segunda-feira, 31 de maio de 2010

CAUSAS E COISAS E CURIOSIDADES DO DIREITO

Andorinhas no Supremo - O direito das andorinhas a nidificarem em lugares habitados constitui uma parcela do direito do ambiente. A defesa do ambiente pode justificar restrições a outros direitos constitucionalmente garantidos, mesmo o direito à saúde. Deve o Estado retirar das paredes de um Palácio da Justiça todo e qualquer instrumento (nomeadamente redes, espigões e arames) que impeça a nidificação nas referidas paredes das andorinhas, não impedindo a nidificação dessas aves. — Relator: Fernando Pinto Monteiro, Supremo Tribunal de Justiça
Os barulhos do talho - Os ruídos e vibrações provocados por um motor eléctrico e câmara frigorífica pertencente a um talho situado por baixo de uma habitação, bem como o barulho causado pelo batimento de machados cutelos e instrumentos análogos, que não permitem repousar normalmente e conciliar o sono a quem nela habita, viola o direito de personalidade dos seus habitantes consubstanciado no direito ao repouso e sossego. — Luís Voz Fonseca Martins, Tribunal Judicial de Castelo de Paiva
Private Banking/cláusulas proibidas - As cláusulas de um contrato relativo a um cartão de crédito destinado a um círculo restrito de clientes de um banco, designadamente os utentes da prestação de serviços denominada “Private Banking”, “verificando-se qualquer divergência entre o Banco e o titular incumbe este a prova dos factos que invoque” e “esse extracto constitui documento comprovativo da divida do titular ao banco e considera-se exacto se não for recebida nenhuma reclamação escrita até à data limite do pagamento ” e “o banco pode unilateralmente cancelar a utilização do cartão, com um pré aviso de dois dias”são absolutamente proibidas. - Fernando Vilares Ferreira, Juízos Cíveis do Porto
Cláusulas escondidas e não lidas - Para que num contrato de adesão o aderente possa ter um conhecimento efectivo das cláusulas antes de as subscrever é preciso que as mesmas lhe sejam lidas e explicadas. É de todo irrelevante o facto de as mesmas constarem no verso do contrato possibilitando uma leitura posterior, pois a aferição da comunicação terá que ser efectuada no momento em que foi emitida a declaração negociai. A omissão da leitura e explicação do teor das cláusulas contratuais, bem como a sua inserção no verso do contrato, sendo certo que o local da assinatura é no fim do frontispício, implica que tais cláusulas se considerem não escritas. - Isabel Namora, Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira
Doido e perigoso - Não há violação do artigo 5-4 da CEDH se a decisão judicial que aplicou medida de segurança de internamento psiquiátrico a inimputável perigoso impôs a essa medida a duração mínima de três anos. - Relator: R. Ryssdal, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
Infiltrados dentro da lei - A não configuração no relatório policial, por razoes de segurança, da actuação dos agentes infiltrados até ao fim da operação policial que levou à detecção da droga, não permite concluir pela existência de um processo de provocação à prática do crime, porquanto a vontade dos agentes já estava assumida, preenchendo por isso o meio de prova os requisitos legais. Ao controlar totalmente a actuação dos agentes do crime, a PJ eliminou qualquer risco de utilização maléfica do produto estupefaciente, nunca se tendo verificado um perigo real de ofensa ao bem jurídico protegido pela tipificação do crime. Tal situação, não afasta a ilicitude da conduta, tendo presente a natureza do crime tipificado no artigo 21° do Decreto-lei 15/93. — João Albino Ataíde das Neves, Tribunal Judicial da Figueira da Foz
Infiltrados fora da lei - Residindo a diferença entre o agente infiltrado e o agente provocador na pré-existência de sinais inequívocos da prática de delito criminal, o primeiro limita-se a esperar atentamente pela prova enquanto o segundo a provoca. Apesar da predisposição do agente para o crime, ou da sua actividade criminosa anterior, a existência de uma actuação desenvolvida pelo provocador, sem a qual o crime se não verificaria, implica a inadmissibilidade do meio de prova, porque enganoso e consequentemente, ilícito. - Fátima Matamouros: Tribunal Central de Instrução Criminal
Gémeas siamesas - Na operação para separar gémeas siamesas pelo abdómen inferior e partilhando quatro membros inferiores, tratou-se de realizar uma operação sem a qual nenhuma das vidas teria integridade física que lhe era devida, sendo que uma delas iria morrer em breve. — Relator: Ward, Court of Appeal, London
Médicos e indústria farmacêutica: ligações perigosas? A questão da licitude ou ilicitude do acto médico de prescrição de medicamentos não se esgota no efeito curativo ou prejudicial do fármaco ou na adequação deste ao caso concreto. A prescrição de fármacos por clínicos condicionada por uma perspectiva de ganho patrimonial destes, aumentando os custos c sendo nalguns casos desadequada, configura a existência de acto ilícito, passível de enquadrar-se no tipo de crime corrupção para acto ilícito, p.p. pelo artigo 372.° do C.Penal. — José Manuel Quaresma, Tribunal Judicial da Figueira da Foz
Efeito Guilhotina - A existência de uma abertura resultante da quebra pardal de um vidro numa cabina de lavagem de veículos automóveis, não sinalizada com qualquer protecção ou aviso de impossibilidade de passagem, configura um defeito de conservação da mesma, que à proprietária da lavagem competia de imediato sanar. Ao manter o vidro naquela situação periclitante. a proprietária da lavagem de automóveis, deu causa à queda da guilhotina de vidro que cortou a perna de um cliente que atravessou por tal local e tocou inadvertidamente no referido vidro, e por isso deu também causa ao acidente de que foi vitima. A violação dos deveres básicos de cuidado exigíveis a qualquer homem de diligência normal colocado na situação da proprietária da lavagem de automóveis, que criou um perigo ao seu público consumidor ao deixar o vidro partido durante dias pendurado pela parte superior, é muito superior à imprevidência e desatenção do condutor que atravessou a janela partida. — Relator: Luís Espírito Santo, Tribunal Judicial de Oeiras
A culpa não é do cavalo - A circulação de um equídeo atrelado a uma carroça, numa via pública sem qualquer condutor, implica um perigo de fuga e desgoverno característico e próprio da sua utilização, que faz incorrer o seu proprietário na responsabilidade pêlos danos causados, independentemente de se apurar em concreto a sua culpa. — Pedro Lima, Tribunal Judicial de Ponta Delgada
Estado irresponsável - A decisão que decretou uma falência, em vez da homologação da proposta de medida de recuperação da empresa apresentada não pode constituir fundamento de responsabilidade civil do Juiz e do Estado por facto ilícito, por não se verificar in casu qualquer ilicitude na proferiçao da decisão. O meio de reagir e corrigir erros de direito cometidos em decisões judiciais, desde que não se alegue e demonstre a existência de dolo, é o recurso a instância superior. - Rui Ataíde Araújo, Varas Cíveis, Porto
Princípio da Cooperação - A norma do artigo 155.°, n.º l do CPC, segundo a qual o juiz deve providenciar pela marcação das diligências a que devam assistir os mandatários judiciais, não se aplica se algum dos mandatários já desencadeou o mecanismo dos n.º 2 e 3 daquele artigo. Tal norma também não se aplica na marcação da audiência de julgamento em processos de falência. - Relator: Álvaro Reis Figueira, Supremo Tribunal de Justiça

domingo, 30 de maio de 2010

Progressos da Justiça para a Igualdade de Género


A Justiça no mundo inteiro continua a ser um entrave, mais vivo que jurídico, para a igualdade do género. O caso de Unity Dow, em 1991, que concluíu que a Lei da Cidadania do Botsuana era discriminatória contra mulheres, ou o caso Amina Lawal, na Nigéria, cuja sentença de morte por apedrejamento por um alegado adultério foi revogada pelo Tribunal de Recurso da Sharia em 2003, foram já consideráveis conquistas. E um sintoma de que a história do Direito e da Justiça no Feminino estão a mudar. Os grupos de mulheres no mundo inteiro retiraram da esfera privada a violência doméstica, a falta de direitos sucessórios, a violação conjugal e o assédio sexual, hoje matéria pública. Eleanor Roosevelt, a activista dos direitos humanos, perguntava-se: "Afinal, onde começam os direitos humanos universais? Em pequenos locais, perto de casa, em locais tão pequenos que não são visíveis em nenhum mapa do mundo... Se esses direitos não significarem nada nesses locais, pouco significado terão em qualquer outro local. Sem uma acção coordenada dos cidadãos para defendê-los na esfera doméstica, poderemos procurar em vão pelo progresso no mundo inteiro.” A contribuição das mulheres para a promoção da responsabilização no sistema judicial para todos os cidadãos derivou, em grande medida, da insistência de que a justiça começa em casa, e que os tribunais e o sistema judiciário desempenham um papel fulcral enquanto garantes de que o enquadramento jurídico é aplicado de uma forma integral, justa e uniforme a todos os indivíduos, sobretudo independentemente do género. O sistema jurídico — que abrange o enquadramento jurídico, o poder judiciário, o ministro da justiça, os promotores e investigadores, as associações de advogados, os sistemas tradicionais e as práticas consuetudinárias — é de particular importância para a responsabilização perante as mulheres. Primeiro, pelo papel essencial do poder judiciário como árbitro final das queixas contra outros sistemas de responsabilização (sistemas eleitorais, legislaturas, a administração pública) transformou-o numa arena crítica na qual podem ser abordados os abusos contra as mulheres na esfera pública, tais como o assédio sexual perpetrado pelas autoridades públicas, uma distribuição tendenciosa do património público baseada no género ou processos eleitorais imperfeitos. Segundo, como as mulheres são mais susceptíveis do que os homens ao exercício arbitrário do poder na família e na comunidade, o direito e o processo judicial têm provado a sua importância crítica para demonstrar que os relacionamentos entre mulheres e homens não estão fora do alcance da justiça. Portanto, o sistema jurídico sustenta o estado de direito como a base para a responsabilização no exercício da autoridade pública, assim como do poder privado.
É este o ideal. No entanto, a realidade vivida pelas mulheres — sobretudo aquelas que são pobres — é frequentemente muito diferente. O importante é que as mulheres têm recorrido ao sistema jurídico, tanto a nível nacional como internacional, formal e informalmente, para reivindicar os seus direitos. Mostra como os sistemas jurídicos, tanto os formais como os informais, regra geral, não tomam o género em consideração, e como isso afecta as mulheres em casa e na vida pública. Existem três grandes vias seguidas pelas mulheres para eliminar as distorções de género e conquistar a responsabilização: • a normativa — promover mudanças nas atribuições ou no mandato do sistema judicial nos termos da constituição e do enquadramento jurídico; • a processual — assegurar a implementação de mudanças jurídicas por meio de instituições tais como o poder judiciário e a polícia que aplica as leis, e nos seus procedimentos operacionais, incluindo as normas de equidade processual, procedimento probatório e admissibilidade; • a cultural — mudanças nas atitudes e práticas dos responsáveis pela protecção das mulheres contra o exercício arbitrário do poder.
E, por último, faltará sempre a consciencialização pela responsabilização das mulheres no contexto dos sistemas jurídicos informais, que representam a experiência de justiça da maioria das mulheres e onde as normas nacionais e internacionais de direitos humanos podem ter pouca relevância.

