sexta-feira, 23 de abril de 2010

Reinventando o século passado ...


O liberalismo situa-se numa lógica de confronto com outro projecto político distinto em substância, que é a democracia. Este confronto surge do pressuposto de que, enquanto o liberalismo remete na sua origem para uma antropologia e ontologias de signo individualista, a democracia sustém-se numa consciência republicana (no sentido de res publica). Esta diferença marcante para a distinção liga-se, desde logo, ao facto de o projecto liberal, defensor da igualdade jurídica e da existência de um regime político representativo, é insuficiente para aqueles que defendem a realização das aspirações de liberdade a partir de uma perspectiva democrática. O radicalismo, que constitui uma expressão diversificada ao longo do século do ideal democrático, postulará que a igualdade civil ou jurídica deve ser acompanhada por igualdade política. Desta maneira, seria imprescindível que «todo o poder de Estado derivasse unicamente do sufrágio da nação; e requeria ainda que o «povo» fosse genericamente ouvido e atendido». O impulso revolucionário que percorre o século XIX teve no radicalismo o seu principal promotor, num período atravessado por distintos processos políticos que, de forma recorrente, renovam as controvérsias que deram forma à história da Revolução em França e das décadas posteriores numa boa parte da Europa. Evidencia-se a impossibilidade de fazer do liberalismo moderado (doutrinário na sua origem) e do radicalismo democrático projectos convergentes.
Em Portugal, a constitucionalização da monarquia em 1822 cria na prática um espaço político que exclui o povo, em cujo nome o radicalismo hasteia recorrentemente a bandeira da revolução. Desde meados do século, em diversas ocasiões, a intenção de «republicanizar a monarquia» não é senão o desejo de ampliar o marco de liberdades e direitos para acolher o actor povo (ainda amorfo) na vida política institucional. Definitivamente, o liberalismo revela-se como um discurso a favor da liberdade actualizada na representação e como um projecto que, ao instalar-se no poder, procura manter a ordem, para o que se sente impelido a desenhar um sistema político sustentado na exclusão. O radicalismo, como impulso democratizante, ou seja, como crítica à exclusão que o constitucionalismo e a prática liberais comportam, actualizar-se-á secularmente num trânsito da monarquia para a república. A revolução vintista assume-se como a chave que mobiliza o povo e postula-se como um dos seus porta-vozes o exército, o qual, por outro lado, se encontra profundamente dividido. Nesta conjuntura, como evidencia a formação tardia da Guarda Nacional, a necessidade de contar com o povo convive com o medo do mesmo (expressão histórica desta ambiguidade é a circunstância de que, uma vez constituída, a Guarda Nacional estará permanentemente ao serviço da revolução, pelo menos até 1838). A Carta de 1826 sancionava um sufrágio restringido num momento em que, ademais, o povo já se tinha mobilizado durante a guerra civil, ou seja, já se tinha corporizado enquanto actor político. O Partido Popular, a oposição constitucional ou patriota, criticava o açambarcamento de cargos e a sua exclusão de qualquer tipo de benefícios. O seu programa consistia na reforma da Carta, economias e «desacumulações». A prática política que se institui então implicava que os governos se formassem a partir de facções ou coligações de facções, sem que a rainha tivesse a autoridade suficiente para arbitrar nos conflitos surgidos entre estas. Desta forma, o trono acabou por estar ao serviço dos partidos, enquanto o poder se tornava dependente do exército; o problema é que este último se encontrava ainda dividido, o que implicava instabilidade.
