um apelo aos órgãos públicos responsáveis para que atentem ao sistema penitenciário nacional, exigindo medidas que promovam as melhorias necessárias..
Após quinze dias ilegalmente privada de minha liberdade, tive oportunidade de conhecer diversas pessoas submetidas a processos penais nos quais se observa um rude, brutal e injustificado adiamento processual que não prevê as medidas preventivas de liberdade, transformando a espera em condenações prévias, com a cumplicidade do Ministério Público e sua insuficiência de provas convincentes. A certeza de que não existem pressupostos para a condenação requerida pela promotoria obstrui o exercício do direito de defesa e coloca em questão o princípio de igualdade das partes.
Tudo isso produz um profundo desespero àqueles que aguardam uma sentença para sair do inferno em que vivem. Estas pessoas, muitas vezes, acabam por admitir culpa, mesmo que as provas tenham sido obtidas ilegalmente ou sejam insuficientes, tornando-se coniventes por omissão com tais violações constitucionais.
Estas vivências fortalecem a minha convicção de que o ato judicial que sofri, que o Ministério Público, com a cumplicidade de alguns membros do Judiciário, alega tratar-se de 'ato ilícito', serve para alertar todos os encarregados de promover a justiça: a polícia investigativa e os membros do 'poder moral', que fizeram o juramento de respeitar a Constituição e fazer cumprir as leis. As festas de final de ano são propícias para reflexão e adoção de medidas corretivas e não para a aceitação de atos que vão contra os direitos humanos.
Toda esta experiência infeliz, digo sem ressentimentos, me fez perceber o sistema de administração da justiça do ponto de vista do acusado, ponto este que não poderia ter sido tão nítido se não estivesse nesta situação.
De todo o coração eu espero que este sofrimento, o sacrifício e a injustiça sofridos pela minha família, amigos e por mim mesma não sejam em vão e não sejam esquecidos. Reiterando a cada um dos cidadãos deste belo país que existem muitas pessoas com coragem, vontade e competência para mudar o nosso mundo, aqui e agora, com coragem, que é a ferramenta que nos move para criar, modificar e construir o país que merecemos.
Nossa resposta não deve ser feita de palavras ou idéias, mas sim de uma conduta e uma ação enfática, assumindo a responsabilidade de encontrar a resposta correta e cumprir as tarefas que a vida atribui a cada indivíduo.
Boas festas a todos!Maria de Lourdes Afiuni»
Ao que se sabe, a juíza continua detida.
E este caso relatado em http://angulorecto.blogspot.com/, pode bem exemplificar aos que tanto apregoam (aqui e no estrangeiro) que Portugal já não é um Estado de Direito Democrático, o que é uma ditadura, e como o poder político interfere no judicial - tenho 47 anos e ainda me lembro de histórias que, embora sem consequências tão extremas, eram bem demonstrativas da forma como o fascismo se constituia lei. É estranho que haja muita gente por aí que, apesar de mais velha, não guarda qualquer memória desses tempos. É por esta razão que o artigo diz que "o povo não existe".

domingo, 21 de fevereiro de 2010

A 8 de Março: Faça uma pausa e pense na Mulher

“Mesmo nos lugares onde não há guerra, os corpos das mulheres continuam a ser campos de batalha. As mulheres e as raparigas correm o risco de ser vítimas de violência no decurso das suas actividades quotidianas – em suas casas, quando se deslocam a pé, quando utilizam transportes públicos para ir trabalhar ou quando vão buscar água ou apanhar lenha. Exigir o fim da violência contra as mulheres tem que ver com proteger os direitos humanos e assegurar que as mulheres vivam em segurança e com dignidade”, diz Thoraya Ahmed Obaid, Directora Executiva do UNFPA (Fundo das Nações Unidas para a População).
Segundo os dados das Nações Unidas, pelo menos uma em cada três mulheres no mundo corre o risco de ser espancada, coagida a ter relações sexuais ou ser alvo de outro tipo de violência durante a vida, e uma mulher em cada cinco será vítima de violação ou de tentativa de violação. O tráfico de mulheres, o assédio sexual, a mutilação genital feminina, os crimes ligados ao dote, os crimes de honra e o infanticídio feminino fazem também parte do problema.
A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) recebeu em 2009 mais 5,3% de queixas de violação e mais 3,5% de abuso sexual do que em 2008.
O dia internacional da mulher é a 8 de Março. Uma boa ocasião para trazer à tona o problema.
A violação é um acto cruel, como mutilar o corpo e, mais grave, roubar a alma. A reacção da vítima, após a violação, entre a vergonha, a dor, o medo e a raiva, é um dos factores inibidores de que a investigação clínica leve à descoberta do autor do crime. Polícias e médicos dão alguns apontamentos para que não se contaminem as provas: Não se lave, não tome banho, nem escove o cabelo. Guarde as roupas que usava num saco de papel ou em papel de embrulho ou de jornal (o plástico deteriora as provas). Conserve todos os objectos em que o violador tocou ou com que entrou em contacto (nem que seja a ponta de um cigarro). Não toque em nada no local onde se deu a violação. Dirija-se ao hospital mais próximo, para receber o tratamento adequado e para que lhe sejam feitos os exames clínicos. Apresente queixa na esquadra da PSP, piquete da PJ, posto da GNR, ou no Tribunal, o mais rapidamente possível. Procure apoio psicológico.