sábado, 29 de maio de 2010

A grande história de Baltasar Garzón


Herói incorruptível para alguns; megalómano politizado para outros, depois de ter sido o “derrubador” de Augusto Pinochet e dos ditadores argentinos, entre outros, Baltasar Garzón foi acusado, a 7 de Março, pelo Supremo Tribunal espanhol, de ter faltado aos seus deveres. O juiz mais célebre de Espanha – talvez, mesmo, do mundo – terá abusado do seu poder para investigar a ditadura de Franco, um assunto ainda tabu, coisa que a direita espanhola não lhe perdoa, e arrisca-se a não poder exercer nunca mais.
No decurso dos seus 22 anos de carreira judicial, Baltasar Garzón incomodou muita gente. - Por cá incomodam pouco! Garzón nunca foi um homem discreto. Por cá diriam que "não tinha perfil para o cargo". Nunca fugir e sempre arranjou maneira (ou outros o fizeram por ele) de os dossiês mais escaldantes lhe caissem na secretária. Por cá acontece pouco!
Interessou-se pelo terrorismo puro e duro, passando pelo terrorismo do Estado e seus derivados: a utilização de fundos reservados. E não largou o osso da corrupção urbanística. Garzón conseguiu exportar o seu prestígio para o estrangeiro ao ocupar-se de assuntos também eles apaixonantes: a instrução do processo contra Silvio Berlusconi [por supostos abusos da sua filial espanhola Telecinco] e a emissão de mandatos de prisão contra o ditador chileno, Augusto Pinochet, e Osama Bin Laden.
Os rivais, que nem direito ao seu minutinho de estrelato tiveram, dizem que não se contam entre as suas vítimas nenhum grande administrador de empresas, mas foi precisamente Garzón que se filou como um justiceiro à escala internacional. E, se não se ocupou da falência do banco espanhol Banesto há quem afirme que a sua agressividade diminuiu em certos assuntos complicados ligados aos grandes bancos do país, como o BBVA e o Santander.
A sua trajectória continuava em frente e Garzón, infatigável, continuou a ocupar-se de grandes casos. Mas parecia destinado a ser, apenas, o mesmo magistrado célebre por muitos e muitos séculos porque as suas tentativas para obter um lugar mais importante na Audiência Nacional, no Supremo Tribunal ou no Tribunal Internacional de Haia se saldavam sempre por fracassos. Garzón parecia não ter apoio suficiente por parte dos seus colegas. Havia sempre qualquer coisa a trabalhar contra ele: à direita ou à esquerda formava-se, fatalmente, uma maioria que não o apoiava.
Vendo tudo o que conseguiu, poder-se-ia pensar que a única coisa que faltava a Garzón era a menção no seu curriculum de uma personagem histórica, um cromo para completar a sua colecção. Depois de ter passado pelo crivo a democracia e as suas falhas faltava-lhe examinar o passado. E tirar partido de uma personagem como Franco. Garzón já tinha acertado contas com muita gente, mas nunca se tinha aventurado no território do ditador. Apoiando-se na Lei da Memória Histórica, nas suas imperfeições e nas demandas negligenciadas das famílias de milhares de vítimas de fuzilamentos, Garzón quis instaurar um processo ao franquismo. E como a sua insónia e o seu carácter lhe permitem ter uma capacidade de trabalho notável, lançou-se nesta aventura ao mesmo tempo que punha de pernas para o ar o Partido Popular, por causa do caso Gürtel [um caso de corrupção, fraude e branqueamento que implicava dirigentes do PP].
Garzón viveu sempre acossado pelos aliados da parte afectada pelas suas investigações. Conhece o guião. Está preparado para sofrer pressões, tal como o manifestou num livro em que expõe os seus pensamentos e as suas inquietações (El Mundo sin Miedo, Plaza y Janés, 2005). Soube sempre sair das piores situações com a eficácia de um equilibrista. A outra parte vinha sempre em sua defesa.
Mas não é essa a impressão que têm tido, nestes últimos tempos, os membros dessa sociedade muito fechada que é a magistratura. Desta vez, são muitos os que estão convencidos de que o seu fim está próximo. São muitos os que pensam que Garzón já teve a sua época, que já não é necessário, sobretudo para os políticos. Todos eles foram vítimas da sua inclemência. As suas memórias dão-nos a imagens de um homem convencido de que veio ao mundo com uma missão e que aceita o sacrifício que essa missão lhe exige. O problema é saber se está pronto para viver um final que não tinha previsto. (Presseurope)

Crise económica - Como os eurocépticos poderiam salvar o euro


Uma estrela nos tempos da eurocéptica Margaret Thatcher, o deputado conservador John Redwood (o "Pol Pot da Privatização"), defende nas colunas do The Times que o Reino Unido deveria ajudar a fortalecer a moeda única. Como? A resposta é: "Nunca se deve desperdiçar uma boa crise". Porque "ela pode ser uma boa oportunidade para a Grã-Bretanha tentar obter o repatriamento dos poderes, em troca de permitir que os países da zona euro estabeleçam uma união mais estreita". Redwood analisa em primeiro lugar o caso da libra esterlina no Reino Unido. "Londres e a maior parte do Sudeste têm uma economia competitiva mas Liverpool e os vales País de Gales não podem deixar de reconhecer que têm de se tornar mais competitivos. Em vez disso, o Governo central transfere verbas substanciais para as partes da união que têm mais desemprego e rendimentos mais baixos, para tornar a união tolerável. Nós aceitamos isso como parte do preço de pertencer a uma área de moeda comum."
Redwood sublinha que um euro bem sucedido é importante para o Reino Unido. Por isso, a Grécia precisa de mais disciplina e "a Alemanha [também] tem de aceitar maior responsabilidade no financiamento de outras partes da união monetária". O Reino Unido deveria, portanto, ajudar os membros da zona euro a criar um enquadramento para a sua estabilidade orçamental. "Devemos pedir que nos sejam devolvidos poderes, como preço do nosso consentimento para a criação de um governo económico da Eurolândia." Nomeadamente nas áreas da política social e do emprego. (Presseurope)

A verdade da crise segundo Ivan Krastev, politólogo búlgaro



Durante anos, a UE viveu uma ficção politicamente correcta: todos os países tinham os mesmos direitos. Mas, em prol do modelo europeu, cidadãos e dirigentes têm de dizer a verdade, considera Ivan Krastev, politólogo búlgaro.
Será que a crise grega é grave? Estaremos ameaçados pela desintegração da zona euro? É. Sim, há o risco de insolvência de um Estado. A Grécia é o primeiro teste ao euro, com uma contradição no centro da crise: a esfera económica carece do reforço da integração europeia. Mas a tendência política vai na direcção contrária e a opinião pública europeia mostra-se cada vez mais eurocéptica.
Em que medida terá esta crise dividido a Europa? Já não se trata da divisão Leste/Oeste. Agora temos a divisão Norte/Sul. Países como a Estónia e a Polónia estão muito mais próximos da Alemanha do que Itália ou Espanha. Os países do Norte estão menos dispostos a repartir e não querem recompensar a Grécia pelo que ela fez. A divisão Norte/Sul é a mais importante de uma série de outras divisões. Assistimos à criação de novas alianças, no centro das quais França tenta posicionar-se. A segunda divisão é entre a zona euro e o resto. Neste momento temos duas Europas. Mas os novos Estados-membros da UE e outros países periféricos tudo fizeram para que isso não acontecesse.
A outra divisão é a que separa os países grandes dos países pequenos. Durante 10 anos, vivemos uma ficção que tinha a vantagem de ser politicamente correcta: fazíamos de conta que a Alemanha e a Grécia tinham os mesmos direitos. Neste momento não podemos continuar a fazer de conta que os grandes não são grandes e que os pequenos não são pequenos. A quarta e a mais importante divisão é a que separa os países governáveis dos que não se deixam governar.
Que países poria nesta última categoria, sem contar com a Grécia? Espanha, Itália e Bulgária e Roménia. Estes dois últimos estão um pouco mais preparados para apertar o cinto, pois é o que têm andado a fazer nestes últimos dez anos para entrar na UE. Mas isso não acontece com a Grécia nem com Portugal. Estes países caracterizam-se pela sua disfunção política, os seus sindicatos são poderosos e a sociedade pensa em função dos privilégios e não em função da realidade.
Na Europa do Norte existe um sentimento antieuropeu ligado ao facto de a UE não tratar todos os seus membros da mesma maneira. Os alemães castigaram a chanceler Angela Merkel nas eleições regionais na Renânia do Norte-Vestefália [9 de Maio] pela maneira indulgente como tratou o caso grego. Foi uma situação semelhante ao que aconteceu na Holanda, por altura das eleições municipais, no passado mês de Março. Os partidos radicais dizem: basta de distribuições. O protesto grego é diferente e, em substância, afirma: querem fazer de nós um protectorado. É uma atitude tipicamente anticolonialista.
Estas duas tendências vão ser politicamente dominantes, o que significa que a UE está prestes a perder os seus princípios políticos. Se a isto acrescentarmos a questão demográfica – a economia europeia carece de mais imigrantes do que a política europeia pode suportar – torna-se evidente que estamos mesmo metidos numa embrulhada!
Que atitude devem tomar os políticos para salvar a Europa comum, supondo que ainda são capazes de a salvar? Os especialistas afirmam a necessidade de uma integração mais firme das políticas económicas. De que maneira conseguiremos que este princípio seja aceite pela opinião pública? Nos últimos países a entrar para a UE, isso foi possível durante muito tempo, sem reflexos políticos eleitorais. Porque prometiam mais qualquer coisa, para além de sangue, suor e lágrimas.
E é aqui que reside o verdadeiro problema. Quase toda a gente ameaça, ninguém promete nada. A Europa marginaliza-se à nossa frente e é tratada como uma marginal. Ela própria se considera marginal. Ainda há dois anos, toda a gente sabia que a Europa era, provavelmente, o melhor sítio do mundo para se viver, mas não o melhor sítio para se sonhar. A Europa é o presente, não é o futuro. Temos o dever de dizer aos cidadãos europeus que tipo de vida vão ter num futuro próximo. Os europeus estão habituados ao seu estilo de vida e aos seus direitos cívicos, mas também ao seu nível de vida. A defesa deste estilo de vida representa a defesa da UE.
Se pretende continuar a viver com dantes, ir de férias para países exóticos, ter um bom carro e uma casa condigna, apoie a UE! É preciso que isto seja dito claramente. A Alemanha não pode defender sozinha o seu estilo de vida sem falar da Bulgária ou da Roménia, países que apenas aspiram a este estilo de vida. O discurso dominante na UE não pode limitar-se à discussão de procedimentos e da transparência das instituições.
Há que regressar à política antiga, cimentar a confiança, esclarecer os cidadãos. Porque, se houver alguma coisa a fazer em termos económicos, e se a tentarmos fazer às escondidas da opinião pública, esta irá reagir mal, não porque seja contra, mas por ser mais fácil protestar contra a conspiração dos dirigentes do que fazer uma coisa construtiva.
Os dirigentes têm de compreender que a única forma de salvar o projecto europeu é admitir que não podem fazer tudo sozinhos. (Presseurope)