Perante esta insatisfação, o setembrismo virá retomar o tema da revolução. Esta seria orquestrada, chegado o momento, pelos grupos políticos, as guardas nacionais de Lisboa e os chefes políticos do Partido Popular. Mas a revolução aterroriza e os arsenalistas serão em breve considerados «irracionais». Mesmo um radical como Passos Manuel poderia mostrar-se em desacordo com a sua frontal crítica à monarquia e à Igreja e a sua estratégia de actuação, baseada na ideia, de ressonâncias jacobinas, de que a liberdade tem de estar em contínuo movimento. O resultado reactivo da experiência setembrista será, no imediato, a Constituição de 1838 e, a médio prazo, o aparecimento de Costa Cabral, cujo projecto não é apenas conter a revolução, mas antes suprimir qualquer opção política que apoie tais procedimentos. O fracasso do setembrismo ilustra a impossibilidade histórica de constitucionalizar ou domesticar o radicalismo. Com o passar do tempo, o radicalismo ir-se-á diversificando, mas permanecerá «irracional » em qualquer das suas manifestações. Por outro lado, a estada de Cabral no poder acabará por contribuir para a radicalização da vida política. A vontade de asfixiar o radicalismo será uma herança difícil de gerir. Assim, na origem da guerra da Patuleia está a tentativa, por parte de Saldanha logo que assume o poder, de exclusão do radicalismo. Na prática, este confronto constitui um impasse na tentativa de sustentar o edifício da política sobre os hipoteticamente sólidos pilares do moderantismo. Cabral seria novamente convocado pela rainha quando, por outro lado, a revolução já tinha sido derrotada na Europa. Nesta nova conjuntura, o seu doutrinarismo tinha perdido parte da sua razão de ser. Saldanha ensaiará então uma nova revolução, apoiada inteiramente num exército que tinha superado a divisão tradicional entre militares cartistas e setembristas radicais. Sobre a vitória do pronunciamento se sustentaria o regime da Regeneração.
O radicalismo dividir-se-á novamente durante a Regeneração. As diferenças dentro do Partido Histórico entre a «unha branca» e a «unha negra» reproduzem as divisões e tensões entre o setembrismo e o radicalismo. O republicanismo, por seu turno, desinteressou-se das formas constitucionais ao longo deste período. Precisamente por este motivo, surgiu a opção de republicanizar a monarquia. O primeiro passo nesse sentido consistiu em abater a Igreja. De facto, as divisões intensificaram-se quando surgiu em cena a questão religiosa. Foi no contexto da polémica aberta em torno das acusações lançadas pelo radicalismo (no sentido de que o desembarque das Irmãs da Caridade francesas representava a ponta de lança de uma ofensiva ultramontana em linha com a Concordata) que a monarquia e a Igreja começaram a vincular-se e a ser consideradas instituições anómalas. Em suma, um contexto de amplas transformações sociais potenciou a vivência de subordinação que o vínculo histórico entre a religião e a classe privilegiada representava. As identidades políticas deveriam passar, daí em diante, pelas posições adoptadas relativamente a esta questão.
Em 1862, Loulé, que presidia ao governo em nome do Partido Histórico, foi obrigado a definir a sua postura em relação a estas questões. O novo governo, formado por membros de todas as opções radicais, tratará de expulsar as corporações religiosas do ensino e de regular inteiramente o mesmo a partir do Estado. Este projecto manifesta uma vez mais a distância entre os conceitos de liberdade defendidos pelo liberalismo e pelo radicalismo. Este último defende uma política de secularização promovida de forma activa pelo Estado, ao qual se atribui o poder de decidir e actuar em nome do interesse geral, que se sobrepõe, neste caso concreto, aos privilégios defendidos por uma corporação como a Igreja. Enquanto não cessavam os tumultos na cidade de Lisboa, a proposta sobre o ensino permaneceu sequestrada nos Pares, o que veio a demonstrar que o governo de Loulé era incapaz de converter o anticlericalismo num programa político concreto. O governo de Loulé acabaria por cair ao fim de dois anos, tornando-se evidente a impossibilidade de governar em conjunto com o radicalismo; daí em diante governar-se-ia contra ele e, para o conseguir, concebeu-se a «fusão (1865). A «fusão» consistiu numa coligação de governo entre regeneradores e a «unha branca» dos históricos e durou dois anos. Durante este período, a concórdia institucional contrastou com um estado generalizado de insurreição latente. Uma massa urbana politizada, à qual os governos da unha branca de Loulé tinham voltado as costas, agitava as ruas, particularmente as de Lisboa. Em 1870 Saldanha voltou a entrar em cena. Apoiado pelo exército, representava a possibilidade de subtrair o governo às divisões partidárias e à radicalização política nas ruas mediante o estabelecimento de um poder autoritário. Levou a cabo um golpe de Estado e começou a governar de forma ditatorial, aprovando um conjunto de medidas destinadas a purificar a política. Os Partidos Regenerador, Reformista e Histórico opuseram-se aos seus métodos de governo e Saldanha acabou por demitir-se.
