domingo, 18 de abril de 2010

Da queima de soutiens à afirmação REAL: O equívoco do feminismo



Em 1974, a seguir ao 25 de Abril, um grupo de mulheres reuniu-se no alto do Parque Eduardo VII para – segundo foi anunciado – queimar soutiens e outros adereços femininos. Não terá sido o arranque ideal, mas, ainda assim, o fervor das feministas portuguesas (lideradas pelas célebres ‘três Marias’) não esmoreceu. A partir daí, empenharam-se em destruir todos os símbolos femininos, considerados sinais de ‘escravidão’. Os cabelos compridos eram identificados com as mulheres? Pois cortem-se os cabelos! As saias eram usadas pelas mulheres? Pois vistam-se calças! Os sapatos de salto alto só eram calçados por mulheres? Pois acabe-se com os saltos e calcem-se mocassins! E assim por diante. Tudo o que, de perto ou de longe, cheirasse a ‘feminino’, era imediatamente banido e lançado à fogueira. Vivia-se o renascer do espírito do auto-de-fé.
Embora na época eu não tenha reflectido muito sobre o tema, logo me pareceu haver alguma coisa de errado nessa atitude. Mas só mais tarde percebi o porquê. O feminismo assentava num equívoco.
Destruindo os soutiens, cortando os cabelos, abolindo as saias, pondo de lado os saltos altos, as feministas começaram a parecer-se cada vez mais com os homens. Para distinguir certas mulheres era preciso olhar duas vezes – e o que nos fazia desconfiar não estarmos perante um homem era apenas, normalmente, a reduzida estatura. Essa atitude de imitação da imagem masculina levou muitas mulheres a pensar uma coisa terrível: que, para terem os mesmos direitos dos homens, tinham de se parecer com eles. Dito de outra maneira: se as mulheres persistissem em ‘ser elas’ e continuassem a usar cabelo comprido, soutien, saias e saltos altos, nunca poderiam aspirar à igualdade.
Ora a verdadeira batalha era outra. O que a maioria das mulheres queria era ter os mesmos direitos e oportunidades dos homens não tendo de abdicar dos seus símbolos nem sendo obrigada a imitar ninguém. As mulheres queriam poder ser vistas no mesmo plano dos homens usando o penteado que entendessem, pondo o modelo de soutien que quisessem, vestindo saia comprida ou curta conforme lhes apetecesse, calçando sapatos de salto mais baixo ou mais alto, mais grosso ou mais fino, consoante as circunstâncias. Em resumo: as mulheres queriam ser olhadas em pé de igualdade com os homens não deixando de ser mulheres, não renegando a sua condição, não se tornando travestis.
No discurso feminista, para lá daquele equívoco, existiam muitas contradições. Por exemplo: a exigência de quotas para as mulheres na política. As quotas só fazem sentido se se considerar que mulheres e homens são diferentes – ou seja, que têm sensibilidades diferentes, que podem dar contributos diferentes, que introduzem no debate político temas diferentes. Se homens e mulheres fossem iguais, se pensassem do mesmo modo e chegassem às mesmas conclusões, que vantagem haveria na presença de mais ou menos mulheres na política? Assim, reivindicar por um lado quotas e por outro dizer que entre homens e mulheres não havia qualquer diferença era destituído de sentido.
Mas, nesta luta das feministas pela indiferenciação dos sexos, havia uma questão inultrapassável: a maternidade. Se os cabelos, as saias, os soutiens, os saltos se podiam abandonar, não havia maneira de contornar o facto de serem as mulheres quem gera os filhos. Aqui não havia volta a dar – não havia maneira de esconder a diferença. A maternidade tornou-se assim o último elo que ‘agarrava’ a mulher à sua condição feminina. A última barreira. O derradeiro obstáculo à libertação completa da mulher. É daí que nasce a luta a favor do aborto. Se as mulheres não podiam deixar de ser elas a ter os filhos, ao menos que pudessem decidir se queriam ou não tê-los – não podendo ser condenadas se decidissem abortar. Isto explica a militância das feministas e suas herdeiras a favor do aborto. Elas batem-se hoje pelo aborto como se batiam então pela rejeição dos soutiens: são tudo símbolos da condição feminina, ou seja, símbolos de ‘servidão’. Repare-se que muitas feministas não quiseram ter filhos. Consideraram que isso ‘reduzia’ a mulher à condição de mãe. Diminuía-a. Impedia a sua emancipação. As mulheres – diziam – só conseguiriam estar em pé de igualdade com os homens quando se libertassem de tudo aquilo que poderia fazer a diferença. E os filhos eram o último reduto da diferença.
Anos volvidos da queima dos soutiens no Parque Eduardo VII, percebo melhor por que tinha a intuição de que o feminismo assentava sobre um erro. As feministas queriam que homens e mulheres fossem o mesmo, vestissem as mesmas roupas, tivessem as mesmas conversas, lessem os mesmos livros, sentissem da mesma maneira, tivessem os mesmos gostos, reagissem da mesma forma. Ora, como a história recente provou, as mulheres desejam exactamente o oposto: ser diferentes, vestir-se doutra maneira, ter outros gostos, reagir doutra forma. E é nessa diferença que reside o mistério, é daí que nasce o encanto, a atracção, o desejo. Já se pensou na sensaboria que seria o mundo se homens e mulheres fossem iguais? Em duas frases, o ‘equívoco do feminismo’ pode definir-se assim: as feministas queriam imitar os homens para terem os mesmos direitos; mas a dignidade das mulheres defende-se exactamente ao contrário: exigindo os mesmos direitos sem terem de renegar a sua condição. (refª Sol)