Um outro "Só" pelos olhos suaves de Pedro Sousa Pereira



"Só" é obra de leitura emblemática em si mesma e do fim-de-século português. Combina na perfeição a herança romântica com a estética do Decadentismo e do Simbolismo, que o poeta bem conhecia (como aliás toda a geração coimbrã a que pertence). A obra enquadra a construção de um sujeito dramatizado, narcísico e dândi, mas que, sob a máscara da ironia, esconde o pessimismo e o dolorismo de uma descrença individual que retrata a sua época. No centro desse mundo está um eu forte, escorado na memória das paisagens e das gentes que foram cenário dos tempos felizes, muito vívidos mas sem possibilidade de retorno; os poemas tentam combater essa decepção procedendo ao inventário dos bens passados (lugares, figuras, nomes, circunstâncias), tentando, pela presentificação e pela hipotipose, ancoradas numa memória fotográfica, combater a desaparição de tudo isso no abismo da lembrança. Assim, o sujeito lírico sobrepõe a voz presente com os ecos do passado - o seu, pessoal ou mesmo familiar, e o dos tempos ancestrais, que o fundam como indivíduo e como Lusíada, epítome dos feitos heróicos da História nacional. O eu cinde-se entre o adulto, António, e Anto, sua face ora infantil, ora dândi, representando-se como herói e protagonista mas também como outro, distante de si, numa antecipação do eu fragmentado que os poetas modernistas viriam a trabalhar mais fundamente. O sujeito assume a carga simbólica de ser um avatar do povo português, o que virá a prolongar-se no protagonista do poema inacabado “O Desejado“ (in Despedidas): Anrique, nome arcaizante, corporiza uma variação sobre o mito sebástico, pondo o mito em ruínas ao espelho do Portugal do fim de oitocentos. Herói derrotado, António é, no Só, o Princípe fadado para ser “poeta e desgraçado”, narciso marcado pela memória deceptiva de tudo o que foi e não volta mais, só face a si mesmo e à sua excepcional condição de visionário. Uma leitura cuidada do Só mostra bem que a pretensa ingenuidade visível a uma primeira leitura é um logro: além do que no plano técnico atrás se assinalou, para isso contribui muito o labor poético visível no confronto entre as duas edições feitas em vida de António Nobre, em 1892 e em 1898, não deixando dúvidas a muito detalhada elaboração que sustenta esta poética e o seu universo de motivos, de símbolos e de mitos.
Melhor de ler e reler agora a edição "Só”, que transforma um dos livros mais nostálgicos da história da Literatura Portuguesa, suavizando-o com uma auto-ironia e uma ruptura com a estrutura formal do género poético em que se insere. “Com este Só, de Nobre e Sousa Pereira, ficamos com a mais adulta das leituras da infância, a que a ela regressa, quando isso importa, mas a que dela se liberta, quando nos apetece pensar sobretudo em nós”, escreve Mário Cláudio no prefácio. Pedro Sousa Pereira é co-autor de Comandante Hussi (vencedor do Prémio de Literatura Gulbenkian), Nem Tudo Começa com um Beijo, Paralelo 75 e Cinco Balas Contra a América, e, em 2006, ilustrou o livro Mensagem de Fernando Pessoa e, em 2007, O Livro de Cesário Verde.
Mil razões para não o perder e pôr estrategicamente colocado à mesinha de cabeceira a rivalizar com o orginal.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Deixemos de ser idiotas úteis!

Chocante o artigo de 24 Maio, de Magyar Nemzet, Budapest. Diz que os excessos nacionalistas a que se entregam os governos húngaro e eslovaco são perigosos para os respectivos povos e também absurdos, porque reforçam os preconceitos dos europeus ocidentais acerca desta região.
Robert Fico [primeiro-ministro de centro-esquerda] e os seus acólitos do Partido Nacional Eslovaco fazem voz grossa. Vamos manter o sangue-frio e pôr os pontos nos ii. A nova Assembleia Nacional propõe a introdução de uma lei sobre a dupla nacionalidade. Esta poderia ser atribuída a todos os falantes de húngaro que vivam fora das fronteiras e que apresentem um pedido individual, no contexto de um procedimento acelerado [este texto legal poderá entrar em vigor a 20 de Agosto, dia nacional da Hungria].
A alteração da lei actual far-se-ia seguindo o exemplo romeno, mas assinale-se que a questão foi regulada de forma idêntica na Eslováquia, na Sérvia e em diversos países europeus. Uma vez que os húngaros da Transilvânia, da Eslováquia, da Voivodina e da Ucrânia solicitaram, através dos seus representantes legítimos, a dupla nacionalidade, o Governo húngaro tem a obrigação moral de a conceder.
Não é anedótico que apenas Bratislava critique esta medida. Bucareste e Belgrado acolheram a iniciativa com compreensão e Kiev deu o seu acordo tácito. A política aplicada por Robert Fico e pelo seu colega de coligação [o Partido Nacional Eslovaco, de extrema direita] já deixava prever este número de circo, apesar de a invocação da segurança nacional eslovaca já estar a raiar a loucura.
Contrariamente à lei sobre a língua eslovaca [que impõe o uso do eslovaco na Administração, excepto nos municípios onde mais de 20% da população é constituída por húngaros], a lei húngara sobre cidadania não prejudica ninguém. Muitos compreenderam a mensagem e, ainda que a campanha legislativa esteja no auge, a oposição de centro-direita não alinhou com a posição de Fico.
Talvez não falte muito para que a maioria dos eleitores eslovacos compreenda que a fobia gritante de Fico contra os magiares não serve os interesses da Eslováquia e sim os daqueles que se alegram com as desavenças existentes na Europa Central. Não tenhamos ilusões: a União Europeia continua a ser composta por populações ocidentais e populações de leste. O sorriso dos dirigentes políticos ocidentais esconde a condescendência face a "esses povos pós-comunistas". Para eles, esta região marcada pela época comunista é, acima de tudo, um excelente mercado e essa abordagem exclui qualquer solidariedade. As grandes potências ocidentais que dirigem a UE e o continente de acordo com os seus interesses económicos ficariam incomodadas com o aparecimento de uma Europa Central forte e homogénea, centrada em interesses comuns.
No Outono passado o Presidente francês, ferido no seu amor-próprio, lamentou que os quatro países do Grupo de Visegrado [Polónia, República Checa, Eslováquia, Hungria] tivessem estado reunidos antes da cimeira europeia. Sarkozy aconselhou-os, então, a não fazerem destas concertações prévias uma regra. A inquietação dos franceses deveria constituir um estímulo para a nossa região.
Organizados em torno de um eixo Norte-Sul, da Polónia à Eslovénia, passando pela Roménia, através do desenvolvimento das infra-estruturas, da cooperação energética, da exploração dos mercados vizinhos, da representação comum dos interesses agrícolas, estes países poderiam ser um contra-peso no lado oriental do continente, o que seria benéfico para toda a União.
Quantos anos serão ainda necessários para os políticos da nossa região se aperceberem de que, ao caírem na armadilha das querelas fúteis, deixam passar a oportunidade de defender os verdadeiros interesses nacionais? Porque o Fico que tem fobia dos húngaros e os nacionalistas húngaros saudosistas do passado não defendem os interesses da sua nação – defendem aqueles cujo interesse é que esta região nunca venha a representar uma força unida e a ocupar o lugar que merece na Europa comum. (Presseurope)

As lições que a África nos ensina



A 18 Maio, o The Guardian Londres desperta-nos para uma outra maneira de encarar e talvez superar o problema da crise. A única solução para a crise grega é a reestruturação da sua dívida, defende a conhecida economista indiano Jayati Ghosh. A experiência dos países africanos altamente endividados indica que as medidas de austeridade podem não apenas ameaçar a recuperação económica na zona euro mas também desencadear mais recessão.
Os problemas da economia grega – e da zona euro – não foram, nem podem ser, resolvidos através de uma vasta injecção de financiamento de emergência do BCE e do FMI. O Governo grego está a ser forçado a aplicar medidas de austeridade, que causarão um forte declínio dos rendimentos e do emprego, não apenas agora mas igualmente no futuro previsível, e que não só não irão corrigir os desequilíbrios existentes mas até agravá-los.
Os países pobres altamente endividados (PPAE) de África podem contar aos gregos algumas coisas sobre este processo. Podem dizer-lhes que as medidas deflacionárias que são impostas aos Governos levam a actividade económica a entrar numa espiral descendente, que destrói as capacidades e as perspectivas existentes de futuro crescimento e empurra vastos sectores da população para uma existência material delicada e de insegurança. Podem dizer-lhes que isto é basicamente insustentável, porque o declínio do PIB torna ainda mais difícil pagar o serviço da dívida, que, por conseguinte, continua a acumular-se e até a expandir-se, porque os juros não pagos vão sendo adicionados ao montante base e depois aumentados, pelo que a dívida do país continua a crescer, mesmo sem novos influxos de capital. Podem dizer-lhes que, no fim, não haverá outra alternativa que não seja reestruturar a dívida, porque a amplitude do problema continuará a agravar-se, mesmo com as medidas de austeridade (e parcialmente por causa delas) aplicadas com todo o rigor. Podem falar-lhes das suas próprias experiências de várias décadas perdidas de regressão económica, que poderiam ter sido evitadas, se a reestruturação da dívida tivesse sido feita mais cedo e se tivesse sido adoptado um conjunto diferente de políticas de recuperação económica.
Esta experiência deveria apontar no sentido de um ensinamento óbvio: não há alternativa a uma ampla reestruturação da dívida grega, que envolve uma perda a assumir pelos mutuantes internacionais, que, para começar, não procederam a um planeamento e análise cuidadosos dos empréstimos que concederam. Se a reestruturação não acontecer agora, terá sempre de acontecer em qualquer altura do futuro, depois de a Grécia ter passado por forte sofrimento material.
Porque não se falou ainda sequer de uma conclusão tão óbvia? A reestruturação da dívida grega implicaria uma forte redução da margem de lucro dos bancos alemães e franceses, que concederam empréstimos intensivamente durante o boom e ajudaram a criar os desequilíbrios que tornaram a economia grega menos competitiva do que, por exemplo, a economia alemã. Não se quer permitir que essa redução aconteça e, por isso, o fardo do ajustamento é inteiramente colocado sobre os ombros do povo grego, por várias gerações, num processo que será claramente insustentável.
E as coisas estão a piorar. Outros países, que se considera terem problemas latentes idênticos aos da Grécia, estão já a avançar para medidas de austeridade e para políticas macroeconómicas contraccionárias, que terão por efeito ameaçar a frágil recuperação económica e gerar ou intensificar a próxima recessão. A Espanha acabou de anunciar não apenas o endurecimento das políticas monetárias mas também a contracção orçamental, que envolve reduções dos salários do sector público, das pensões de reforma e outras. Esta situação é particularmente incrível porque, até há dois anos, a Espanha apresentava um superávit orçamental (o défice era por causa do sector privado) e os seus défices recentes são inteiramente um resultado da crise.
A Irlanda está já a aplicar um pacote deflacionário extremamente duro, que implica um declínio significativo do PIB, e que inclui cortes da despesa pública em todo o tipo de áreas, desde as infra-estruturas materiais à educação. Os países bálticos, e não apenas a Letónia – que tem um programa do FMI – mas também a Estónia – onde a dor é auto-infligida – estão a registar reduções drásticas dos rendimentos, emprego e salários, devido a rigorosos programas de austeridade. Na Roménia, assiste-se ao espectáculo da polícia a sair à rua, em protesto contra as descidas dos salários dos seus membros. No Reino Unido, o novo Governo já está a falar em medidas para reduzir o défice, através de cortes na despesas e do aumento dos impostos indirectos.
Todos estes países esperam poder exportar a própria saída desta confusão mas isso não é simplesmente viável porque os números não são adicionáveis. Assim, estes países – e, por associação, o resto da Europa – estão efectivamente a condenar-se a si mesmos a um período de estagnação ou declínio dos rendimentos, com todos os problemas económicos e sociais que isso acarretará. (Presseurope)

