sábado, 24 de abril de 2010

Cristina Mendonça, no Haiti em Missão Impossível



A médica Cristina Mendonça conta a frustração sentida nos 15 dias em que esteve em missão humanitária em Port-au-Prince, capital do Haiti. Diz que não havia dois dias iguais, e que, acontecesse o que acontecesse, o acordar tinha hora marcada para as 5 da manhã. 5 dias depois do sismo que abalou o Haiti, a equipa portuguesa de ajuda humanitária aterrava no aeroporto da capital. No grupo de 24 elementos - da Protecção Civil, Força Especial de Bombeiros Canarinhos, INEM e AMI - viajou como técnica de medicina legal, encarregue de uma missão especial: não tanto cuidar dos sobreviventes, mas tratar dos mortos.
A Cristina Mendonça, directora do Serviço de Patologia Forense da Delegação do Centro do Instituto Nacional de Medicina Legal, cabia a missão de identificar um batalhão de cadáveres e entregá-los às respectivas famílias. Quando o Hércules C-130 da Força Aérea aterrou em Port-au-Prince eram 20 horas. "Para nós era uma da manhã, acabados de sair do avião ainda com a hora portuguesa", recorda. À chegada, a primeira imagem foi devastadora: "O edifício do aeroporto completamente destruído." O grupo português instalou-se num acampamento montado na parte oriental da pista do aeroporto. Foram 15 dias a dormir em sacos-cama dentro de uma tenda de campanha da Protecção Civil. Na manhã do primeiro dia, a estrada do aeroporto era um amontoado de carros, gente e destroços. "As pessoas apercebiam-se da chegada de aviões e, cada vez que algum aterrava, vinham pedir ajuda. Era assustador", admite.
A morgue do Hospital Central de Port-au-Prince foi a primeira paragem da médica portuguesa. "Um amontoado de centenas cadáveres sem nome, em toda a parte, dentro e fora do edifício." Dias depois, quando voltou à morgue, os corpos tinham desaparecido. "Foram carregados com pás para camiões que, depois, os encarregaram de levar para as valas", explica. Não foram identificados, contabilizados ou registados. "Simplesmente lançados em valas comuns, sem qualquer critério, até porque a população não estava recenseada e as autoridades não mostraram qualquer interesse em certificar os óbitos". Enquanto isso, os cadáveres dos estrangeiros eram entregues a uma empresa funerária privada, contratada pelas Nações Unidas. "Um enorme contra-senso. Era a inércia das autoridades sanitárias, a subversão completa. Nós oferecíamo-nos para fazer as coisas e ninguém mostrava interesse. Não consegui", admite. Por isso, o trabalho da técnica da Medicina Legal centrou-se sobretudo no âmbito da ajuda médica e Cristina foi integrada no grupo para ajudar no objectivo principal da missão da Força Operacional Conjunta, a criação do campo de desalojados. "Os amputados.. foi o que mais me chocou. Pensava muitas vezes em como seria a vida daquelas pessoas dali em diante, privadas de quase tudo". Apesar disso, havia a resignação e o silêncio. "As pessoas queixavam-se pouco. Às vezes pensava que em Portugal, em condições bem melhores, as pessoas já estariam todas aos gritos. Ali não havia condições e eles ficavam em silêncio. Mesmo as crianças não choravam. Isso acontecia porque era gente sofrida, com vidas sempre difíceis".
Apesar dos esforços, a ajuda nem sempre funcionava. "Não havia protecção militar e policial suficiente e a falta de coordenação internacional era dramática. Contactámos com uma equipa que esteve no terreno sete dias e só conseguiu trabalhar três horas em missão de socorro e resgate, porque não eram integrados em grupos", conta.
Duas semanas depois da chegada, a acção humanitária da equipa portuguesa terminava, oficialmente, com um jogo de futebol. E o regresso foi diferente: "A viagem passou mais depressa. Foi bem mais leve que a ida. Um grande alívio." Para trás, recorda a médica, ficavava "a desgraça, a falta de meios, e o rasto de destruição". Voltar? Sim. "Daqui a dois anos, para ver como é que aquilo ficou. Mas não prevejo que daqui a cinco, seis anos, esteja bem. É gente que já vivia em miséria extrema antes. Não há solução", acredita. Mas voltar em missão é que não. "É frustrante, do ponto de vista profissional". (in Jornal i)
Uma missão impossível.