quinta-feira, 22 de abril de 2010

Violações sexuais e crimes passionais: desencontros entre o Eu e o Outro



Zeke Skreve cita Hegel quando diz que "...nada de grande se fez sem paixão".
Os chamados crimes passionais trespassam, de quando em vez, o nosso quotidiano informativo. A paixão é usada como pretexto para desculpabilizar o crime e, muitas vezes, potencia-o. Não é um paradoxo… não é uma fatalidade. O crime passional associa-se a pessoas que têm, ou tiveram, um envolvimento sexual ou amoroso. Entender o crime passional presume que se escalpelize a paixão: pode resultar do amor, e incendiá-lo, é a paixão calma e terna ou pode surgir do ódio, do sofrimento, da revolta, da mágoa, é a paixão descontrolada, destrutiva e cruel.
A paixão é marginal… mas absolutamente possessiva. Ficciona territórios e feudos… unilateralmente. O amor gere-os… solidariamente.Este é o fosso.
Crimes de paixão não são nunca crimes de amor. Se a paixão é a mola do crime, então o amor ausentou-se, em dado momento; ou, talvez, nunca tenha chegado a existir. O crime passional não é (nunca, perdoem-me a carga) um crime de amor… independentemente de, na barra dos tribunais, ser, maioritariamente, esse o pretexto recorrente.
A paixão desencadeia mecanismos possessivos que a não serem sublimados geram frustração e esta, por sua vez, silenciosamente, vai larvando um surdo sentimento de revolta. É nesta fase que surge a vontade de destruir, de “lavar” a rejeição e, já em fase terminal, punir quem se afasta da relação. A paixão é híbrida e de contornos pouco esclarecidos: social, ou anti-social, a paixão é, será sempre, inquietante, premeditada, arrebatada e consequente… para o bem, para o mal. Não é um estado transitório que pode, pontualmente, desencadear emoções violentas – figura tão presente, e juridicamente invocada, na maioria dos crimes passionais – é, pode ser, um estado crónico, patológico (bastas vezes) duradouro e obsessivo… e muito intenso e intolerante.
No crime passional, raramente há explosão… mas necessariamente há implosão…Esta implosão é a causa necessária e idónea para a formulação do ímpeto criminoso.
A análise objectiva dos quadros e cenários envolventes e presentes nos crimes de índole passional revela-nos, bastas vezes, que houve na paixão um exercício premeditado e frio onde o interveniente activo, na violência, purga o seu narcisismo e ego. O acto criminoso parte de um processo impulsivo onde é motivado pela emoção desde a intenção à acção. Acha-se imputável e acredita possuir capacidade de entendimento e controlo da acção, ou seja, o criminoso acredita que poderá programar e executar a morte da vítima sem erros e assegurado em seu direito como se considerasse o outro como uma propriedade. O que se pode perceber também deste carácter impulsivo é um baixo limiar de tolerância à frustração desencadeando assim respostas exageradas diante de estímulos mínimos. Os estudos a nível da psicologia sobre o condicionamento, nos fazem compreender melhor este acto.
É um tipo de crime muitas vezes premeditado e basta olhar às reportagens jornalísticas, às informações policiais e casos encontrados em algumas bibliografias, dão-nos conta disso. O crime passional está explicitamente ligado ao ciúme, mas não o ciúme de um amor afectuoso e sim um amor possessivo que leva, inclusive, ao homicídio.
A paixão gerou ao longo dos tempos acesas discussões… e visões díspares da mesma problemática e o curioso é que, ainda hoje, a máquina judicial é fértil em (des)entendimentos e jurisprudência que, na súmula, nos faria recuar aos aristotélicos e aos estóicos.