No calor dos processos anteriores, a chamada geração de 70, composta por intelectuais formados em Coimbra, começou a fazer pressão em favor da modernização da monarquia, de cujo atraso culpava a Igreja e os valores da religião católica. Em qualquer caso, na década de 70 sucedem-se anos de optimismo graças à redução do défice operada pelo governo de Fontes Pereira de Melo. Não obstante, numa conjuntura de nova crise financeira, a aspiração dos progressistas ao governo esbarra na preterição, à qual, por sua vez, o progressismo responde intensificando a sua campanha, agora não apenas contra Fontes, mas também contra o rei, a quem acusava de privilegiar um determinado grupo político. Fontes procura desacreditar o progressismo, aprovando uma lei de ampliação do voto que implicaria praticamente o sufrágio universal masculino. Contudo, as eleições de Outubro de 1878 não proporcionaram um resultado positivo para o Partido Progressista; a partir de então, as suas denúncias centraram-se na monarquia. Nos anos 70, o radicalismo, nas suas diferentes manifestações (histórica, penicheira, republicana, federalista e socialista), embora não se tenha extinguido, não representa na prática uma ameaça séria à ordem estabelecida.
A situação descrita convive com uma preocupação crescente pelo império africano, em consequência do relativo desafogo financeiro do Estado e do interesse das potências europeias por este território. Em 1880, as discussões sobre a ratificação do Tratado de Lourenço Marques viriam a coincidir com a comemoração do centenário de Camões. Os republicanos promoveram as celebrações, apropriando-se delas para exaltarem a pátria portuguesa, a qual definem como idealmente construída a partir de vontades concorrentes que convergem no interesse geral. O republicanismo denunciará que a oligarquia monárquica tinha impedido a criação de uma nação política ao estilo da que postulam: «Manteve os portugueses alheados da nação e uns dos outros, absortos na imediatez dos seus interesses egoístas e inteiramente falhos de consciência da sua unidade nacional». Nas eleições de 1881, e novamente nas de 1883, o republicanismo obtém, de facto, resultados eleitorais mais do que satisfatórios.
A euforia colonial e, particularmente, a defesa dos interesses portugueses independentes da tutela britânica coincidiram, além disso, com a irrupção em cena da política de massas. Num contexto de radicalização com o anticlericalismo e a república como temas centrais da política nacional, Fontes Pereira de Melo considerou necessário deixar o progressismo ir para o governo. Foi devido ao anterior que se concebeu a rotação, precedida de uma reforma eleitoral que tinha garantido a viabilidade da mesma. Após a morte de Fontes e Braamcamp, chegaria também a extinção do sistema rotativo, acelerada depois da crise do ultimato em 1890. Esta crise sobrevém durante uma «onda de protesto patriótico» e contribui para a intensificação da mesma. Daí em diante, e embora o Partido Republicano não esteja em condições de assumir o poder, republicanismo e patriotismo transformar-se-ão numa mesma coisa. A crise, além disso, desorientou o Partido Progressista e destruiu os equilíbrios que sustentavam o Partido Regenerador. Simultaneamente, introduziu divisões no seio do Partido Republicano, que não soube conduzir com unanimidade o protesto patriótico. Neste contexto de divisão emergiu a figura de João Franco e o projecto da «Nova Vida». A intenção era dar prioridade a um Estado que representasse organicamente a sociedade (acima das lutas partidárias) e à frente do qual se encontrasse o rei. Na década de 90, o Partido Republicano, depois do fracasso da revolta de 1891 no Porto, dissolver-se-á em lutas intestinas. Não obstante, na história das três últimas décadas do século XIX, com o protagonismo crescente do republicanismo como grande tema nacional, já não haverá possibilidade de inverter o processo.
Em O Século XIX Português, Fátima Bonifácio mostra-nos de que modo o radicalismo se revela indispensável para fazer a política e de que modo, até certo ponto, entorpece as transformações em curso, já que se torna, com frequência, incontrolável. Por outro lado, a história das restantes opções políticas é narrada em parte como a da reacção perante o desafio que o radicalismo constitui. Rebeliões militares, «ditaduras », acordos de exclusão (fusão) ou de inclusão (rotação) deram forma a experiências políticas cujo propósito central foi o de controlar ou aniquilar o radicalismo tanto nas instituições como na sua versão extraparlamentar. Conta-nos de modo magistral uma breve história do século XIX na qual a trama principal gira em torno das relações por vezes tumultuosas entre as opções radicais no interior e à margem do liberalismo.