terça-feira, 9 de março de 2010

A (saudável) impertinência de Mário Soares

"A Europa tem que ajudar Obama. É um suicídio se o não faz." Opinião de Mário Soares, na entrevista concedida a Teresa de Sousa, no Público, de 5 do mês. A 1ª de 12 entrevistas de reflexão sobre o futuro do país, num mundo em mudança e com um ambiente carregado como o dos últimos meses. Há que olhar para a frente e antever alternativas. MS, quase 70 anos de vida política activa, dividida entre o combate difícil contra a ditadura e a construção da democracia. MS estará preocupado com o futuro como a todos compete, mas confia numa "nova geração de portugueses, mais preparada, mais habituada ao mundo, mais confiante em si própria." Para o presente, o espírito de compromisso é o caminho certo. Entre o optimismo e o pessimismo, escolhe o realismo. Por muito mal que se diga de Portugal, são óbvios os progressos dos últimos 35 anos. "Rompemos o bloqueio em que vivíamos, abriram-se horizontes novos para a juventude e para as nossas elites em todos os domínios. Temos hoje mais estudantes universitários do que tínhamos nesse tempo. Somos um país mais culto, o nível de vida é maior em todos os aspectos. Passámos a ser um país do primeiro mundo e que recebe imigrantes.Essa é a perspectiva histórica. É verdadeira e significativa. É isso que nos ensina que vamos e podemos continuar."
A crise actual é mais do que uma crise do capitalismo financeiro-especulativo, é política, social e é, sobretudo, de civilização, "Porque ataca os nossos valores éticos e civilizacionais."
Europeísta convicto, MS defendo os Estados Unidos da Europa. E diz que se devia avançar nesse sentido. "Mas não estamos. Tenho hoje muitas dúvidas acerca do futuro da Europa. Os actuais dirigentes europeus não têm visão de futuro. Não sei se reparou que a maioria deixou de falar de construção europeia, como se a União fosse um projecto acabado. Não é. Ninguém se interessa em saber para onde vamos. Aos líderes europeus interessa manter o statu quo, que é a situação que mais lhes convém para se manterem no poder. Não querem reformas nem querem acreditar que o mundo deixou de ser unilateral, que o Ocidente deixou de ser o que foi. O mundo é hoje multilateral e passou a ser global. A China conta muitíssimo. A Rússia também. A Índia e a Indonésia. O Brasil tornou-se uma grande potência."
O que se exige que se mude de paradigma, de modelo económico, financeiro, social, político e ambiental. "Obama disse-o. Estava cheio de razão. Está a fazer o que pode, apesar das dificuldades imensas que enfrenta. Está-lhe a cair em cima o peso do mundo. Tem uma oposição interna extremamente aguerrida. Há quem comece a gritar contra Obama, porque os decepcionou. Como se pudesse fazer milagres. Não pode. É preciso ajudá-lo, sobretudo a Europa. É um suicídio se o não faz."
A Europa continua a ser-nos fundamental. Há que continuar a batermo-nos pela sua construção. Defende que nos devíamos entender "a fundo com a Espanha nesse sentido. Fazer da Península Ibérica, cujo papel na história universal não é preciso recordar, um centro de reflexão, de ideias novas - e de iniciativas - para o futuro da Europa, como agente global na cena internacional. Temos boas condições para que as relações entre os dois Estados ibéricos se articulem nesse sentido. Devemos ter políticas europeias convergentes. Temos de pôr a Península Ibérica a falar e a fazer-se ouvir.Para levar a Europa para onde?Para fazer avançar o projecto europeu, como o mais original projecto de paz, de desenvolvimento e de progresso, que se conhece. Para levar todos os Estados membros a compreender, por exemplo, que a América Latina é importantíssima, decisiva, para o nosso futuro comum. Para compreender a importância do Atlântico. Sabe que sempre me bati por colocar Portugal na Europa. Mas também sou atlantista - não no sentido do Pacto do Atlântico, que considero uma organização ultrapassada. Temos uma ligação forte, por via da CPLP, com África. É importante que a desenvolvamos. África não é um continente perdido. Temos muito para dar e muito para receber de África. Mas devemos ter uma política africana coerente. E precisamos de ter uma política atlântica, como tal reconhecida pelos nossos parceiros europeus. São essas três componentes que me levam a considerar que Portugal é, e será, um país de futuro.O que está a dizer é que, neste mundo globalizado em que vivemos, vamos voltar a ter de tirar partido do nosso relacionamento histórico com a África e com o Brasil...E com toda a Ibero-América. Esse mundo novo abre-nos imensas oportunidades, se tivermos lucidez e bom senso."
MS escreveu recentemente O Elogio da Política, que alerta para a degradação da política, sobretudo para a sua mediatização e o marketing... O que releva quando nos confrontamos com a concentração da propriedade e do poder da imprensa nas mãos de 3/4 grupos económicos, o que faz com que sejam poucos os bons jornalistas, independentes, isentos. "A política virou-se contra si própria, ajoelhou-se perante o "bezerro de ouro" e afastou-se do jornalismo sério."