Depois do choque, a hipótese de reviver o horror é um novo suplício. Para a vítima e para a família. Muitas optam pelo silêncio. Tomadas pelo medo, pela culpabilização, pela vergonha, pelo constrangimento de se expôr em público perante os receptores da denúncia, de se sujeitar aos juízos, aos comentários… A falta de crer na descoberta e na detenção do culpado e do sistema policial e judicial também não ajuda. A recuperação é um processo de luto face à perda, à invasão e ao roubo no seu próprio corpo, à debilidade da auto-estima. Pode querer não acreditar e até negar a situação, como se não tivesse acontecido. Isola-se. Chora. Tem insónias e falta de apetite. Emagrece. Tem dores de estômago e de cabeça. Depois, a culpabilização: o que fez que pudesse incentivar ou chamar a atenção do violador? Como o poderia ter evitado? Segue-se a raiva e o desejo de vingança. Ripostar e fazer pagar. Por fim, a aceitação, reaprender a viver, com a mágoa e as marcas psicológicas, com a tristeza. Até se aceitar que não foi o fim do mundo, pareceu o fim do mundo.
“A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota.” (Jean Paul-Sartre)
A Convenção CEDAW - Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres - (a magna carta dos Direitos Humanos das Mulheres) - e a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, não desistem, relatam, informam, advertem, apoiam.
Casos extremos da violência e da violação é o das mulheres no Paquistão, em que a violação é o início de uma longa jornada para o inferno. Como se a violação não fosse já uma marca dificilmente superável, enfrentam a depressão, a repressão e a vulnerabilidade. Mais opressão ainda se vierem de famílias pobres. A violação não é, aqui, uma agressão ao auto-respeito e à integridade de uma mulher, mas uma afronta à honra da família. O estigma social arruina as suas vidas para sempre. Se for solteira, perde a honra, o seu “preço” como noiva. Se for casada, o marido não a defenderá, divorciar-se-á dela. Os olhares de que é uma “mulher dissoluta” que “atraiu a desgraça sobre si própria” duram o resto da sua vida. Se a família não a apoiar, será morta para “limpar a mancha” ou levada ao suicídio. Ao abrigo das leis vigentes, os casos de violação são julgados em tribunais islâmicos e se as vítimas quiserem defender-se têm de ter o testemunho de quatro homens, "bons muçulmanos". Se a violação não for provada, a mulher pode ser condenada por adultério (crime punível com a morte por lapidação). Hode, a nova Lei de Protecção das Mulheres obriga a que seja um juiz a decidir se os processos por violação serão julgados por uma entidade islâmica ou por um tribunal civil, dispensando a apresentação de testemunhas masculinas.
Em situações de guerra, o corpo das mulheres é outro campo de batalha. No Ruanda (Centro de Genebra para o Controlo Democrático das Forças Armadas), cerca de meio milhão de mulheres foram vítimas de violação durante o genocídio de 1994. Na Serra Leoa, entre 50 000 a 64 000 mulheres deslocadas no interior do país foram alvo de violência sexual pelos combatentes armados. Mais de metade das mulheres da província de Lofa, no Norte da Libéria, sofreu, pelo menos, um incidente de violência sexual, durante o conflito de 1999 a 2003. 90% sofreu, pelo menos, um incidente de violência física e quase metade declarou que lhe foi proposto mais de 4 vezes ter relações sexuais em troca de favores. No conflito que se seguiu às eleições no Quénia, o hospital de mulheres de Nairobi e o hospital geral da costa de Mombaça registaram um aumento para o dobro ou o triplo, face ao ano anterior, do número de mulheres e crianças que procuraram um tratamento na sequência de violência sexual, em especial após violações perpetradas por gangues de homens. México, Ruanda, Kuwait, Haiti e Colômbia, foram palcos de guerra especialmente duros quanto à violência feminina. Os sucessivos governos da Bósnia e Herzegovina não proporcionaram justiça a milhares de mulheres e raparigas violadas sexualmente na guerra de 1992-1995, afirmou a Amnistia Internacional, num relatório publicado a 30 de Setembro. Um novo relatório da Amnistia Internacional revela que, apesar da presença das forças de segurança das Nações Unidas nos campos de refugiados no leste do Chade, as mulheres e raparigas refugiadas do Darfur, Sudão, enfrentam diariamente um elevado risco de violação sexual e de outras formas de agressão, tanto no interior, como no exterior, dos campos.
Mulheres afegãs manifestaram-se recentemente contra a «violação» legalizada, que as obriga a ter, pelo menos, 4x relações com os maridos. Violar mulheres presas políticas é uma prática comum na República Islâmica do Irão desde que existe. Em 1980, quando os Pasdaran, os “Guardas Revolucionários” dos regime, prenderam raparigas adolescentes como membros ou apoiantes de organizações revolucionárias ou por distribuírem folhetos, tornou-se uso, antes de as executarem, violarem-nas, para que não morressem virgens e pudessem assim ir para o “céu”.
No dia 8 de Março, há uma séria reflexão a fazer. Por aplicadores da justiça, por legisladores, pelor órgãos de investigação criminal, e por todos nós. Porque "A Violência sobre as Mulheres é um cancro que devora o coração de qualquer sociedade, em qualquer parte do mundo" (Irene Khan, Secretária Geral da Amnistia Internacional).

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Churchill: Vivências e dizeres intemporais

Uma figura de que vale sempre a pena falar.