domingo, 23 de maio de 2010

SENTENÇAS DA VIDA - Carlos Santos Oliveira

Numa altura em que o drama da pedofilia alastra até dentro do Vaticano, as quatro paredes de um edificio que devia cumprir a sua missão de Templo, seguindo-se aos casos detectados nos Estados Unidos, Irlanda e Alemanha, até Roma, capital da cristandade, se transforma em palco de escândalos de pedofilia. No caso de um processo contra um padre que teria tido os seus crimes encobertos por um bispo. No banco dos réus, Dom Ruggero Conti, um padre de 56 anos com aparência bonachona que pregou durante 10 anos em Selva Candida, subúrbio de Roma, até a sua prisão em Junho de 2008. Convocado a depor na noite de quinta-feira, o bispo Gino Reali teve que explicar porque não agiu de imediato, quando dois jovens vieram se queixar de abusos sexuais praticados por Dom Ruggero quando eram adolescentes.
Recorde-se que a pedofilia é, hoje definida simultaneamente como doença, distúrbio psicológico e desvio sexual (ou parafilia) pela Organização Mundial de Saúde. Pode ser cometida por atentado violento ao pudor (prática de atos libidinosos cometidos mediante violência ou grave ameaça), por estupro (constranger criança ou adolescente à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça) ou pela pornografia Infantil (Apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores ou internet, fotografias, imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo crianças e pré-adolescentes).
Ciente desta preocupação, Carlos Santos Oliveira (Esfera Contemporânea: 14, p. 120) publicou em Agosto de 2009, SENTENÇAS DA VIDA (Editora: Esfera do Caos) um livro que recomendo vivamente. É um conterrâneo da família, que nasceu na Chamusca, no Ribatejo, onde durante alguns anos foi jornalista. Depois de várias passagens pelas carreiras da vida é hoje oficial de justiça. Tem textos publicados em vários jornais e alguns dos seus poemas fazem parte de colectâneas. Em 2008 publicou o romance É Tão Fácil Morrer e em 2009 o livro de poesia Redes. Mas este é pertinente e arrojado: Trata da pedofilia, dos abusos sexuais, dos maus-tratos, da droga, do alcoolismo, do incesto, da prostituição, dos suicidas e dos assassinos, da desgraça das crianças abandonadas, raptadas, torturadas, cedidas às famílias de acolhimento e à adopção, "usadas como granadas na guerra entre os pais". O autor, como disse, é oficial de justiça num Tribunal de Família e Meno­res, e, talvez por isso mesmo, uma testemunha do julgamento da condição humana. Assiste obrigatoriamente "ao calvário das famílias que se esboroam em ruínas, sem fé, num terramoto dos sentimentos. E estende as mãos para o pó dos escombros sob os quais as crianças continuam a chorar e a gritar por socorro."
SENTENÇAS DA VIDA Conta histórias que "são um repositório dra­má­tico e expressivo daquilo que no dia-a-dia vai desfilando por um Tribunal de Família e Menores. São descrições ade­quadamente ficcionadas de casos ocorridos, sem violação do segredo de jus­tiça. São relatos vívidos de algumas das maio­res tragédias huma­nas. Mas são principalmente um grito de alerta. E uma denúncia do submundo das lutas caninas dos pais dilacerando a inocência e a infância dos próprios filhos."
Mais um chamusquenho à conquista do mundo e na demanda da verdade fraturante!

sábado, 22 de maio de 2010

O motor Paris/Berlim precisa de reparação, já!

A amizade franco-alemã, que alimentou a Comunidade Europeia no pós-guerra, é hoje um casamento de "corações frios", "uma comunidade (meramente) funcional", onde predominam os cálculos de poder (Die WeltI). Angela Merkel terá cometido erros ao defender sanções duras contra os países endividados, mas tem razão na questão de fundo. "Nesta crise, a Alemanha está isolada como nunca antes na história da UE. E Paris contribuiu fortemente para isso. É este o drama europeu." Merkel e Nicolas Sarkozy, "uma brandeburguesa protestante e um francês desinquieto, que não têm nada a dizer um ao outro", defendem concepções diferentes. Paris defende uma política económica voluntariosa, que deixa ampla margem de actuação aos responsáveis políticos e apoia uma União de transferências, em que os fortes ajudam os fracos. Berlim, pelo contrário, resiste a qualquer europeização e defende a ideia de regras estritas, em que cada um mobiliza as suas próprias forças e preserva a sua soberania. Neste braço de ferro, é – para já – Sarkozy quem ganha e arrasta a UE para uma governação económica comum, conclui Die Welt. Para o exterior, multiplicam-se as manifestações de unidade. Os governos dos Estados da UE decidiram instaurar medidas para salvar a Grécia, um fundo de auxílio de 750 mil milhões para o euro, novos regulamentos para os fundos especulativos e estarão mesmo à beira de um acordo sobre a escaldante questão das taxas sobre transacções financeiras. Mas é apenas uma coesão de fachada. Nos bastidores, forças centrífugas agem com um efeito destrutivo. Em vez de se unirem neste momento de crise histórica, entregam-se a uma luta brutal pelo poder, contornando as instituições da UE, impondo soluções unilaterais, ignorando os parceiros. Cava-se um novo fosso entre os dois principais actores, a Alemanha e a França. Foi esta semana que chegou a primeira prova pública desta ruptura, quando o Governo alemão, sem pré-aviso, proclamou a sua intenção de proibir as vendas [de produtos financeiros] a descoberto. No dia 20 de Maio, teve lugar em Berlim uma conferência internacional sobre regulação dos mercados financeiros – fora da UE. “A Alemanha volta as costas à União Europeia”, vocifera um representante governamental de alta patente no Conselho Europeu. “Estas medidas seriam muito mais eficazes se fossem coordenadas a nível europeu”, recorda Michel Barnier, o comissário europeu responsável pelo Mercado Interno. No entanto, as instituições da UE são vítimas de um conflito de interesses desencadeado por Berlim e Paris. Só mais tarde se conseguiu saber o que se tinha passado nos bastidores da cimeira de emergência convocada na sequência do pânico de 7 de Maio. Devido a um encontro prévio entre a chanceler alemã, Angela Merkel, e o Presidente francês, Nicolas Sarkozy, a reunião começou com 2 horas de atraso. Enquanto os outros chefes de Governo aguardavam, a discussão transformou-se num duelo de gritos. Segundo alguns membros da delegação, não se deveram apenas às medidas de recuperação do euro, mas também à política monetária do Banco Central Europeu (BCE), à coordenação económica e ao Pacto de Estabilidade do euro. Ambos saíram da sala de reuniões de semblante carregado. E prosseguiram o despique na presença dos 25 outros chefes de Estado e de Governo. Sarkozy fez finca-pé e chegou a ameaçar retirar-se do euro, contou depois o PM espanhol, José Luis Zapatero.
O Presidente francês tinha criado, com o apoio da Itália, da Espanha e de Portugal, uma frente contra Merkel, a qual acusavam, sobretudo, de hesitação durante a crise grega. “Com isso, custou-nos milhares de milhões de euros”, insurgiu-se um representante governamental. Contra os interesses alemães, Sarkozy obteve o apoio de um BCE que, até então, agia de forma independente. O fosso é “ideológico e motivado por interesses nacionais”. De um lado, temos Paris e os seus parceiros do espaço mediterrânico, que se esforçam, em plena crise, por impor o que sempre quiseram, nomeadamente mais influência política sobre o BCE e uma flexibilização da política de taxas e de valor monetário. E reclamam uma coordenação económica europeia, capaz de minar a competitividade alemã. Do outro lado, fica a Alemanha, que enjeita qualquer culpa e continua a exigir, sozinha, um endurecimento das sanções para defender uma estabilidade rigorosa do euro. A advertência lançada por Angela Merkel foi sintomática: “O euro está em perigo” e apelou a “uma cultura de poupança” mais forte por parte dos Estados da UE. Christine Lagarde, ministra francesa da Economia, ripostou: “Não considero de forma nenhuma que o euro esteja perigo”.
“A UE vive uma crise de confiança interna e externa” (politólogo Paul Luif. Interna), porque as instituições da UE foram redundamente neutralizadas por decisões unilaterais – a Comissão Europeia falhou na função de controladora do sistema. Esta comunidade internacional de Estados já não transmite uma imagem da estabilidade, como o confirma a queda do euro. Em vez de se esforçarem por resolver internamente os problemas e as diferenças estruturais, “procuram outros culpados, como os fundos especulativos e os especuladores”.

“Por influência da História, a Europa central como termo e problema”, de Jiří Trávníček


