domingo, 18 de abril de 2010

Amor doentio: uma doença (quando as vítimas são os filhos)

Um menino que a mãe não deixava ir à escola nem sair de casa e que aos 9 anos tinha conhecimentos avançados de física e matemática, a contentar a mãe que queria que o filho fosse médico. "Ela queria que ele fosse um génio para receber o Prémio Nobel", recorda Dulce Rocha, presidente executiva do Instituto de Apoio à Criança (IAC).
Em Portugal, o excesso de protecção pode levar, no máximo, a que os pais percam a guarda da criança, mas nunca ninguém foi condenado em tribunal. Ao contrário do que já aconteceu em Itália, onde um juiz sentenciou uma mãe a 3 anos de prisão por ter desenvolvido um amor doentio pelo filho. Aos 7 anos, a criança mal sabia andar, porque a mãe e os avós maternos a levavam ao colo para todo o lado com medo que ela caísse. Hoje, com 13 anos, o rapaz não sabe correr e até subir escadas é uma tarefa que faz a custo. Apesar de ser o melhor aluno da turma, na escola não se relaciona com os colegas, não come nada que não seja cozinhado pela mãe ou pela avó e nem consegue fazer chichi sozinho. Os juízes não tiveram dúvidas: este amor extremo é uma forma de maus tratos. Por isso, condenaram a mãe a 3 anos de prisão, o avô a 3,5 e a avó a 2 anos. É um caso inédito em Itália, mas criou um precedente que há-de merecer estudo por cá também.
"Quando as pessoas são divorciadas, o excesso de zelo pode ser motivo para mudar a guarda", explica o advogado, especialista em direito da família, Helder Ferreira. Já António Fialho, juiz no Tribunal de Família e Menores do Barreiro, considera que em alguns casos pode haver relevância criminal e uma condenação por maus tratos. Porém, o juiz também prefere uma intervenção psicológica, porque, "quando uma mãe ou pai protegem de tal forma que influenciam o desenvolvimento da criança, isso está relacionado com uma perturbação dos pais". Assim, a medida mais frequente é a intervenção psicológica junto da família. "A hiperprotecção não justifica uma separação da criança", defende o pedopsiquiatra Emílio Salgueiro. O presidente do colégio da especialidade da Ordem dos Médicos diz que a solução está "numa intervenção com a mãe, o pais e os familiares que lidam com a criança". Também Dulce Rocha, ex-magistrada do Ministério Público, acredita que "seria uma violência para a criança ser separada da única família que conhece". Se o superior interesse da criança determinaria à partida o afastamento de quem a protege em demasia, essa decisão pode ser ainda mais prejudicial para o seu desenvolvimento, por esta ser a única família que conhece, acrescenta a responsável do IAC.
A mãe portuguesa que queria que o filho realizasse os seus sonhos e fosse médico não perdeu a sua guarda, mas teve apoio psicológico e a criança acabou por se conseguir integrar numa turma com meninos da mesma idade.
Quanto ao caso italiano, a solução parece mais difícil. O pai, que pôs a acção em tribunal, viu o filho três vezes e às escondidas desde que saiu de casa. Por isso, não existe entre eles uma relação e a criança até disse em tribunal que odiava o pai, por ele o querer afastar da única família que conhece. Apesar da forte protecção da mãe e dos avós, o menino de Ferrara (Norte de Itália) é o melhor aluno da sua turma. Mas a pedopsiquiatra Luísa Vicente alerta que isso não significa um crescimento saudável. "As crianças podem a desenvolver uma psicose".
Contrariando a ideia de que a falta de cuidados é a mais prejudicial para as crianças, o excesso de cuidados está a levar os juízes a retirar aos pais a guarda dos filhos. E a obesidade foi um dos primeiros sinais de que a abundância pode não ser positiva. "Tem havido uma preocupação recente com os cuidados da alimentação. Onde não há uma conduta de falta de cuidados, mas de falta de controlo do que as crianças comem", diz o juiz António Fialho, especialista em família e menores.
Um dos últimos exemplos é o de um casal escocês que perdeu a guarda dos 7 filhos, em Outubro. Os pais eram obesos e foram acusados de negligência. A maior parte das crianças estava acima do peso normal, a mãe, 40 anos, tem mais de 145 kg, e o pai, 53 anos, pesa 115 kg.
Antes desta história, já um outro caso tinha chamado a atenção para os excessos alimentares, em 2007. Connor McCreaddie pesava 90 quilos, aos 8 anos. Já tinha partido 4 camas e 5 bicicletas. A mãe foi chamada a tribunal e arriscava-se a perder a custódia se o filho não emagrecesse. A decisão final não foi tornada pública, mas a criança conseguiu perder 9,5 kg em 2 meses.
Mas nem todos os casos chegam a tribunal. E muitas situações de hiperprotecção ficam-se pelo consultório do pedopsiquiatra ou psicólogo. Luísa Vicente, pedopsiquiatra, dá o exemplos de pro- tecção excessiva, que partiram de episódios agudos de perda.
Um menino de 3 anos não fala porque a mãe está sempre com ele e responde a todas as suas necessidades de imediato, não precisando a criança de se exprimir, embora perceba tudo. Isto porque esta mãe perdeu um outro filho no final da gravidez. A partir daí ficou mais possessiva.
Uma mãe que não deixa o filho de 4 anos dormir sozinho. A morte inesperada do marido provocou-lhe um sentimento de protecção excessivo e ela não admite deixar a criança dormir no seu quarto. "Muitas vezes as crianças aparecem como um substituto, um antidepressivo a que estas mulheres se agarram", conclui a professora universitária.
Um menino que era saudável. Frequentava o 1.º ciclo. Não tinha problemas de saúde, mas os pais suspeitaram que estava doente e comecaram uma intentada peregrina e obsecada para descobrir "a doença" do filho. Foram ao médico e contaram-lhe as suas suspeitas. Para eles, o filho tinha um cancro. O médico fez todos os exames possíveis e acabou por concluir que o pequeno não tinha nenhum problema oncológico, nem estava doente. Mas o casal não acreditou e procurou outra opinião clínica. E outra e outra... Os médicos, desconhecendo as tentativas anteriores dos pais, encaram a situação como nova, voltam a fazer todos os exames e concluem todos da mesma maneira. O menino era são. Durante + de 1 ano percorreram médicos atrás de médicos, obrigaram o filho a submeter-se a exames de diagnóstico e mantiveram tudo limpo até à exaustão para proteger a criança. O caso acabou por ser denunciado pela escola, motivado pela constante ausência às aulas, e chegou aos tribunais nacionais. O juiz concluiu que o casal não se apercebia que, apesar de tentarem proteger o filho de uma doença, o estavam a prejudicar. Foi-lhes proposto acompanhamento psicológico. Este apoio clínico evitou o afastamento da criança dos pais. Os especialistas consideram mais saudável um acompanhamento psicológico dos progenitores demasiado protectores do que o seu afastamento total da criança. Ao contrário da maioria dos casos que chega à barra do tribunal em Portugal, estes pais exageraram nos cuidados e na protecção que deram ao seu filho.