Winston Churchill nasce a 30 de Novembro de 1874 em Oxfordshire. Apesar de nascer de uma família aristocrática, o seu carácter rebelde levou-o ao fracasso escolare a iniciar uma precoce carreira militar aos 14 anos. Passou uma juventude entre combates, no Sudão e na Segunda Guerra dos Bóeres. Dedicou-se à política no início do século XX, e desempenhou diversos cargos governativos até ao dealbar da II Guerra Mundial. Tornou-se PM do Reino Unido (1940) e conduziu o país à vitória sobre as potências do Eixo. Passou pela oposição após perder as eleições de 1945, mas regressou ao poder em 1951. Foi um prolífico escritor laureado com o Prémio Nobel da Literatura em 1953. Faleceu em Londres a 24 de Janeiro de 1965, ficando para a História como um dos mais influentes líderes políticos de sempre.
O pai, Lord Randolph Churchill (descendente direto do 1º Duque de Marlborough, o herói da luta contra Luís XIV), passou-lhe o gosto pela política e a memória prodigiosa (decorava um discurso inteiro de improviso). Da mãe, Jennie Jerome, beldade nova-iorquina, filha de um magnata e criador de cavalos de corrida, herdou a porção de bon-vivant: fuma longos charutos cubanos, bebe generosas doses de whisky (que lhe valem, de Hitler, o epíteto de bêbado e, dos biógrafos "revisionistas", a classificação de irresponsável), o gosto pelo convívio com celebridades e, também, a inclinação Homem-Fênix: cresce, decai, brilha e, neste constante renascer das cinzas, forja a sua fibra.
Estréia no Parlamento como Primeiro Ministro e inaugura o ciclo dos memoráveis discursos de guerra: "...Não tenho nada a oferecer-vos senão sangue, trabalho, suor e lágrimas...". Mais tarde, quando escreverá a história da segunda guerra mundial, enunciará a sua fórmula: "Na guerra, determinação; na derrota, resistência; na vitória, magnanimidade; na paz: boa-vontade."
Jamais poderão classificá-lo como prodígio ou vitorioso nato. Foi temperado nos vários ostracismos e enrijeceu com os dissabores políticos que aplacava com os êxitos literários. A sua biografia de estadista começa quando outros, resignados, a acabaram. Chega ao pódio mundial aos 65 anos e, quando morre aos 91, salta para a História.
Winston Churchill era um intérprete e um herdeiro do chamado “espírito inglês”. Como escreveu A. L. Rowse, o que distingue essa maneira de estar é a ausência de “angst” e de “ennui”. É, como escreveram Bagehot e Oakeshott, uma disposição para usufruir; para celebrar a vida e o privilégio de desfrutar modos de vida que não foram centralmente desenhados ou impostos por ninguém.É, numa palavra, uma disposição para usufruir e conservar. Para melhorar pouco a pouco, evitando perder tudo. É um hábito de independência e moderação – que sustenta a tradição da liberdade.
Em 1941, Winston Chruchill foi forçado a abandonar o charuto que fumava para participar numa reunião do gabinete de guerra britânico. O charuto, que se tornou uma das imagens de marca do antigo e histórico líder inglês, foi apanhado por um membro do staff do número 10 de Downing Street, a residência oficial do primeiro-ministro e guardado durante quase 70 anos. E acabou agora por ser vendido pela leiloeira Keys, em Norfolk, este mês (por 4 500 libras).
Violet Bonham Carter, amiga de juventude e inteligente biógrafa disse, no fim: “I remember wondering whether, like so many public performers, he had a separate public personality and being relieved to find that he behaved and spoke exactly like his private self”.
Se vivesse hoje usaria uma das suas célebres frases "Uma mentira dá uma volta inteira ao mundo antes mesmo de a verdade ter oportunidade de se vestir."

Grandella: Um empresário do futuro!


Francisco Grandella (1853-1934) nasceu em Aveiras de Cima, filho de médico, e veio para Lisboa trabalhar no comércio ainda muito jovem. De marçano na rua dos Fanqueiros não tardou que se estabelecesse por conta própria aos 27 anos na rua da Prata. A loja chamava-se Fazendas Baratas. Em 1881, no Rossio, abria a Loja do Povo. Quando, em 1907, abriram os Armazéns Grandella, eles eram simultaneamente um exemplo de Engenharia e Arquitectura de vanguarda, modelo do comércio moderno e um exemplo de «pequeno estado social» ímpar nas relações patrão-empregado nessa época. Levou apenas 9 anos da primeira lojinha aos Armazéns. Acusado de contrabando por participar preços baixos, Grandella anunciava nova remessa: "Chegaram mais fazendas de contrabando". Grandella viajara pela Europa e tinha-se impressionado com o Printemps de Paris. Grandella introduziu o anúncio, as trocas e os reembolsos, caso o cliente ficasse insatisfeito, a entrega ao domicílio e os catálogos com as colecções. Os Grandes Armazéns democratizariam o comércio da moda e impuseram modelos de vestuário e um novo gosto. Do ponto de vista arquitectónico, os Armazéns Grandella exibiam o ferro e as escadarias imponentes. Os Armazéns comercializavam a confecção de malhas, as manufacturas de fiação e a tecelagem de algodão e lã e o mobiliário em ferro, com fábricas em Alhandra e Benfica.