Jiří Trávníček é um homem de letras que acaba de coordenar uma recolha de textos sobre a Europa Central V kleštích dějin, Střední Evropa jako pojem a problém, (“Por influência da História, a Europa central como termo e problema”). Como definir “Europa Central”? Para o universitário checo Jiri Travnicek, a região é caracterizada por uma perpétua evolução em relação com a história, a geografia e a cultura.
Existe realmente uma Europa Central? Diz que é um ponto de vista. Numa leitura rígida, cruzando história e geopolítica, torna-se difícil distinguir claramente uma Europa Central. Em contrapartida, com uma grelha de leitura mais matizada, ou seja, cultural, encontramos algo de mais concreto. A Europa Central é um tipo conceptual extremamente arisco. Não tem fronteiras, nem império, nem território, que são sempre fonte de disputas e de histeria, ao contrário da cultura, mesmo a mais básica (nomeadamente a cultura gastronómica), que reúne, liga as coisas entre elas e procura os pontos comuns.
O conceito de Europa Central remete, então, unicamente para uma certa atmosfera cultural, ou também para um território específico? Considera-se sobretudo ligado a uma certa atmosfera; mas penso que se deve igualmente falar de território. Convém dar-lhe contornos concretos, tanto temporais como geográficos. Senão, não fica uma coisa etérea. Julgo possível delimitar o seu território da seguinte forma: Munique a oeste, Szczecin e Gdansk a norte, Vilnius a leste, Novi Sad [Belgrado] e Trieste a sul… Se a Europa Central é concebível sem a Alemanha, é inconcebível sem os alemães e menos ainda sem a língua alemã, cuja presença neste espaço era outrora culturalmente obrigatória.
Como descreveria o espírito centro-europeu a um estrangeiro? Defini-lo-ia pela negativa. Diria que ele difere da Europa Ocidental, cujas tradições estão bem estabelecidas, mas também da Europa de Leste (principalmente da Rússia). É um meio termo entre a ordem ocidental, a civilização e a Ásia nascente, que Metternich aliás apontava como começando para oriente da Rennweg de Viena. Explicaria igualmente que o conceito se manteve por muito tempo na esfera política. E acrescentaria que a Europa Central está intimamente ligada a experiências de exílio. Nos anos 80, exilados como Milan Kundera [nascido na Checoslováquia, vive em França desde 1975] e Czeslaw Milosz [1911-2004, poeta e romancista polaco, naturalizado norte-americano, galardoado com o Nobel da Literatura em 1980], para quem o facto de serem considerados província soviética era inaceitável, interrogaram-se repetidamente sobre o significado do conceito de Europa Central. Acabaram a falar de “história roubada” ou de “Ocidente sequestrado”. Nos anos 90, redescobrimos todos a Europa, mas, de certo modo, esquecemo-nos de retomar a Europa Central. Entre nós há ainda a muito presente temática do cadáver no armário. Veja-se, por exemplo, o caso de Peter Esterhazy [escritor húngaro] e o seu romance “Harmonia Caelestis”, em que retrata o pai com grande admiração. Depois de publicado, foi revelado que o pai tinha colaborado com a polícia comunista. O escritor teve de publicar nova edição do livro, revista e corrigida. Na Europa Central, é aconselhável não se incensar nem aplaudir nada cedo de mais, não escrever nada antes de consultar os arquivos.
Parece que, ao ouvi-lo, se tem a sensação de que a Europa Central está ligada ao passado, a um tempo que já não existe… mas foi sempre mais ou menos assim, sobretudo desde 1918. A Europa Central esteve sempre banhada na nostalgia do passado, sobretudo da época austro-húngara, mas também do período antes de Ialta. Não nos devemos abater pela nostalgia, pensando no passado, ora sonhamos, imaginando o futuro. Erhard Busek [político austríaco muito envolvido nas questões centro-europeias e balcânicas] considerou que o conceito de Europa Central significava uma recusa do “statu quo”, uma revolta contra a chamada “realpolitik”. Tratar-se-ia de uma espécie de presença diferida.
A expressão “Europa Central” é hoje utilizada sobretudo para indicar uma não pertença à Europa de Leste. Concorda? Sim, mas não é um exclusivo da época actual. Após 1989 [queda do regime soviético], o termo passou a ser utilizado por eslovenos, croatas, habitantes da Voivodina [na Sérvia] e também por alguns sérvios para invocar uma “exteriorização dos Balcãs”. Conheci também alguns bielorrussos que procuravam na Europa Central um meio de se distanciarem do seu Presidente Lukachenko, ou seja, para cortarem relações com o Big Brother do Leste, um meio para encontrarem rapidamente uma identidade de substituição e uma nova via geográfico-cultural…
Reflexões de um homem que vive na sua intimidade a história do seu país.

As ideias de Henrique Raposo sobre o limite constitucional contra a divida e o défice


O Henrique Raposo (http://www.expresso.pt/), de 18 de Maio de 2010, apresenta umas ideias interessantes.
"A ideia de um limite constitucional 'contra' a dívida e o défice é excelente, e já vem tarde. Os demagogos do presente não podem ter a possibilidade de destruir o futuro.
I. Luís Amado lançou, e bem, a ideia: Portugal deve formalizar - na Constituição - uma "norma-travão que crie um limite para o défice e para a dívida". Este é o tipo de pensamento institucional que Portugal deve desenvolver no sentido de sair da crise e da tal 'perda de soberania'. Nós não podemos continuar a fingir que não se passa nada, e que tudo pode continuar tal como está. O statu quo da República é insustentável: são necessárias mudanças institucionais de fundo.
II. Infelizmente, o PSD respondeu ao institucionalismo de Luís Amado com a politiquice de sempre. Miguel Relvas está completamente errado quando afirma que esta ideia de Amado revela "uma visão muito socialista, que tem como pressuposto que tudo deve ser regulamentado" . Antes de falar, Miguel Relvas deve parar para pensar. Pensar o país não é o mesmo que pensar um congresso do PSD. Um tecto constitucional 'contra' um défice e dívida elevados não é socialismo ou excesso de regulamentação. Pelo contrário, é uma defesa 'liberal' dos cidadãos e da sociedade perante um Estado que gasta demais.
III. Felizmente, António Nogueira Leite já veio dizer que esta medida é necessária. E é mesmo. Este tecto constitucional é a melhor forma de travar políticos como José Sócrates, que gastam como se não houvesse amanhã. Mais: uma dívida e um défice elevados põem em causa o contrato informal entre gerações - a base primeira de qualquer actor político. A geração que está no poder não pode hipotecar o futuro da geração seguinte através de gastos enormes (ex.: as tais "parcerias público-privadas"). Tal como diz Eduardo Catroga, a Constituição deve ter um "princípio de contabilidade intergeracional". As futuras gerações não podem estar à mercê dos políticos demagógicos do presente."

Textos do Papa: lidos, citados, mas desconhecidos



1.São os textos do Papa bastante lidos e abundantemente citados. Há um livro, porém, que permanece misteriosamente desconhecido aos olhos de muitos: o livro da sua pessoa.
Esta mantém-se encoberta por uma nuvem espessa de lugares comuns. Daí a surpresa que o contacto pessoal manifesta. Afinal, aquele que parece distante até se revela próximo e deveras afável. É, sem dúvida, um homem de pensamento. Mas – assegura quem priva com ele – consegue aliar a complexidade do pensamento à simplicidade do coração. Não foi ele que escreveu, na sua primeira encíclica, que «o programa do cristão é o coração que vê»?
2.Bento XVI não é o responsável pela crise da Igreja. É, pelo contrário, um dos mais inconformados diante dela. É corajoso. Não se importa de estar em minoria. Proclama o que crê e diz o que sente. Aponta para o essencial. É incompreendido e contestado. Não teme ser impopular. Poucos como ele têm tido o desassombro de descrever a situação da Igreja sem o menor subterfúgio ou o mais leve rodeio.
3.Não esconde que o problema da Igreja é, sobretudo, interno. Frequentemente, ela é uma oportunidade transformada em obstáculo: «Se, antigamente, a Igreja era, incontestavelmente, a medida e o lugar do anúncio, agora apresenta-se quase como o seu impedimento». Falando, muitas vezes, em contracorrente, está atento ao que se passa na humanidade. O seu campo de intervenção vai do templo ao tempo e do culto à cultura. Por isso é que os seus interlocutores de eleição tanto são Agostinho, Tomás de Aquino e Boaventura como Nietzsche, Heidegger e Habermas. Esta viagem não cumpre apenas um roteiro por vários lugares. Ela é, fundamentalmente, uma peregrinação pelos dramas, pelos anseios e pelas expectativas que se alojam na alma sofrida de tanta gente. Ocorrendo a visita num momento difícil para o país e para a própria Igreja, ela configura um momento de esperança. Muito tem alertado o Papa para os perigos do relativismo. Mas não tem deixado de vincar, ao mesmo tempo, a centralidade da relação. «A grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o sofrimento e com quem sofre». É que «uma sociedade que não consegue aceitar os que sofrem e não é capaz de contribuir, mediante a compaixão, para fazer com que o sofrimento seja compartilhado e assumido mesmo interiormente é uma sociedade cruel e desumana».
4.No fundo, o Papa insiste na urgência de descentrar a Igreja de si mesma recentrando-a em Deus e no Homem. Para um cristão, o Mundo não é o adversário e o Homem há-de ser o caminho. Fora do Mundo e longe do Homem, não há Igreja. A Igreja é — terá de ser sempre — a presença de Deus no mundo e a incarnação do amor apaixonado de Deus pelo Homem. (João António Pinheiro Teixeira, Padre)

domingo, 16 de maio de 2010

Sarkozy, o novo patrão da Europa




Maio 12 2010 Berliner Zeitung Berlim
A Europa já não é a mesma, sobretudo do ponto de vista de Berlim. A crise financeira e as medidas de recuperação do euro abalroaram a União. O timoneiro alemão não deu conta do recado. Agora, constata o Berliner Zeitung, são os franceses que assumem o controlo.
A política é uma actividade cruel. Vitória e derrota andam frequentemente a par, tal como triunfo e queda. Por vezes, pode-se perder tudo em poucas semanas.
O mais recente exemplo é o de Angela Merkel, a chanceler alemã. No final de Março, era a rainha da Europa. Dominou a cimeira da Primavera em Bruxelas. Ditou as condições de negociação das bases para um conjunto de medidas destinadas a salvar os gregos em apuros. Para ela, nada devia ser feito. Os outros Estados que se resignassem.
Seis semanas depois, a antiga soberana está bastante isolada. A prudência não produziu efeitos. O seu poder desgastou-se, tanto dentro como fora da Europa. Quando, no fim-de-semana passado, de um dia para o outro, os Estados da UE traçaram um gigantesco plano de emergência para salvar o euro, foi a França que assumiu o comando – em estreito acordo com a Itália e outros países mediterrânicos.
Alemães cederam lugar que era sagrado. Estes recentes acontecimentos são o sinal de uma ruptura. A crise financeira e as medidas de recuperação da Zona Euro vão perturbar profundamente a União Europeia. Esta vai passar a ser mais francesa e menos alemã. E não apenas porque o Presidente francês, Nicolas Sarkozy, soube posicionar-se como gestor da crise, com uma visão de longo prazo, enquanto os pensamentos de Merkel continuavam voltados para as eleições na província alemã da Renânia do Norte-Vestefália [a 9 de Maio]. No futuro, a política na Europa será à francesa. Os métodos e as instituições também.
De uma cajadada, no fim-de-semana passada, os alemães cederam um lugar ainda há pouco sagrado a seus olhos. Agora, as coisas passam-se como Paris entender: na sua forma actual, o pacto de estabilidade do euro, invenção alemã, só pode serve para ir para o lixo. Porque, na prática, não é o pacto que garante a estabilidade da moeda única, mas o plano de 110 mil milhões para os gregos e a almofada de 750 mil milhões previsto para outros Estados potencialmente em falência.
Nada será agora possível sem uma liderança política. Acabou, de facto, a proibição de apoiar os Estados em apuros. Nos últimos meses, os alemães brandiram esta cláusula como um escudo para se defender de eventuais reacções de Karlsruhe [sede do Tribunal Constitucional alemão]. Os franceses nunca partilharam tais ideias. Acabaram por levar a melhor.
Sarkozy aproximou-se do seu objectivo de governação económica comum aos dezasseis membros da Zona Euro. Foram efectivamente eles que tomaram as decisões cruciais do fim-de-semana passado. A Comissão Europeia foi relegada para um papel operacional. Há, no entanto, um ponto decisivo: todos os países da Zona Euro têm vindo a compreender gradualmente que nada será doravante possível sem uma liderança política e um nítido reforço da coordenação económica entre parceiros. Até agora, os alemães foram sempre surdos a este discurso. A partir daqui, a Europa vai dispor de uma governação económica, oficial ou não. A União Europeia não tem opção, se quiser remediar aos erros de concepção da sua moeda.
A visão alemã não vai conseguir voltar a impôr-se. É também a visão francesa do Banco Central Europeu que hoje vigora. Concebido segundo o modelo alemão do Bundesbank como instituição independente, o BCE deixou-se de súbito envolver no acordo concluído em Bruxelas no fim-de-semana passado. Declarou-se disposto, em caso de urgência, a comprar a dívida dos Estados à beira da falência. A sua independência é apenas uma memória. O Banco Central deixa de ser apenas o executor dos órgãos políticos, situação não somente inédita, mas revolucionária.
Não sejamos ingénuos. A visão alemã não vai conseguir voltar a impor-se quando as bolsas se tiverem acalmado e a crise financeira tiver passado. Uma semana bastou para fazer cair os tabus europeus, uns atrás dos outros. Quando os parceiros europeus começarem a reflectir nas consequências desta crise do euro e a definir as novas regras do jogo para a união monetária, os alemães vão ficar numa posição delicada. O seu modelo europeu não resistiu à prova. Eles próprios acabaram por percebê-lo, ao subscreverem o vasto plano de salvação da moeda europeia. (Thorsten Knuf)