Duas correntes histórico-fisosóficas tentaram definir-lhe os contornos: Aristóteles defendia que a paixão era intrínseca ao ser humano não devendo ser, pois, extirpada ou condenada. Platão e o estoicismo viam na paixão uma barreira e uma força que devia ser contrariada e vencida. Embora a visão aristotélica da paixão a desse como uma fatalidade, conseguia ainda assim determinar que virtuoso era aquele que conseguia agir em harmonia com as suas paixões como se a paixão pudesse ser “educada”; para a visão aristotélica a paixão não era em si um mal, ou causa dele, mas sim um regulador que dava unidade e estilo à conduta humana. O estoicismo, em oposição, considerava a paixão, o pathos, um obstáculo à razão, o logos. A paixão em nada contribuía para a perfeição do carácter, assumindo que o apaixonado – o refém do seu pathos – era um ser irremediavelmente perdido). Estas duas visões, aqui simplisticamente reduzidas, suscitaram, e suscitam, profundas e decisivas questões ético-ideológico-económicas ligadas, hoje, à noção de psicopatologia e, decorrente disso, ao entendimento do que é, de facto, a saúde mental e de que forma a temos que abordar. Se, por um lado, Aristóteles considerava que o sujeito devia gerir a sua paixões, numa unidade harmoniosa com a razão, o estoicismo reduzia os apaixonados, vítimas do pathos, a irresponsáveis e inimputáveis na suas acções. O que está em discussão nestas duas posições e que afecta tanto os que padecem de sofrimento mental como os que se propõem cuidar dele, é a questão da responsabilidade: e se a visão aristotélica a entende, já a estóica a restringe. Se, num posicionamento, deve entender-se o pathos para dele tirar proveito, no outro, o pathos deve ser destruído por tratar-se de uma doença. É esta a perspectiva – a estóica - que, ainda hoje, advoga o argumento de que o refém da paixão, o subjugado por ela – o que, em fase terminal, o materializa num crime passional, por exemplo – tem a culpabilidade reduzida ou atenuada. A visão aristotélica, pelo contrário, ao assumir a paixão como constitutiva e intrínseca ao indivíduo, cabendo a ele a sua adequada gestão, condena o seu mau uso, devendo este ser punido por “gestão danosa”, se assim se pode dizer, sem atenuantes.
E aqui chegamos ao interminável braço de ferro entre o normal e o patológico: ou o pathos é causa de conduta, susceptível de ser gerido por conceitos éticos, ou o consideramos como doença que aliena o protagonista reduzindo-o a um mero objecto, a carecer de cuidados especializados.
Actualmente, a fronteira que separa os dois conceitos de pathos – o passional e o patológico – estreita-se. Há um invariável deslocamento do domínio da ética para o da terapêutica. E, sem dúvida que, no momento em que no embrião dos padrões de comportamento do indivíduo pululam pulsões cuja génese ele ignora, a paixão passa a ser entendida como um “outsider interno” que, em vez de se harmonizar à vida do sujeito – visão ética – é submetido a um procedimento que visa o seu exorcismo – visão terapêutica.
Neste contexto, tratar as paixões remete-nos para as catalogar e lidar com elas como uma disfunção, isto é, não mais entendê-las como intrínsecas ao indivíduo com as quais ele tem de saber conviver, mas, sim, como algo perturbador que não se submete ao seu controle.
A contemporaneidade assume o indivíduo apaixonado como isento de culpa, apenas doente: cada vez mais iremos assistir à terapêutica ocupar o lugar da ética; o desvio o lugar do erro; e a cura, o do castigo. Há como que uma travestização (o termo poderá ser forte) que leva a que, hoje, a exigência de “normalidade” seja maior; embora, neste particular, o delito (o crime passional) não seja mais imputado a uma incapacidade de controlar as paixões – ao pathos/passional – mas, antes, a uma doença – ao pathos/patologia - . O que acontece é que indivíduos que cometem este crime tentam utilizar tal sentimento para amenizar sua culpa e sua sentença. Alegam ainda que realizaram tal acção pela defesa de sua honra enquanto homem perante a sociedade, preocupados com sua reputação. A paixão não pode ser utilizada para perdoar um assassínio e sim para explicá-lo.
O homicídio passional, juridicamente privilegiado, é o paradigma do crime passional. Parece-me não o esgotar mas preenche-lhe os contornos e tipifica-o claramente. O homicídio é quase sempre fruto de factores aleatórios e são eles que “disparam” a execução. Mesmo com premeditação, o homicídio, na sua execução, é condicionado por factores exógenos, de tal forma que não raro se assume que “ é o crime que todos podemos – e somos capazes – de cometer” .
Do ponto de vista sociológico defende-se mesmo que se há situações em que o ditado popular “ a ocasião faz o ladrão” tem aplicabilidade, no homicídio enquadra-se na perfeição.
Em Portugal o homicídio passional sempre reclamou a sua quota estatística no panorama delituoso, muito embora, nos últimos anos, a sua percentagem entrasse em decréscimo, reclamando para si, sensivelmente, uma décima parte do universo delituoso congénere. Por detrás desta descida efectiva estão razões que se prendem com uma reformulação das mentalidades que, gradualmente, evoluíram no sentido da fragilização dos preconceitos e das tradições que marginavam o casamento e a monogamia. Também a desertificação do interior – a dita província – que durante muitos anos constituiu o cenário tradicional deste tipo de crime – proximidade das pessoas e a exigência de “lavar a honra” nos casos de adultério e calúnia – contribuiu decisivamente para o decréscimo de ocorrências. Aliás, o homicídio passional, no caso português, é tão característico como o é o homicídio rural (também ele potenciado pela interioridade geográfica): nos domínios onde o sentimento de “propriedade” e “honra” é muito mais vincado e inflexível. As cidades diluem estes sentimentos e desvinculam, por um maior anonimato, os intervenientes.