Grandella tinha a instrução primária, muito importante ao tempo, e aprendeu francês. Tornou-se um activista no combate ao analfabetismo, e edificou escolas primárias em vários locais (Aveiras, Benfica, Tagarro, Foz do Arelho). Aqui, funcionava o seu ideal republicano, a que juntara a adesão à maçonaria, visível nos símbolos arquitectónicos da escola de Benfica, actual Biblioteca-Museu República e Resistência. Grandella passara igualmente pela política, tendo sido vereador na câmara de Lisboa em 1908.
Juntamente com mais 12 amigos, fundou o clube dos Makavenkos (1884). A divisa escolhida foi a da britânica Ordem da Jarreteira, a comenda da liga azul, "honni soit qui mal y pense". Mas a sua visão extraordinária do futuro e o espírito aventureiro dos sócios fez com que o clube extravasasse a cave e se internacionalizasse. Na casa da metrópole, os trabalhos revolucionários - assim se lia nas convocatórias escritas pelo punho do advogado e grão-mestre adjunto da Maçonaria José de Castro - não se realizavam à sexta-feira, porque era dia das makavenkadas, nem às terças, porque as noites estavam ocupadas pela Academia Real dos Camelos, uma subdivisão do clube presidida pelo ex-padre e republicano João Bonança, transformando-se uma das salas a preceito, com panos de Arraz a tapar as paredes e, nos lambrins, desenhos alusivos a caravanas no deserto, para que os discursos pós-refeição estivessem bem enquadrados. Mas do que a Comissão de Resistência da Maçonaria (nomeada por decisão unânime do "Povo Maçónico", reunido a 14 de Junho de 1910) não abdicava era dos petiscos de Josué dos Santos (um cidadão do mundo, que fez amizade, na Abissínia, quando foi visitar uns companheiros da armada italiana ali presos, com o rei Negus, o qual, lembrando-se dos belos carapaus que este lhe cozinhara, enviaria à família uma mensagem de condolências ao saber da sua morte). É, aliás, da autoria do despenseiro, por vezes cozinheiro, a explicação 'científica' do nome da sociedade... inventado por Grandella: um povo de origem asiática, das ilhas Curilas, que habitara na península ibérica "antes do desaparecimento da Atlântida e tinham uma seita que professava uma espécie de culto pela mulher esbelta, mundana, com quem conviviam e protegiam aproveitando-a mesmo para fins de utilidade geral". A palavra 'makavenko' ficou, de tal forma agarrada aos seus sócios, que era, só por si, controversa: uns, por inveja, e outros por ... a confundirem com falta de vergonha. Chegou a ser objecto de discussão na Câmara dos Pares do Reino, a seguir ao assassínio do rei D. Carlos, durante o governo de "acalmação", quando Francisco Joaquim Ferreira do Amaral se tornou presidente do Conselho. No Parlamento, acusaram-no de ser makavenko, ao que ele respondeu ter muita honra em pertencer a um grupo de homens que se juntava "em cavaco despreocupado e ameno, e que, ao fim das refeições que compram com o seu dinheiro, se não esquecem de dar de comer a quem tem fome, e de proporcionar instrução a quem dela precisa para ganhar honradamente a sua vida". Oficialmente, estava suspenso (uma das regras obrigava o detentor de um cargo político a suspender a sua qualidade de sócio). Na mesma altura, também o acusaram de perseguir Francisco Grandella, mandando a polícia fazer buscas nas suas residências, dizendo procurar o escritor "anarquista" Aquilino Ribeiro que se evadira da prisão. Até nos makavenkos fizeram rusgas, sob o pretexto de jogo clandestino. Ferreira do Amaral, mais tarde presidente honorário da sociedade, conhecera Grandella por ocasião do Centenário do Descobrimento da Índia, em 1898. O engenheiro makavenko Ângelo de Sárrea Prado levou o almirante e outro membro da Sociedade de Geografia à fala com a direcção do clube. Queriam pedir-lhes que fizessem o possível em prol das comemorações, dizendo-se preocupados com a falta de hotéis, face ao número de pessoas esperadas em Lisboa. E sugeriram que um makavenko abrisse um grande hotel, "de confiança e que não escaldasse, para poder ser recomendado pela Sociedade de Geografia". Logo Josué, com dois sócios por detrás, se prontificou a tratar da logística e uma das damas presentes assumiu a gerência, porque "l'amour oblige...", escreveu Grandella. Num instante, tomaram um prédio, na Avenida da Liberdade, onde fora o Hotel Mata, e, em três tempos, se inaugurou com um "sumptuoso jantar" servido em loiça da Índia.
Dos encontros da Comissão de Resistência não deu Francisco Grandella conta no seu livro "Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos" (1919). Nem sobre as reuniões dos maçons com "plenos poderes para velar pela segurança dos irmãos, defender a maçonaria dos ataques da reacção política e religiosa, guiando o trabalho dos obreiros no mundo profano no interesse superior da pátria e da segurança dos cidadãos", nem sobre outros episódios susceptíveis de escândalo, confessou o proprietário dos Armazéns Grandella numa carta ao amigo arquitecto e, a dada altura, presidente dos makavenkos, Rosendo Carvalheira. Mas a outros não perdoou, como no caso de Sebastião, o escrivão da Boa Hora castigado por mau comportamento. É que esse sócio, a seguir a um banquete, atravessou as salas, meteu-se na última com a sua Chica dos Camarões, "sem se importar do que pudessem dizer e... ouvir..." Grandella não gostou e fez queixa formal à direcção. Foram nomeados o juiz (o médico patologista Azevedo Neves), os advogados e os jurados, e o réu foi condenado a ver o seu retrato pendurado na sala do crime, tapado por uma parra da faiança do makavenko Bordalo Pinheiro. O queixoso ficou satisfeito, embirrava com o homem desde que dissera mal de uma das suas sopas e das suas palavras. Fora-lhe, portanto, aplicado o Degredo da Parra, mas o castigo podia ter sido o de se pintar a óleo o seu retrato num banco para que todos se sentassem em cima dele. Ou o Suplício do Penico, que constava de colocar a fotografia do condenado no fundo de um bacio. Ou, ainda, obrigá-lo a beber, quase sem respirar, 12 capilés de cavalinho, o xarope de avencas, água fresca, casca de limão e gelo, que se sugava por um tubo de lata com a figura colorida de um cavaleiro tauromáquico e era considerado uma bebida de gente fraca. Mas teve sorte, Sebastião, porque podia ter ficado sem as ligas...