A discussão da Justiça: os meios materiais e técnicos para a investigação económica



A propósito da falta de meios para investigar o crime económico, o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, João Palma, afirmou que o MP carece de meios materiais e técnicos "para assumir na plenitude" a sua responsabilidade na investigação da criminalidade económica.
"Hoje o Ministério Público está carecido de meios que o possam coadjuvar com êxito nessas investigações", afirmou João Palma. Na perspetiva do presidente do SMMP, "os crimes económicos corroem os fundamentos, os pilares da democracia, e obviamente que o Ministério Público tem particulares responsabilidades também nesse campo, sendo que está desprovido de meios, não só meios materiais mas meios também técnicos de forma a poder assumir essa responsabilidade na plenitude". João Palma falava no final da assinatura de um protocolo entre o Instituto de Direito Penal Económico e Europeu, com sede na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e o SMMP. "É preciso dotar as instâncias penais, os tribunais, desde logo o Ministério Público como agente de investigação criminal, como titular e responsável da investigação criminal, pelo menos de tantos meios periciais quantos têm as autoridades de regulação. As autoridades de regulação têm hoje mais meios periciais do que o MP, isto é inacreditável que possa acontecer assim", sustentou.
De acordo com o presidente da direção do SMMP, "é quase inexistente a formação" dos magistrados do Ministério Público na área do Direito Penal Económico. "O direito penal económico tem um papel que é insubstituível relativamente ao qual não se vislumbram alternativas de forma a punir práticas desviantes dos agentes económicos", sublinhou.
O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público reiterou as críticas "às deficiências na organização" do MP, insistindo que lhe "falta energia investigatória". Segundo João Palma, o protocolo celebrado entre o SMMP e o IDPEE visa fazer a ligação entre "os conhecimentos e a elevada craveira técnica" da Academia e "a experiência e os conhecimentos empíricos" dos magistrados do Ministério Público, nomeadamente através do acesso a cursos de pós-graduação e de especialização e de outras iniciativas no domínio da formação académica.
"Se há matéria que é extraordinariamente volátil e simultaneamente veloz são as transformações da economia e das respostas que a legislação pode dar", disse, por seu lado, o presidente da direção do IDPEE, Faria Costa, ao referir que é a Academia que tem vocação para estudar essas matérias. Um primeiro curso, sobre corrupção, vai realizar-se já na próxima sexta feira, adiantou Faria Costa. De manhã foi celebrado, na mesma faculdade, um protocolo entre o Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (CEDIPRE) e o SMMP. (In Verbis)

sábado, 15 de maio de 2010

Que mulheres encontramos no Portugal do início do século XX?



Eis o retrato pincelado por Virgínia de Castro e Almeida: "Gatas Borralheiras com o cérebro vazio, que esperam, sentadas na lareira e com estremecimentos mórbidos, a hipotética aparição do príncipe encantado; criadas graves, que passam a vida com as chaves na mão, sem terem a menor noção de economia doméstica nem de higiene [...]; animais de carga ou de reprodução, rodeadas de filhos que não sabem criar nem educar [...]; bonecas de luxo, vestidas como as senhoras de Paris e com a inteligência toda absorvida na decifração de modas, incapazes de outro interesse ou de outra compreensão; pequenos fenómenos absurdos criados pela excepção de uma instrução levemente superior e que, na vacuidade do meio, aparecem como prodigiosos foles cheiros de vento, assoprados de vaidade [...]".
Este é um dos pontos frágeis da condição feminina no alvor do século: educação e instrução. Com uma taxa de analfabetismo altíssima, só através da escolarização seria possível o reposicionamento sócio-profissional das mulheres e uma maior mobilização na luta pela igualdade de direitos.
Só com mais instrução as mulheres poderiam almejar melhores empregos e salários mais altos, que lhes permitiriam a tão desejada independência económica. A maioria ocupava-se ainda nos trabalhos do campo ou da casa ou em fábricas. Eram poucas as que estavam empregadas nos serviços e comércio ou mesmo na administração pública.
Um caminho que deveria ser acompanhado por profundas alterações legislativas, sobretudo ao nível do Código Civil, mas também do Penal e das leis laborais. O Código Civil obrigava a mulher casada a residir no domicílio do marido, a obedecer-lhe e a pedir--lhe autorização para administrar, adquirir, alienar bens, publicar escritos ou apresentar-se em juízo.
Preceitos não só legais, mas também morais. Em casa, as meninas eram ensinadas a obedecerem ao pai e aos irmãos mais velhos, aprendiam a ser boas donas de casa e como cuidar dos filhos. Os rapazes eram preparados para exercerem uma profissão e a ocuparem-se dos negócios públicos e dos da família.
É contra esta mulher tutelada e discriminada que a par - para não dizer mesmo a reboque - do republicanismo surgem as primeiras movimentações feministas. Mulheres, como Ana de Castro Osório e Maria Veleda, fazem-se ouvir através da escrita ou nos comícios do Partido Republicano para os quais são convidadas.
Auto-intitulam-se feministas, mas dizem que tal não significava "querer as mulheres insexuais [...], mas sim desejá-las criaturas de inteligência e de razão, educadas útil e praticamente de modo a verem-se ao abrigo de qualquer dependência, sempre amarfanhante para a dignidade humana".
A República prometeu-lhes apoio nesta luta. Os principais líderes republicanos estiveram presentes na criação das diversas associações feministas que surgiram ao longo dos 16 anos do regime. Apostaram no ensino feminino, normal e técnico-profissional; aprovaram o divórcio (mais contra a Igreja Católica do que a favor da emancipação das mulheres) e alteraram o Código Civil, mas deixaram neste resquícios de uma visão tradicionalista da mulher.
A República frustrou a maioria das aspirações feministas. A da co-educação foi uma delas. Mas a maior desilusão prendeu-se com a retirada do direito de voto às mulheres.
Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher a votar na Península Ibérica, em 1911, fê-lo ao abrigo de uma lei da Monarquia
Os republicanos foram intransigentes nesta matéria, considerando que a vida política apenas dizia respeito aos homens. Na revisão da Lei Eleitoral, em 1913, ficou explícito que apenas os "cidadãos portugueses do sexo masculino" poderiam votar.
No virar para a década de 20 assistiu-se a uma mudança no comportamento das mulheres. Assistiu-se àquilo a que Gabriela Mota Marques apelida de "virilização da mulher". Inspiradas essencialmente na moda francesa, as portuguesas começam a adoptar novos visuais e novos hábitos. Cortam os cabelos curtos ("cabelo à Joãozinho") e usam vestidos de talhe esguio, que realcem a silhueta, mostrem as pernas, os braços nus e tenham decotes generosos.
Nos locais públicos não têm pejo em fumar, consumir drogas ou bebidas alcoólicas. Vão a clubes e cabarés ouvir novos ritmos e experimentar novas danças. Discutem abertamente os mais variados assuntos, praticam desporto e conduzem automóveis.
Mas com a chegada do Estado Novo são de novo remetidas para o espaço doméstico.

A educação e a questão feminista no final do século XX (Parte V)



Aliás, um dos aspectos mais curiosos da inversão de posições que se tem vindo a constatar é o das interrogações formuladas, em particular nos países anglo-saxónicos, por diversas(os) investigadoras(es) quanto às razões do actual insucesso escolar comparativo dos rapazes. Ultrapassando as meras exposições académicas, esta é uma problemática que se alargou à imprensa com diversas polémicas como a que se seguiu à publicação por Christina Sommers do longo e crítico artigo “The War Against Boys” nas páginas da revista The Atlantic Monthly em Maio de 2000 ou ao provocador título de Madsen Pirie, “How exams are fixed in favour of girls” no The Spectator de Janeiro de 2001, para apenas citar alguns exemplos de grande divulgação.
Uma resposta equilibrada para algumas destas questões é adiantada num estudo de Luísa Arsénio Nunes de que temos vindo a usar alguns dados, no qual se sublinha a conjugação de diferentes factores sócio-demográficos para o maior sucesso das mulheres no sistema educativo: “O maior sucesso escolar das raparigas em relação aos rapazes, em todas as sociedades ocidentais, não parece surgir como um resultado de acções positivas no campo da Igualdade de Oportunidades, mas parece estar sobretudo ligado à mudança da estrutura familiar: à generalização das famílias nucleares, ao aumento das famílias monoparentais e ao crescente número de mulheres vivendo sozinhas. Nestes contextos, as raparigas não podem mais contar com uma família que as sustente a troco de trabalho doméstico, e têm que encontrar os seus próprios meios de subsistência.
A escola surge então, para as raparigas, como o único meio socializador que capacita para a vida profissional.”
Mais do que a aplicação de teorias pedagógicas igualitárias, a acção mais eficaz parece partir das dinâmicas em movimento numa sociedade em mudança e que tem vindo a criar condições e possibilidades novas e diferentes para os indivíduos de ambos os sexos. A opção/aposta pela escolaridade das raparigas, por elas próprias e respectivas famílias, e um maior sucesso escolar feminino são imperativos perante as novas condições de vida que não permitem que, em sociedades desenvolvidas, metade da população continue afastada da Educação e do Trabalho.
A permanência de discursos feministas “agressivos” na área da Educação é, na conjuntura actual, um relativo anacronismo. Tendo sido muito importantes em determinados contextos, alguns sectores muito activos na promoção de acções visando uma “Pedagogia da Igualdade” parecem falhar, ou não compreender, o cerne da questão actual e estar desatententos à evolução da sociedade actual. Os principais mecanismos que provocam desigualdade de oportunidades nas escolas portuguesas e impedem uma efectiva democratização do sucesso escolar não são gerados internamente, nem se fazem sentir principalmente sobre o sexo feminino. Pelo contrário, partem da sociedade envolvente que, independentemente dos sexos, condiciona as oportunidades de cada indivíduo à chegada à Escola e o espera, mais ou menos depois, à saída, na transição para o mundo do trabalho.
Numa perspectiva mais ampla e decisiva do que a relação entre os géneros, a Escola pode tentar diminuir os handicaps de determinados grupos de indivíduos que nela passam oito horas por dia durante nove ou mais anos, mas dificilmente tem meios para erradicar as situações socio-económicas desfavoráveis que os envolvem no seu contexto familiar e limitam severamente as aspirações futuras.
“Não é estranho, no entanto, que haja esta acentuação dos aspectos relativos ao sistema escolar, ao seu funcionamento pedagógico e administrativo. É que não é socialmente isento de escândalo o facto de uma sociedade canalizar compulsivamente todos os seus membros para o acesso e usufruto de um bem social que considera essencial, alimentando inclusivamente fortes expectativas sociais em torno desse benefício, quando, depois, mais parece não fazer do que preparar, para uma certa parcela de cidadãos, a armadilha social da exclusão. Como se uma parte dos convidados para o banquete fosse dele expulsa, sem mais, ao fim da sopa.”

