quinta-feira, 18 de março de 2010

O Código dos Contratos Públicos e as sociedades de advogados: uma história de filhos legítimos e de bastardos!


Em 2008, uma batalha jurídica começou com o Supremo Tribunal Administrativo a exigir ao Governo a informação sobre os honorários consumidos com estudos e pareceres realizados por sociedades de advogados. A Sérvulo Correia ganhou €4,26 milhões, a Rui Pena, Arnaut & Associados €549.000, a Morais Leitão, J. Galvão Teles, Soares da Silva & Associados €494.000 e a A. Maria Pereira, Sáragga Leal, Oliveira Martins, Júdice e Associados €418.000: 1/3 dos custos dos ministérios com serviços jurídicos externos. A Sérvulo Correia "serviu", em exclusividade, Paulo Portas, na assessoria jurídica para a Lei de Programação Militar, com a elaboração das peças concursais para a aquisição de material militar, e na defesa do Estado nos recursos apresentados: custou €2,2 milhões. Paulo Portas também contratou os escritórios de Nobre Guedes e Celeste Cardona para assessorias em negócios militares (os radares na Madeira e Açores, aeronaves C-295): €90.000.
A Sérvulo & Associados envolveu-se numa polémica com o TC por causa da auditoria/2008 sobre os consultores contratados pelo Estado, concluindo pela «falta de transparência» e pela ausência de «critérios de adjudicação»: em 489 contratos o Estado pagou €30 milhões, com a Sérvulo a "merecer" €1,6 milhões. O TC veio dizer que o Estado devia realizar concursos públicos ou consultas prévias, em vez de optar pelo ajuste directo. E criticou o novo Código por criar regras específicas para os contratos de consultadoria. A Sérvulo respondeu à altura, dizendo que as directivas comunitárias transpostas excluem os serviços jurídicos do regime geral e reconhecem a sua especificidade. O que indigna quem trabalha com o CCP não é o ajuste directo à SC - pelo que constato todos os dias - é o afastamento de assessores dos gabinetes ministeriais de uma matéria extraordinariamente relevante para o Estado, o que resultou numa "aptidão técnica" especial hoje reconhecida à Sérvulo. Sobre esta, faço notar que SC afirmou que "quem trabalhou no código talvez o conheça melhor no primeiro mês - mas houve um prazo de 6 meses até entrar em vigor, em que todos os juristas puderam trabalhar nele. Além disso, muitas vezes a lei é interpretada pelos tribunais num sentido diferente do que os seus autores lhe davam."
Nos próximos 3 anos, as despesas com projectos, estudos, pareceres e consultoria vão ficar sujeitas a um limite máximo de €90 milhões, segundo prevê o Programa de Estabilidade e Crescimento. É uma redução de €5,5 milhões face ao OE/2010, em que se inscreveu €95,5 milhões para gastar com outsourcing (verba cativa a 50%, pelo que há €47,7 milhões disponíveis). Nos próximos anos, o Governo pode optar por cativar uma parte das verbas destinadas aos estudos, pareceres e consultoria, obrigando os serviços a justificar e a fundamentar a sua utilização.
O problema é óbvio para quem trabalha com o CCP: o Estado é apenas mais um cliente, as empreiteiras de obras públicas, fornecedores e prestadores também são clientes. E o Estado tem recorrido aos serviços de quem igualmente defende outros clientes. Quando o Estado escolhe quem os seus oponentes escolhem, os conflitos de interesses vir a ser intransponíveis. E, desconhecendo-se que estes existam, é certo que, às vezes, coexiste alguma promiscuidade mal explicada. Os quase 500 artigos do CCP são uma Torre de Babel para quem trabalha com contratos públicos. É, porém, verdade o que diz SC: todos tiveram 6 meses para estudar o Código. Pela minha parte, chamei a atenção, por escrito, ainda como auditora do TC, para esta complexidade. Não vi grandes preocupações por parte do Estado em formar técnicos nestes 6 meses. Tudo continuou diletante, apático e alheado. Desde 2008 que o CCP é a minha Caixa de Pandora. Foi a arma para investir numa actividade livre e privada e abdicar do meu vínculo ao Estado. A exoneração foi a minha libertação. Se o Código fosse uma amálgama reduzida à agregação do DL 59/99 e do 197/99, isso não seria possível. A complexidade da obra obriga a requalificações profissionais e quem exerce funções públicas não está motivado nem disposto a isso. A estrutura da Administração Pública é deficitária para manusear um monumento jurídico desta ordem. E a debandada das reformas não ajuda. Ficam os menos experientes. Vão-se os que têm mais traquejo e expediente. Numa máquina que obstaculou a que os seus funcionários licenciados em Direito tirassem o estágio para exercer advocacia e inibiu a sua vocação para dirimir litígios, o problema é hoje evidente: não há predisposição nem há aptidão. Contratam-se advogados, juristas, investigadores, consultores e peritos. O Estado não tem mão-de-obra qualificada para ter mão neste Código. E isto dá a mão aos que abdicaram do Estado em prol do estudo do CCP. Numa coisa dou razão ao Sérvulo Correia: não há aqui filhos e enteados. Há, talvez, digo eu, filhos legítimos e bastardos.