Por regra, nos solstícios, a Estrada de Benfica, 419 – Lisboa (Museu da República e Resistência), presenteia-nos com maravilhosas exposições de temática maçónica, ali, naquela espaço, construído por Grandella, o maçon que criou este bairro para os seus trabalhadores. Construiu dois espaços – este, que era um hospital, e o do lado, que era um infantário. A arquitectura de ambos, ainda hoje denuncia, a alma do homem que os edificou: o triângulo no cimo e as colunas.

Economia: um balanço do G.20

Paz Ferreira aprecia o impacto do G-20, a uns meses de distância.
Segundo ele, a crise instalou-se, mas começam finalmente a sentir-se alguns sinais de recuperação. Daí a importância da reunião do G-20 em Londres, de que saíram decisões que constituem um passo importante na revisão das actuais regras económicas internacionais (ou da sua ausência). Regista-se que o facto de ter sido ao nível do G-20 é já, de per si, um reconhecimento da importância das economias emergentes. Orientação é que aponta para o reforço do apoio ao desenvolvimento económico internacional. Decisão negativa é a atribuição ao Fundo Monetário Internacional de um papel pivot nas mudanças do futuro.
No plano doutrinário, o apontamento de maior importância foi a rendição de um dos mais importantes teóricos do movimento económico conservador – Richard Posner (The failure of capitalism), obra que suscitou atenção generalizada e que mereceu uma recensão de Robert Solow no New York Review of Books. A reabilitação de Keynes e a redescoberta de John Kenneth Galbraith constituem outras notas dignas de registo.
Por outro lado, não se pode passar em branco pelo papel da Administração norte-americana e do Presidente Barack Obama, na procura de novos modelos de organização sócio-económica em que as preocupações de justiça e solidariedade são subsidiárias da regra basilar da racionalidade económica e da atenção particular dada às questões ambientais. Contudo, foi notória a debilidade da resposta europeia, pese embora investindo apenas em melhores mecanismos de estabilização automática e de solidariedade social que os Estados Unidos. Mas constatou-se, ainda, que a Comissão mostrou falta de energia e hesitação ou até incapacidade de decisão, eventualmente devido ao seu persistente apego a modelos de confirmada falência, a que se juntou a maioria dos Estados Membros.
A crise pôs em evidência um conjunto de práticas fraudulentas em várias instituições de crédito internacionais e nacionais, a par de falências (nos USA: o La Jolla Bank, na Califórnia, o OneWest de Pasadena, também na Califórnia, o George Washington Savings Bank, de Orland Park; o FirstMerit Bank, de Akron, no Ohio; no Texas, o La Coste National Bank; e na Florida, o Marco Community Bank, de Marco Island), e de um elevado número de operações de elevada complexidade e risco, resultantes da fragilidade da regulação, em razão das múltiplas medidas desregulatórias tomadas nas últimas décadas, e da aceitação, mais ou menos passiva, pelas instituições reguladoras, de modelos que asseguraram um crescimento acentuado da riqueza e a consequente ilusão da prosperidade indefinida.Constatou-se que o apoio ao sector financeiro foi central em todas as políticas anti-crise, com prejuízo para a ajuda ao sector produtivo ou à rede de apoio social. O que, sendo uma opção compreensível - dada a importância do crédito para o funcionamento da economia e para o crescimento - tem efeitos anti-sociais, por força do crescimento acentuado do número de falências e do aumento exponencial do desemprego, e, ainda, pelas dificuldades de financiamento prevista para as pequenas e médias empresas. Mais gravosa e em face de certas formas de intervenção, será a opção de ignorar os problemas do moral hazard, gerando a impressão de que a protecção prometida a investimentos e risco é semelhante à oferecida a instituições e consumidores mais ponderados e conservadores.
Assiste-se a uma recuperação do valor da justiça na tributação com o agravamento da progressividade fiscal, na tentativa de minorar as desigualdades económicas e de reforçar a luta à elisão tributária.
Factores por que a reunião do G-20, de 2 de Abril, suscitou particular expectativa, não só pela reafirmação das posições de Merkell e Sarkozy, mas também pela iniciação de Obama no palco europeu foi feita a partir de um debate sobre um tema que lhe é querido, já que, como senador, foi um dos mais ferverosos apoiantes do senador Carl Levin na proposta “The Stop Tax Haven Abuse Act”. A OCDE vinha defendendo, designadamente no Global Forum In Implementing The Internationally Agreed Tax Standards, sem acolhimento, a necessidade de acelerar a celebração de acordos de troca de informação para efeitos fiscais com paraísos fiscais e outras jurisdições não cooperantes. A reacção, após a reunião do G20, foi mais positiva do que se esperava.