Factores como a desertificação, a debandada da população para as cidades e para o estrangeiro, com a consequente reformulação e flexibilização de conceitos e culturas, contribuíram decisivamente para que este tipo crimes – passional e rural - decrescesse. Mas numa visão mais abrangente poderíamos admitir que os povos latinos vivem as suas paixões e paixonetas com peculiar intensidade. Com a mesma intensidade com que aceitam, ainda que inconscientemente, os desenlaces trágicos e, não raro, revelam compreensão, empatia e mesmo desculpabilização pelo homicida passional. Ainda hoje e apesar da avalanche de novos conceitos, culturas, conhecimento e formas de estar, a mulher adúltera é estigmatizada, enquanto que o homem é, tão só, um “garanhão”.
Nos depoimentos dos autores de homicídios passionais extrai-se sempre a ideia de que assim agiram por terem sido vítimas de uma afronta insuperável, encontrando no seu acto – no derramamento de sangue da vítima – a única saída para a lavagem da honra. Não está subjacente às motivações para o acto a iminência de perderem o objecto da sua paixão mas apenas a incapacidade de conviverem com a ideia de serem feridos no amor próprio.
As diferentes redacções do Código Penal que, desde 1852, foram tipificando e punindo o crime passional libertaram-se, gradualmente, da “latinidade” a que há pouco me referia mas, ainda assim, o fundamento da “compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, atribuem ao acto de matar um cariz “de privilégio” que atenua a culpa do agente do crime. E muito embora a culpa exista, o acto é julgado e “compreendido” à luz de um universo de condicionantes “emotivas” que fragilizam aquela.
O homicida passional não tem genes psico-morfológicos que permitam traçar-lhe um perfil criminal. Como bem alguém referiu este é o tipo de crime que qualquer um de nós pode e sabe cometer. Há, sim, na minha opinião, um perfil situacional ou circunstancial que pode predispor ou criar condições para a execução do crime. Daí que, tal como atrás referi, o crime passional não resulte de “flashes emotivos” mas de um processo lento de auto-comiseração.
Duas situações – circunstâncias – assumem-se como potenciais motivadores: a dependência e possessão. Na dependência, um dos actores – homem ou mulher – projecta no seu parceiro a sua fonte de vitalidade. Por insegurança muitas vezes. Esta dependência e “solicitude” requer e exige presença e/ou reciprocidade. A falha de uma destas traves mestras pode empurrar o “carente” para: o desespero que, não raras vezes, conduz ao suicídio; a raiva, por sobreposição à idolatria, só sublimada no desaparecimento físico da causa (o outro). Na possessão, um dos actores assume para si que, o funcionamento da relação, exige o exercício da sua autoridade e controle e só assim consegue estimular o seu desejo. Se outro alarga o seu universo afectivo, de tal modo que estabelece quotas de afectividade, o detentor da “posse” vai vendo a sua área de controle reduzida e, no limiar da tolerância – e cada qual terá os parâmetros de tolerância – rompe, definindo para si que “se não é meu, não será de mais ninguém”. Esta análise situacional, ou circunstancial, é ajustável aos dois sexos, ou mesmo entre afectividades de indivíduos do mesmo sexo (nestes caso até, com desenlaces de extrema violência). Por este facto, as pessoas não devem ignorar as ameaças por parte dos seus parceiros, caso se decida acabar com a relação. Esta ignorância dos sinais evidenciados pelos parceiros (a) fez com que algumas relações amorosas terminassem em morte. O mundo actual, a globalização, a pequenez a que a individualidade está condenada gera no “eu” sentimentos de desamparo, perante o torbilhão dos acontecimentos e a descartabilidade que as coisas, os valores e as pessoas vão assumindo. Este sentimento de desamparo, esta relação de desamparo com o mundo leva-nos, cada vez mais, a procurar quem nos conceda o amparo afectivo, o abrigo que nos resguarde do turbilhão. Quando este amparo falha, ou é espartilhado, há uma reacção. No limite… violenta.
Enfim, pode-se compreender que num crime passional há sempre um factor preponderante (em sua maioria o ciúme patológico), mas é verdade que existem outros factores externos que devem ser levados em conta como o tipo de relacionamento do casal, a história do agressor, além de seu estado psíquico; motivos externos como família, sociedade, amigos e a questão financeira. Um trabalho multidisciplinar da Psicologia, Psiquiatria, Direito e a Perícia Policial poderia ser um avanço na compreensão da mente criminosa. Este tipo de serviço, além de priorizar a vítima, trabalharia com as políticas de segurança pública para analisar e antecipar a conduta do criminoso. As violações sexuais e os crimes passionais chegaram a um limiar que exige mais acção e menos contemplação por parte das estruturas de direito.