A educação e a questão feminista no final do século XX (Parte IV)


“Temos vindo a constatar que tentar separar pedagogia para raparigas da pedagogia para rapazes é interpretar mal a questão: a menos que compreendamos e consigamos desconstruir as dinâmicas do género na escolaridade, não poderemos desenvolver uma efectiva pedagogia para cada género. Incluir os rapazes no quadro é particularmente apropriado desde que, pelo menos no Reino Unido, existe uma considerável preocupação acerca do desempenho globalmente mais pobre dos rapazes ao longo do período da escolaridade obrigatória.”
Como sublinham as mesmas autoras, algumas perspectivas das pedagogas feministas acabam por ser tão autoritárias quanto o eram as perspectivas patriarcais que as antecederam. O próprio conceito de “Escola Amigável para as Raparigas” (Girl Friendly Schooling) desenvolvido em alguns pontos da Grã-Bretanha, destinado a fazer as raparigas sentir-se bem na Escola e nela colherem os necessários benefícios para a sua vida futura, tem sido questionado na sua prática, por vezes demasiado arrastada para acções de impacto imediato.
Por outro lado, e voltando novamente ao caso específico português, nenhuns indicadores parecem apoiar a existência de mecanismos discriminatórios especialmente desfavoráveis para com o sexo feminino nas escolas actuais, pelo menos que se façam sentir com tanta intensidade como os que actuam sobre as minorias étnicas ou as camadas sociais economicamente mais desfavorecidas. Se não chegassem os números que reflectem o progressivo domínio que as mulheres passaram a exercer enquanto alunas e professoras a todos os níveis, existem ainda os dados relativos ao aproveitamento que são há muito favoráveis ao sexo feminino. O melhor aproveitamento escolar entre as raparigas é um facto que se estende até à própria Universidade e que está bem presente no ritmo actual de diplomados nas mais diversas áreas do conhecimento, o anunciando a completa “feminização” a mais ou menos curto prazo do Ensino Superior e não só. As razões para esta dinâmica são objecto de discussão, mas nunca devem ser dadas de forma simplista, recorrendo a clichés anacrónicos ou a teorias de reprodução social muito datadas, que já tiveram o seu auge e assentam em dados ultrapassados. Por vezes, após duras lutas, é preciso ter consciência que a guerra, porventura, já terminou (e, ainda melhor, foi claramente vencida).

A educação e a questão feminista no final do século XX (Parte III)


Todas estas iniciativas colheram maior ou menor inspiração em iniciativas com origem em França ou na Grã-Bretanha, filiando-se em discursos feministas que se afirmaram quer nos E.U.A. quer na Europa Ocidental nas décadas de 70 e 80 com algum vigor. Num estudo da O.C.D.E. de meados dos anos 80 afirmava-se, por exemplo, que o facto de os alunos serem mais repreendidos pelo seu comportamento por parte dos docentes do que as alunas e de o seu trabalho necessitar de maior atenção provoca naquelas sentimentos negativos. Afirma-se mesmo que “uma conclusão é que os rapazes têm capacidades mas não se esforçam, enquanto as raparigas se esforçam mas não têm capacidades”, opinião aparentemente partilhada por diversos autores. A percepção da existência de atitudes e áreas de interesses próprias de cada sexo desde a mais tenra idade é tomada, neste tipo de discursos, como sinal inequívoco da acção precoce de mecanismos sociais virados para a reprodução dos papéis sexuais tradicionais. As próprias conquistas femininas no sector da Educação são encaradas de forma céptica e próxima de uma “teoria da conspiração”: “Numa perspectiva ainda mais global e (ainda) mais polémica, podemos mesmo sustentar que o desenvolvimento da instrução feminina, na medida em que concerne à formação mais geral ou menos interessante para o mercado de trabalho constitui, ao nível da sociedade, um compromisso aceitável entre os valores dominantes, em função dos quais seria difícil recusar a instrução aos indivíduos em função do sexo, por um lado, e por outro a necessidade de «conter» a instrução das mulheres (…).”
No entanto, algumas leituras mais recentes de todas estas questões começam a sublinhar a necessidade de introduzir uma maior subtileza na análise das situações concretas e de evitar soluções unívocas que, em nome do combate pela igualdade, acabam por promover a indiferença pelas especificidades, ou que, numa outra perspectiva, em nome de “pedagogias diferenciadas” acabam por assumir mecanismos de efectiva discriminação.

A educação e a questão feminista no final do século XX (Parte II)



Afastada a questão da participação feminina na Educação, em termos globais, a partir de meados dos anos 80 e na década de 90, a luta principal das feministas na área da Educação transitou para a questão da “igualdade de oportunidades” e, muito em especial, para o protesto contra a subrepresentação feminina nas instâncias de maior responsabilidade e poder de decisão na esfera político-administrativa do Ministério da Educação, o que aconteceu em paralelo com reivindicações semelhantes para os cargos de topo na esfera económica e em outros planos da vida social e cultural do país.
Entre outras iniciativas, divulgou-se entre nós nos anos 90 o conceito da “Pedagogia da Igualdade” cujo objectivo primordial passa pela eliminação de todos os obstáculos discriminatórios para a Mulher no sistema de ensino, assim como pelo combate a todas as representações estereotipadas do papel familiar e social dos géneros. Foram objecto de particular crítica, neste caso, os manuais escolares, acusados de promoverem a percepção de estereótipos sexuais nos alunos e assim colaborarem para a reprodução de uma ordem social desigual e discriminatória para as mulheres.
Foi ainda sublinhada a questão da chamada “invisibilidade feminina” nos contextos educativos e na educação, a qual passaria pela maior taxa de analfabetismo, por um abandono escolar precoce mais elevado, pela manutenção de estereótipos na representação do género nos manuais escolares (área que pemitiu a produção de variadíssimos estudos de cujas conclusões se pode encontrar uma panorâmica em Martelo 1999, 34-36), pela forma de organização das salas de aula, pelos princípios orientadores do currículo escolar, pela dicotomia entre “Humanidades” e “Tecnologias” na organização das áreas de ensino, pela desvalorização social do papel dos docentes (que são maioritariamente professoras) e pela não abordagem das questões do género e da desigualdade na formação inicial de professores.
Entre outras acções, chegou mesmo a ser produzida uma proposta para novos “Indicadores para a Igualdade” em diversos sectores, entre os quais a Educação e foram promovidas diversas iniciativas como o projecto “Igualdade de Oportunidades em Educação – Formação de Professoras para uma Escola Não-Sexista” da Escola Superior de Educação de Setúbal, que se integrava no projecto TENET da Comissão Europeia, ou o projecto “Igualdade de Oportunidades e Formação Inicial de Docentes” da Universidade Aberta.

A educação e a questão feminista no final do século XX (Parte I)



“Uma pedagogia da igualdade entre os sexos, é uma pedagogia que tem em conta que a realidade humana não é una mas é dupla, feita de dois entes semelhantes e diferentes, ao mesmo tempo que também tem em conta que o entendimento que o senso comum – e portanto, também, as práticas quotidianas da escola – faz dessa entidade feita de dois seres diferentes é um entendimento cultural e socialmente construído e, como tal, deve ser questionado pela escola de uma sociedade em mudança.”
Após um quase completo interregno de várias décadas, que corresponde em termos gerais ao regime salazarista (meados dos anos 30-finais dos anos 60), o discurso feminista ressurgiria em Portugal na década de 70. Primeiro de forma pouco articulada, resultando de iniciativas individuais ou de pequenos grupos de activistas, ainda durante os anos do chamado “marcelismo”, e depois de forma generosa mas novamente pouco consistente devido à atomização em inúmeras organizações, nos anos que se seguem à revolução de Abril, surgiria aquilo que alguns autores chamam um “feminismo de segunda vaga”.
Este(s) “novo(s)” feminismo(s), para além da grande intervalo de tempo que os separa, distingue(m)-se do “feminismo de primeira vaga” do início de Novecentos pelas prioridades das suas reivindicações e pelas estratégias de acção. A caracterização da natureza destes movimentos feministas e a análise das principais linhas que os orientaram já foram objecto de uma análise recente (Magalhães 1998) que destacou exactamente a transformação que sofreu a questão da educação enquanto tema do discurso feminista português.
Substituindo a luta pelo acesso ao ensino, o feminismo dos anos 70 elegeu como preferencial ou prioritária a luta contra o papel da Escola na reprodução dos estereótipos sexuais dominantes numa sociedade tida como patriarcal e discriminatória para com o papel das mulheres na vida pública e privada, desde a família ao mercado de trabalho. A clivagem ideológica entre as diversas tendências sensíveis entre as feministas portuguesas impediu, contudo, uma intervenção na área da Educação equiparável na mobilização e nos resultados ao que se passou entre 1978 e 1984 com a campanha “pelos direitos reprodutivos” ou, de forma mais clara, pelo direito à interrupção voluntária da gravidez.
A indefinição ou as contradições quanto à prioridade da “luta pela igualdade” ou pelo “direito à diferença” também dificultou uma definição mais clara dos contornos do discurso feminista português neste período e uma explicitação mais evidente das suas aspirações.
No Boletim da Comissão da Condição Feminina, publicado desde Junho de 1975, a questão da Educação feminina só é tratada com alguma atenção em Setembro de 1977 num artigo sobre a “Situação das mulheres portuguesas perante a Educação” baseado nos dados do censo de 1970 e nos indicadores disponíveis para o sistema educativo até 1975. Aí se constatava, entre outros aspectos, a quase completa feminização do pessoal docente, excepção feita ao Ensino Superior.
(cont.)