Muito embora seja ainda cedo para tirar conclusões mais assertivas, pode dizer-se com Charles Gnaedinger que os “paraísos fiscais portam-se bem com a OCDE – por enquanto”.

O mais velho Livro do Amor: O Cântico dos Cãnticos!


Faz parte do Velho Testamento, mas é tido como um dos livros de maior sensualidade e romance. É o Cântico dos Cânticos. Oito capítulos do Cântico dos Cânticos emanam erotismo, descrições apaixonadas dos amantes - e uma única menção, como nota de rodapé, ao nome de Deus.
É difícil de explicar que este livro, pouco lido, quase esquecido, integre as Sagradas Escrituras judaico-cristãs. Porque põe em causa a importância do homem na vida e nas próprias relações de afecto. "Para quem tenha uma visão da Bíblia com a masculinidade como centro, isso pode chegar a ser até escandaloso. Os homens participaram, no começo, como complemento", diz Humberto Gonçalves. O especialista anglicano admite que tenham sido mulheres a escrevê-lo. Mas a sensualidade do poema também pode ser um sinal da influência da espiritualidade pagã nos israelitas em épocas mais antigas, já que estes adoravam deusas em rituais de fertilidade, o que explicaria em parte a importância feminina no Cântico.
Há quem diga que a sensualidade vem de Salomão, que, segundo a tradição israelita, amou muitas mulheres e tinha um grande gosto pela literatura. E que o nome dos Cânticos (de Salomão) se deve à sua autoria. Para além de ser um inveterado amante, Salomão nasceu das loucuras de amor entre o rei David e Betsabéia, que era uma mulher casada. Pelo que a proibição desse amor teria inflamado o sentimento dos amantes. Admite-se ainda que o Cântico dos Cânticos (ou Cantares de Salomão como também é conhecido o texto) provenha de poemas nupciais cujo ritual durava sete dias.
Seja como for, o Canticum Canticorum ou Canticum Salomonis é um texto poético de linguagem fortemente figurativa e sugestiva, com uma história romântica que decorre em Jerusalém ou nos seus arredores, em plena Primavera.
Mas há também quem justifique a passionalidade da linguagem com uma interpretação não realista da história que parece contar. Há quem diga que as interpretações medievais do conteúdo literário do Cântico dos Cânticos, tanto as talmúdicas (judaicas) como as dos cristãos, remetem para uma interpretação alegórica que se afasta do erotismo que o poema evoca. Assim, as duas leituras mais usuais do Cântico dos Cânticos interpretam-no: como uma metáfora do relacionamento do povo hebreu com o seu Deus, através da união de dois amantes numa relação livre e desprovida de culpa; como a descrição de um quadro que remete para uma relação sensual do amor entre dois jovens amantes.
A força das palavras do Cântico dos Cânticos - tal como aconteceu com a Arte de Amar (Ars Amatoria) de Ovídio foram, em tempos idos, os livros de mesa-de-cabeceira de damas e cavalheiros... (A Arte de Amar, obra de conteúdo arejado, foi particularmente apreciada na Antiguidade. No período medieval a sua leitura foi feita sobretudo às escondidas, sendo de novo valorizada a partir do Renascimento. “Compósita mistura de Bíblia profana, de Manual de Bordo e de Livro de Cozinha para uso dos aprendizes do amor, a Arte de Amar tem vivido clandestinamente sob o alçado de escrivaninhas devotas, ocupado os mais secretos lugares no topo das estantes mais veneráveis, transitado de mão em mão sob a capa de sucessivas gerações de estudantes, pernoitado em celas de conventos e em celas de prisões, em castelos, em palácios e em estalagens, em boudoirs de cocottes e em tendas de campanha, em bordéis, em solares, em escolas, em beliches de transatlântico e em compartimentos de caminho de ferro...” – é David Mourão-Ferreira quem o assegura no prefácio a uma versão que procura obedecer mais a certos ritmos internos do que a uma opressiva literalidade. Em 1969, numa ardência de época, ele e Natália Correia ofereciam-nos o mote, que será provavelmente o maior mote, do amor (tradução): Despoja-te do orgulho se queres ser amado longo tempo.
Pode ainda tentar-se uma aproximação com símbolos e significados para além do Cristianismo, daí o conjunto dos livros do A.T., a divisão em 5 poemas (1,5-2,7; 2.8-3,5; 3,6-5,8; 5,9-8,4 e 8,5-14), tal como os 5 livros dos salmos e também com os 5 livros da Torah.
Mas prefiro vê-lo a olho nu, apenas como um belo poema de amor. Tem tudo para o ser: a excitação que os amantes sentem quando estão juntos (Ct 3.4, 7.6-12); as dificuldades que têm que enfrentar para fugir à vigilância repressora das autoridades e do povo; os encontros marcados em lugares discretos/secretos (7.12-13); as descrições do corpo do amado com pormenores ardentes e eróticos (5.10-16; 6.4-10; 7.2-10); a alegria do encontro (4.9); ao ouvir a voz do outro (2.8); quando se tocam (2.6); quando se beijam (1.2); e a memória do interlúdio do amor (7.11-14).