Estamos perante uma política sem ideias e sem causas não tem sentido. A política tem um problema geracional. Na época da Revolução dos Cravos, a Europa tinha grandes políticos: Willy Brandt, Olof Palme, Callaghan, Mitterrand, Kreisky, Kohl, Giscard d"Estaing, Andreotti. "Em Portugal havia ideias para o país e queríamos entrar na Europa. A verdade é que passou essa geração e as coisas mudaram. Se olharmos para os dirigentes europeus, também vemos um deserto de ideias..."As actuais gerações de políticos, formados na escola do neoliberalismo, não serão excelentes, com as devidas excepções. Mas vão vir outras, seguramente melhores. A necessidade obriga. Acredito nisso. E acredito que, por efeito da crise actual, as novas gerações serão diferentes. A que foi contemporânea dos dois mandatos do Bush foi ensinada a pensar que o importante, na vida, é ganhar dinheiro. O que é importante na política, é o marketing. O que é importante é parecer, mais do que ser... Foi, em parte, esse delírio do lucro fácil que conduziu à crise mundial. As pessoas perderam a sensibilidade para os valores morais e para perceber a importância do que é essencial para o futuro dos seres humanos. Só sentem a necessidade de ganhar dinheiro, de qualquer maneira..."
Obama ganhou as eleições apelando a um sentido de comunidade nacional. "Isso vai ter de surgir, necessariamente, tanto na União Europeia como em Portugal. O regresso às ideologias e às grandes causas que mobilizam as consciências das mulheres e dos homens." "Acredito no progresso, acredito em grandes causas e, sobretudo, acredito na possibilidade de construir um mundo melhor para todos." "Apesar de haver, nos últimos anos, um descrédito permanente da política. Confio nas novas gerações. Conheço-as e aprecio-as. Sabem que houve uma crise provocada, não pelos políticos, mas pelos que queriam minimizar a política. Percebem, por isso, que precisamos de mudar de paradigma, de modelo financeiro, económico, social, político e ambiental. Carecemos de princípios éticos estritos e obrigatórios para que um capitalismo diferente, com dimensão social e ambiental, possa sobreviver... Mas isso só se pode fazer globalmente.Mas tem de ser feito. Sem perda de tempo. Na América, temos a certeza de que há um Presidente que se move nesse sentido. É hoje uma referência universal. Li recentemente o primeiro projecto do relatório da Comissão González [criada para reflectir sobre o futuro da União], que ainda é confidencial, e onde se diz, ainda que de maneira bastante diplomática, que a Europa tem de mudar de paradigma e perceber que, se não mudar, entra em decadência profunda e irremediável. Passa a ser uma pequena península no extremo do continente asiático."
O ideal da construção europeia foi fragilizado com as desigualdades sociais, as manchas de pobreza, o crescimento do desemprego. Mas "Temos uma história que nos honra, uma língua em expansão, a terceira mais falada na Europa. Hoje, há 250 milhões de seres humanos que falam português, em todos os continentes. Se juntarmos a isso os 500 milhões que falam espanhol, percebemos o que a Península Ibérica pode - e deve - representar no mundo: uma força."
Daqui a vinte anos viveremos em democracia? "Confio que sim. A democracia pode ser imperfeita, mas ainda não se inventou nenhum regime melhor...Mas falou em revoltas...É verdade. Sabe o que levou o nazismo ao poder? A revolta das pessoas e o desentendimento dos partidos de esquerda. A luta dos radicais de esquerda, convencidos de que quanto pior, melhor. Uma teoria terrível: levou os sociais-democratas e os comunistas alemães a morrer, lado a lado, nos mesmos campos de concentração. Há lições da História que não devemos esquecer. Não vejo razões para esta luta feroz entre os partidos continuar. Todos têm culpas no cartório. São comportamentos vazios de conteúdo, artificiais. Os nossos líderes - todos -, para se imporem e serem respeitados pelo eleitorado, têm de mudar. Ser mais flexíveis, tolerantes e menos dogmáticos. Ninguém - nenhum partido -, por si só, é o exclusivo detentor da verdade ou do patriotismo. Têm que se entender e respeitar mutuamente. A democracia vive da alternância. E durante as crises - mormente tão graves como a actual - os partidos e os políticos devem fazer um esforço de entendimento."
MS tem a experiência da governação, o que só de per si lhe confere credibilidade, mas ele, como Manuel Alegre, são hoje vozes a solo. Oasis no deserto. Porque no meio de tanta mediocridade de perdeu de vista o que realmente importa: o País. E para quem tanto continua a defender um país a preto e branco e muitos cinzentos, talvez fosse conveniente admitir que as vozes que ainda se fazem ouvir não são a de homens com esse perfil. Provém de homens que nunca puderam ser discretos, porque as suas opiniões beliscam a incompetência instalada, o beneplácito dos políticos áridos, ou como diziamos noutro artigo, os "políticos-eucalipto".