Uma moderna definição de Europa Central

Como definir “Europa Central”? Para o universitário checo Jiri Travnicek, a região é caracterizada por uma perpétua evolução em relação com a história, a geografia e a cultura.
Existe realmente uma Europa Central?
É uma questão de ponto de vista. Se aplicarmos uma grelha de leitura rígida, cruzando história e geopolítica, torna-se difícil distinguir claramente uma Europa Central. Em contrapartida, com uma grelha de leitura mais matizada, ou seja, cultural, encontramos algo de mais concreto. A Europa Central é um tipo conceptual extremamente arisco. Convém, pois, ter cuidado com ele. Não tem fronteiras, nem império, nem território, que são sempre fonte de disputas e de histeria, ao contrário da cultura, mesmo a mais básica (nomeadamente a cultura gastronómica), que reúne, liga as coisas entre elas e procura os pontos comuns.
O conceito de Europa Central remete, então, unicamente para uma certa atmosfera cultural, ou também para um território específico? Considera-se sobretudo ligado a uma certa atmosfera; mas penso que se deve igualmente falar de território. Convém dar-lhe contornos concretos, tanto temporais como geográficos. Senão, não fica uma coisa etérea. Julgo possível delimitar o seu território da seguinte forma: Munique a oeste, Szczecin e Gdansk a norte, Vilnius a leste, Novi Sad [Belgrado] e Trieste a sul… Se a Europa Central é concebível sem a Alemanha, é inconcebível sem os alemães e menos ainda sem a língua alemã, cuja presença neste espaço era outrora culturalmente obrigatória.
Como descreveria o espírito centro-europeu a um estrangeiro? Defini-lo-ia pela negativa. Diria que ele difere da Europa Ocidental, cujas tradições estão bem estabelecidas, mas também da Europa de Leste (principalmente da Rússia). É um meio termo entre a ordem ocidental, a civilização e a Ásia nascente, que Metternich aliás apontava como começando para oriente da Rennweg de Viena. Explicaria igualmente que o conceito se manteve por muito tempo na esfera política. E acrescentaria que a Europa Central está intimamente ligada a experiências de exílio. Nos anos 80, exilados como Milan Kundera [nascido na Checoslováquia, vive em França desde 1975] e Czeslaw Milosz [1911-2004, poeta e romancista polaco, naturalizado norte-americano, galardoado com o Nobel da Literatura em 1980], para quem o facto de serem considerados província soviética era inaceitável, interrogaram-se repetidamente sobre o significado do conceito de Europa Central. Acabaram a falar de “história roubada” ou de “Ocidente sequestrado”. Nos anos 90, redescobrimos todos a Europa, mas, de certo modo, esquecemo-nos de retomar a Europa Central. Entre nós há ainda a muito presente temática do cadáver no armário. Veja-se, por exemplo, o caso de Peter Esterhazy [escritor húngaro] e o seu romance “Harmonia Caelestis”, em que retrata o pai com grande admiração. Depois de publicado, foi revelado que o pai tinha colaborado com a polícia comunista. O escritor teve de publicar nova edição do livro, revista e corrigida. Na Europa Central, é aconselhável não se incensar nem aplaudir nada cedo de mais, não escrever nada antes de consultar os arquivos.
A Europa Central esteve sempre banhada na nostalgia do passado, sobretudo da época austro-húngara, mas também do período antes de Ialta. Ora nos deixamos abater pela nostalgia, pensando no passado, ora sonhamos, imaginando o futuro. Erhard Busek [político austríaco muito envolvido nas questões centro-europeias e balcânicas] considerou que o conceito de Europa Central significava uma recusa do “statu quo”, uma revolta contra a chamada “realpolitik”. Tratar-se-ia de uma espécie de presença diferida.
A expressão “Europa Central” não é um exclusivo da época actual. Após 1989 [queda do regime soviético], o termo passou a ser utilizado por eslovenos, croatas, habitantes da Voivodina [na Sérvia] e também por alguns sérvios para invocar uma “exteriorização dos Balcãs” e até por bielorrussos que procuravam na Europa Central um meio de se distanciarem do seu Presidente Lukachenko.

Luta pela igualdade de géneros - Parte I



A propósito da luta pela igualdade e nos 35 anos da 1ª manifestação pública feminista em Portugal – Parque Eduardo VII, 13/1/1975. No século XX, atravessado por quatro regimes políticos diferentes – o final da monarquia, a I República, o Estado Novo e a democracia -, a situação das mulheres em Portugal mudou radicalmente.
No princípio do século XX, a situação da mulher no seio da família era regulada pelo Código Civil napoleónico de 1867 – Código de «Seabra» -, que obrigava a mulher casada a residir no domicílio do marido; a prestar-lhe obediência e não a autorizava, sem o consentimento dele, a administrar, adquirir, alienar bens, publicar escritos e apresentar-se em juízo.
Em vigor até 1967, esse Código tinha várias outras cláusulas que se diferenciavam consoante se referissem ao homem ou à mulher: por exemplo, o homem podia solicitar o divórcio sempre que a mulher praticasse adultério, enquanto que esta só o podia fazer se o adultério tivesse sido praticado «com escândalo público».
O regime republicano atenuou desde logo algumas dessas normas que subjugavam as mulheres casadas aos maridos e aboliu certas diferenciações jurídicas consoante o sexo. As leis do Divórcio e da Família de 1910 estabeleceram a igualdade entre os cônjuges quanto às causas da separação e na sociedade conjugal. Entre outras coisas, a lei do Divórcio eliminou um artigo do Código Penal de 1886, segundo o qual a esposa adúltera era punida com prisão maior celular de dois a 8 anos, enquanto o homem casado adúltero era condenado a uma simples multa que podia ir de 3 meses a 3 anos do seu rendimento.
O que nunca foi conseguido durante a I República foi o sufrágio feminino. Lembre-se que o regime republicano concedeu, em 1911, o direito de voto aos portugueses com mais de vinte e um anos que soubessem ler e escrever e aos chefes de família, sem especificar o sexo dos eleitores. Esse argumento foi utilizado por Carolina Beatriz Ângelo, que era viúva e chefe de família, para votar, mas, a partir de 1913, o regime republicano especificou que só os «chefes de família do sexo masculino» podiam eleger e ser eleitos.
Com o advento do Estado Novo, a situação da mulher regrediu. Em 1932, em resposta a uma pergunta de António Ferro sobre qual seria o papel destinado à mulher no novo governo e regime, o recém-empossado Presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar, afirmou que «…a mulher casada, como o homem casado, é uma coluna da família, base indispensável de uma obra de reconstrução moral» e «a sua função de mãe, de educadora dos seus filhos, não era inferior à do homem». Segundo ele, devia-se deixar «o homem a lutar com a vida no exterior, na rua… E a mulher a defendê-la, no interior da casa».
Para Salazar, os homens e as mulheres não eram encarados como indivíduos mas como membros da família, o núcleo primário «natural» e «orgânico» do Estado Novo corporativo. As mulheres, que constituíam o «esteio» dessa família tradicional defendida pela ideologia salazarista, tinham sido atiradas pelo regime liberal para o mercado de trabalho onde entravam em concorrência com os homens e por isso, com o novo regime, deveriam regressar ao «lar». Para defender esse regresso à família e a separação de esferas de actuação entre homens e mulheres, Salazar aparentemente valorizou o papel de mãe e de esposa.
Mas a apregoada «superioridade» feminina era derivada da sua função «natural» – portanto biológica. Como a ideologia salazarista não se pautou pelos conceitos de «cidadania», de «igualdade» e de «liberdade», só aceitou o princípio da «diferença sem a igualdade» em vez «da igualdade na diferença», reservou às mulheres uma esfera própria de actuação – privada e pública – mas não atribuiu ao espaço feminino um valor igual ao do masculino porque o subalternizou hierarquicamente em função do sexo.
As leis que, no regime salazarista, regularam os direitos políticos das mulheres e a sua situação na família, no trabalho e na sociedade basearam-se na Constituição de 1933. Embora afirmando a igualdade de todos os cidadãos perante a lei e negando «o privilégio do sexo», esta incluía uma cláusula que consagrava as excepções ao princípio de igualdade constitucional: «salvo, quanto às mulheres, as diferenças da sua natureza e do bem da família». Ou seja, em nome de um factor biológico – a «natureza» – e de um factor ideológico – o «bem da família», as mulheres seriam discriminadas.
Os traços discricionários do Código Civil de 1867, atenuados pelo regime republicano, voltaram em força com o Estado Novo. O Código do Processo Civil de 1939 reintroduziu o poder concedido ao marido de requerer a entrega e «depósito» judicial da mulher casada. Este possibilitava ao marido, em caso de saída da mulher da casa familiar, exigir judicialmente que ela fosse aí compulsivamente «depositada» em sua casa, como se fosse um fardo. As mulheres deixaram também de poder exercer comércio, viajar para fora do país, celebrar contratos e administrar bens sem o consentimento do marido.
Quanto ao divórcio, o grande golpe à lei republicana de 1910 foi desferido com a celebração da Concordata entre a Santa Sé e o Estado português, em 1940, que passou a reconhecer os efeitos civis do casamento celebrado segundo as leis canónicas. O casamento tornou-se indissolúvel a partir de então e, por conseguinte, todos os casados pela Igreja – a larguíssima maioria -, que se separavam, já não se podiam voltar a casar. Esta situação que vigorou até 1974, gerou muitas situações de ligações extra-matrimoniais não legalizadas e aumentou o número já de si grande, dos filhos ilegítimos.
Em 1961, um novo Código do Processo Civil substituiu o de 1939 mas manteve «a entrega e o depósito judicial da mulher casada», que só seria anulada em 1967, quando entrou finalmente em vigor o novo Código Civil.
No Código Civil de 1967, continuou, porém, a prevalecer a autoridade masculina, pois o marido permanecia «chefe da família» com poderes decisórios relativamente a todos os actos da vida conjugal. Quanto à mulher era responsabilizada pelo governo doméstico mesmo se trabalhasse fora do lar. A administração dos bens do casal continuava a caber ao marido e a mulher continuava obrigada a adoptar a residência do marido e a estar impossibilitada de sair do país, exercer comércio ou movimentar depósitos bancários sem o consentimento dele.
Também o Direito Penal tinha normas que penalizavam particularmente as mulheres e alguns crimes ditos «femininos». No Código Penal de 1886, que vigorou durante o Estado Novo, o homicídio da mulher cometido pelo homem casado era punido com 3 meses de desterro fora da comarca, enquanto no crime cometido pela esposa, a pena tinha o mesmo grau de brandura só se o marido mantivesse «concubina teúda e manteúda na casa conjugal»
O Estado Novo manteve a autorização da prostituição em casas toleradas, tendo o Estado Novo mantido a situação, limitando-se, inicialmente, a regular a matéria por via administrativa e só considerando o proxenetismo como crime quando exercido relativamente a menores. Em 1962, a prostituição foi proibida e as prostitutas, equiparadas a «vadios», foram sujeitas a 1 ano de prisão e a multa. Relativamente à prática de aborto, o Código Penal punia-o com pena de prisão maior celular de 2 a 8 anos.
Quanto ao direito ao voto, a Ditadura estabelecera, em 1931 que «as mulheres, chefes de família viúvas, divorciadas ou separadas judicialmente e as mulheres casadas cujo marido está ausente nas colónias ou no estrangeiro» podiam pertencer às juntas de freguesia e, em 1933, o direito de voto das mulheres foi estendido às eleições para as câmaras. Note-se que a capacidade eleitoral das mulheres, tal como a dos homens era determinada em função da chefia da família. Em 1934, novo diploma possibilitou o sufrágio e a elegibilidade para a Assembleia Nacional e para a Câmara Corporativa, às mulheres com mais de 21 anos, solteiras com rendimento próprio, assim como às casadas e às chefes de família com diploma do ensino secundário ou que pagassem determinada contribuição predial.
Foi assim, por paradoxo, que o Estado Novo foi o primeiro regime português a conceder em Portugal o direito de voto e de elegibilidade às mulheres, embora sob certas condições. Como disse a deputada Cândida Parreira, Salazar abrira as portas do hemiciclo às mulheres, porque percebera a sua importância no combate pela moralização, educação, assistência e defesa da família. Mas especificou que o voto feminino não tinha sido conquistado pelas mulheres mas «decretado»pelo «Chefe».