Só vale a pena amar quando se ama assim. "Teu umbigo [...] esta taça redonda onde o vinho nunca falta. Teu ventre, monte de trigo rodeado de açucenas. Teus seios, dois filhotes filhos gêmeos da gazela” (Ct 7.2-3). "Como a macieira entre as árvores dos bosques/Assim é meu amado entre os moços/À sombra de quem eu tanto desejara me sentei/E seu fruto é doce ao meu paladar/Ele me introduziu na sua adega/E a sua bandeira sobre mim é Amor!". "O amor é tão poderoso como a morte; e a paixão é tão forte como a sepultura. O amor e a paixão explodem em chamas e queimam como um fogo furioso. Nenhuma quantidade de água pode apagar o amor, e nenhum rio pode afogá-lo (Ct 8. 6b-7a)". "Tua fronte por trás do véu/É como uma romã aberta/Teu pescoço é como a Torre de David/Da qual pendem mil escudos/Teus seios são como dois filhotes gémeos de gazela/Pastando entre os lírios".
Do Génesis ao Habacuque, de Mateus ao Apocalipse (São João/Revelação), a Bíblia é um livro para ler sem dogmas, sem pré-adquiridos, mas com o coração, o espírito e a alma abertos. Para quem a supunha de leitura maçadora, este pode ser um desafio para desfrutar os Cânticos.
Com os Cânticos, recupera-se a dimensão da vida, as cores e o cheiro da terra, o paladar dos frutos, o aroma das flores, a frescura da relva, o som da água do riacho. Um arco-íris de tons. Um banquete de especiarias. O lugar do encontro. Os abraços intensos. A emoção do amor. Neles, o critério da dimensão divina do ser humano é a própria sensualidade do(s) corpo(s). E o corpo inteiro é uma obra gloriosa. É todo erótico. É sagrado. Não é profano. É o Templo da vida.

Teresa Beleza: Sinal de mudança na consciência jurídica!


Os menos interessados pelas coisas do Direito estranharão que Teresa Beleza aparecesse como subscritora fundadora do MPI – Movimento Pela Igualdade, para a defesa do casamento entre homossexuais, ao lado de nomes mais conhecidos ligados ao meio da cultura, e de quem se espera uma maior liberdade na discussão destes temas e, ainda mais, em dar a cara por eles. Sabendo-a nascida numa família conservadora, julgar-se-á que TB teve um assomo inesperado de intervenção cívica nesta matéria. Não é verdade. Assisti à sua dissertação de doutoramento "Mulheres, Direito, Crime ou A Perplexidade de Cassandra", e a sua preocupação em estudar as particularidades do comportamento feminino face à Justiça ficou ali bem provada. Em 2004, volta a redigir um breve texto "Anjos e monstros – a construção das relações de género no Direito Penal" e foi a confirmação de que a causa feminina, que não lhe veio do berço, foi produto da sua vivência maturada, enquanto jurista e cidadã atenta.
Foi nessas qualidades que retirou algumas ilações e conclusões que subscrevemos e deixamos para reflexão.
Em Maio de 2004, o STJ lavrou um acórdão sobre um crime de homicídio em que exprimia, de forma nem sequer velada, a sua aceitação do dever de sujeição sexual da mulher ao marido como circunstância atenuante da pena por uxoricídio. No mesmo ano, o Tribunal Constitucional recusou, argumentando questões de técnica jurídica, conhecer de um outro acórdão do STJ em que, na opinião da recorrente e da Conselheira que votou vencida, a lei era interpretada no sentido de avalizar uma desigual distribuição dos deveres conjugais. Estava em causa o que eram, ou melhor a quem competiam, as tarefas domésticas. Maria Fernanda Palma, outra mulher a quem prestamos tributo, votou vencida: “(...) a perspectiva acolhida pelo tribunal a quo admite autonomamente a relevância de pretensos “valores tradicionais” que relegam a mulher para um papel de responsável (juridicamente responsável, sublinhe‑se) pelas tarefas domésticas no âmbito da comunidade conjugal. O tribunal recorrido aceita tal concepção invocando o meio rural em que os cônjuges estão inseridos. Todavia, o meio social e as concepções tradicionais que lhe estão associadas não constituem fundamento legítimo para impor deveres jurídicos relacionados com a posição relativa dos cônjuges que possam condicionar a respectiva autonomia e ponham em causa a própria igualdade no âmbito do casamento.”
Subjacente ao sentido da decisão judicial, que concluía pela existência de um especial dever de desempenhar funções domésticas por parte da mulher, contrapondo ao igualitarismo legal e constitucional a manutenção de códigos de comportamento conservadores e tradicionais que se imporiam sobre as leis, mesmo a fundamental.
Teresa Beleza tirou conclusões. Contrariando a sua vocação para resolver o discurso judicial pode ser um problema quando mina a imposição de igualdade entre homem e mulher no casamento, numa ordem mais íntima e mais decisiva: dentro da casa e do quarto conjugais. A ordem pública subverte-se numa ordem privada e invade a privacidade no mais privado dos domínios. Estas decisões continuam a dar que pensar. Porque se mantém, no foro judiciário, de modo mais ou menos subreptício a acobertar o modelo tradicional de casamento.
No Acórdão de 17.6.2004, o STJ afirma que o que move a mulher a trabalhar é a remuneração, a “pecha do materialismo”. Não tiveram os juizes pejo em afirmar a sua certeza de que os cônjuges seriam bem mais felizes se não tivessem surgido a separação e o divórcio. Se uma perspectiva de maior “espiritualidade” imperasse nas necessidades familiares. Ou seja, se a mulher se resignasse a cumprir as "suas" tarefas domésticas e se limitasse a deixar para o marido o privilégio e o desafio de providenciar o sustento da família. Não conseguimos imaginar os tribunais a defender que um marido, ou porque tem menos estudos ou porque tem uma profissão ou carreira menos rentável, fique em casa, tratando de ter o jantar pronto a tempo e horas, e pronto para cumprir com os seus deveres conjugais. A ordem patriarcal das famílias felizes, da abnegação feminina, preconizada pela ideologia do Estado Novo volta a criar adeptos nas instâncias judiciais e regressa assim pela porta das decisões judiciais superiores.
Percorreram-se algumas etapas históricas (a criminalização diferenciada do adultério, a sujeição a medidas de segurança das prostitutas ou dos homossexuais (era este o género gramatical dos protagonistas que resultava da nossa lei e da sua aplicação) e até a um uso menos pernicioso do género nas leis penais, como alterar o tipo do crime de violência doméstica, de privado para público). Mas, se desde o processo das “Três Marias” (Novas Cartas Portuguesas) se fez algum caminho, a perseguição da jornalista Maria Antónia Palla pela autoria de um programa televisivo sobre o aborto em 1976 (Beleza, 2002. Tavares, 2003), denota que ainda há outro tanto para percorrer.
O crime passional é prova disso. A mulher que mata não é “simplesmente” homicida, é um monstro. Se mata os próprios filhos, é-o ainda mais. Ou é louca. Se mata o marido, desafia a sua autoridade “natural”. (Em tempos, o carácter particularmente grave deste homicídio era assimilado ao do regicídio) O homicídio da mulher pelo marido, mais ainda se a pretexto de infidelidade, é uma "questão de honra", e, ainda hoje, tratado com uma certa misericórdia selectiva.
Tradicionalmente, o Direito distinguia não só consoante a classe social da mulher, mas também consoante, ainda, a sua classe sexual. Em "Dos privilégios e prerrogativas que o género feminino tem por direito comum e ordenações do Reino mais que o género masculino" (1557, Rui Gonçalves) põe-se em evidência a forma como o Direito Comum e as Ordenações do Reino diferenciavam mulheres honestas das que vivem desonestamente, entre mulheres nobres e honradas e as de diferente qualidade.
Nos tribunais do mundo inteiro, as mulheres têm feito guerra às injustiças baseadas no género.
No caso de Unity Dow, em 1991, concluiu-se que a Lei da Cidadania do Botsuana era discriminatória contra mulheres. Veja-se o caso Amina Lawal, na Nigéria, cuja sentença de morte por apedrejamento por um alegado adultério foi revogada pelo Tribunal de Recurso da Sharia em 2003.
A contribuição das mulheres para a promoção da responsabilização no sistema judicial para todos os cidadãos deve-se, em grande medida, à insistência de que a justiça começa em casa, e que os tribunais e o sistema judiciário desempenham um papel garantístico de um tratamento jurídico a todos, de forma integral, justa e uniforme.
Mas urge continuar esta peregrina luta. Sobretudo em três vias: a normativa — promover mudanças nas atribuições ou no mandato do sistema judicial nos termos da constituição e do enquadramento jurídico; a processual — assegurar a implementação de mudanças jurídicas por meio de instituições tais como o poder judiciário e a polícia que aplica as leis, e nos seus procedimentos operacionais, incluindo as normas de equidade processual, procedimento probatório e admissibilidade; a cultural — mudanças nas atitudes e práticas dos responsáveis pela protecção das mulheres contra o exercício arbitrário do poder.
Uma das principais realizações foi o atenuar da barreira entre o direito público e privado, insistindo, por exemplo, que o dever de protecção do Estado se estende à protecção contra a violência doméstica e à igualdade de direitos no casamento.
Algumas medidas têm marcado a diferença: Os Tribunais Penais Internacionais para o Ruanda e a ex-Jugoslávia contam com medidas de protecção de testemunhas para as vítimas de ataque sexual, incluindo o uso de pseudónimos, a realização de audiências privadas, o disfarce das vozes das vítimas e a não divulgação dos seus nomes aos acusados. No Leste da Nigéria, o activismo dos grupos de mulheres tem assegurado a nomeação de mulheres como “chefes de boina vermelha” que participam no julgamento de litígios locais.
Mas persistem ainda dificuldades nos tribunais e dos legisladores em preencher a lacuna de transmissão entre os direitos humanos internacionais e as disposições constitucionais sobre a igualdade, para além das ideias enraizadas sobre a resolução de contendas, que tendem a reflectir os tradicionais papéis de género. Para que os sistemas jurídicos funcionem para as mulheres, têm de oferecer um fórum onde as mulheres possam assegurar a responsabilização sempre e em qualquer parte em que os seus direitos sejam violados. Isso significa tratar das tendenciosidades baseadas no género nas dimensões normativas, processuais e culturais dos sistemas jurídicos, tanto a nível formal como informal.
Recentemente, o livro "Género e Justiça: que Igualdade para o Séc. XXI?", de Teresa M. Bravo (Juiz de Direito, Tribunal de Família e Menores da área da Grande Lisboa) e o relatório "Âmbitos de convergência: Cultura, género e direitos humanos", realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a População Mundial, deram sinais positivos.
E, se estamos ainda longe de ter ganho a batalha, o percurso permite já afirmar que, seguramente, vamos vencendo as guerras.