segunda-feira, 8 de março de 2010

Rapazes: uma nova classe baixa das sociedades ocidentais


Os mais recentes dados sobre as diferenças entre meninos e meninas, rapazes e raparigas, homens e mulheres têm provocado calafrios aos comentadores sociais. Investigadores portugueses, ingleses e norte-americanos, constataram que as mudanças das últimas duas décadas no sistema de ensino e de avaliação dos alunos estão a contribuir activamente para afastar da escola um número cada vez maior de rapazes. Uma inversão na tradição. O fenómeno, comum à maioria dos países ocidentais, Portugal incluído, está a alargar o fosso entre rapazes e raparigas no sistema educativo. As raparigas têm melhores notas e estudam mais; os rapazes desistem, muitos no fim da escolaridade obrigatória.
Nos 27 países da UE, só a Alemanha mantém, no ensino superior, valores equilibrados de participação dos dois sexos.
Para o director do instituto britânico de políticas para o ensino superior (HEPI), Bahram Bekhradnia, esta é uma corrida contra-relógio. "Penso que corremos o perigo de estar a criar uma nova classe baixa", constituída só por rapazes, conclui um estudo recente daquele organismo, que confirmou a dimensão crescente do fosso entre raparigas e rapazes, e lançou algumas pistas inquietantes sobre os motivos que explicam o fenómeno. A atenção não se foca nos bons resultados das raparigas, mas as fracas classificações dos rapazes e aquilo que isso implica, o que leva à questão das consequências sociais do insucesso escolar masculino.
"Vamos ter uma geração de rapazes frustrados e excluídos dos sistemas escolares e profissionais por incapacidade de rivalizar com o género oposto", prevê a socióloga da educação Alice Mendonça.
Em países como o Reino Unido e os EUA, a questão já entrou na agenda política. Em Portugal não. Investigação há, estatísticas feitas, medidas nenhumas.
Alice Mendonça sublinha que "os pais têm de ser alertados para as consequências" do que se está a passar, não porque os rapazes sejam menos capazes, mas porque, em grande medida, avisam os investigadores, eles serem ensinados e avaliados num sistema que valoriza as características próprias das raparigas e penaliza as dos rapazes. Nos últimos anos, centrou a sua investigação no insucesso escolar na perspectiva do género. Percorreu todos os ciclos escolares. Conclui que, para os professores, na sua maioria mulheres, o modo como as raparigas se comportam e trabalham é "mais conforme com as suas representações do bom aluno ou aluno ideal" - o conduz a uma "sobreavaliação" das alunas e a uma "discriminação" dos alunos.
Para a sua tese de doutoramento, a socióloga e investigadora do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Lisboa, Teresa Seabra analisou, por seu turno, os resultados escolares de estudantes do 2.º ciclo do ensino básico (11-12 anos). Comprovou que "os resultados dos rapazes e das raparigas se igualavam quando excluía da amostra os alunos com problemas disciplinares", donde conclui que, "como o comportamento afecta de modo significativo o aproveitamento, a pouca conformidade às regras escolares estará na base dos piores resultados dos rapazes". A "atitude", o comportamento dos rapazes, está a comprometer irreversivelmente os resultados da sua avaliação.
Especialista em assuntos de Educação, o sociólogo francês Christian Baudelot defende que aquilo que é pedido pela escola é a interiorização das suas regras, e que os estereótipos sociais dominantes valorizam nos rapazes o desafio, a violência e o uso da força - um "arsenal antiescolar". As raparigas, pelo contrário, são socializadas na família em moldes que facilitam a adaptação às exigências escolares: mais responsabilidade, mais autonomia, mais trabalho.
"Trata-se de um conjunto de competências que as torna menos permeáveis à indisciplina", observa Teresa Seabra.
No ano passado, em Espanha, 80% dos alunos com problemas disciplinares eram do sexo masculino.
Alice Mendonça confirma que as raparigas, "mais conformes às regras escolares", ganham uma "vantagem decisiva" sobre os rapazes quando chega o momento da avaliação. Em Portugal, como também noutros países, o comportamento passou a contar para a contabilização da nota final atribuída aos alunos. Teresa Seabra diz que "No momento actual, a escola é chamada a avaliar também o "saber ser", mas nem sempre foi assim e não tem que assim ser". "É perverso que se avaliem instâncias cognitivas com base em comportamentos. Se um aluno indisciplinado aprende, a sua aprendizagem tem de ser reconhecida", sustenta Nuno Leitão, antropólogo, mestre em Ciências da Educação e director da cooperativa A Torre, um colégio de Lisboa que tem a sua matriz inicial no Movimento Escola Moderna, que propõe uma pedagogia alternativa àquela que é comum aos sistemas oficiais de ensino.
No Reino Unido, o estudo divulgado pelo HEPI, que esteve na base do alerta lançado por Bekhradnia, dá conta de que os alunos do sexo masculino poderão estar a ser vítimas da reforma do sistema de avaliação adoptada em 1982. Antes, para a conclusão da escolaridade obrigatória, eram determinantes as classificações obtidas nos exames finais. Depois de 1982, passou a vigorar um sistema misto, com os exames a contribuir apenas com uma parcela, sendo as outras derivadas do trabalho ao longo do ano na sala de aula e fora dela. Após comparar os resultados antes e depois, o HEPI constatou que os rapazes começaram a ficar sistematicamente atrás das raparigas depois desta reforma. "É preciso reconhecer que o problema existe", alerta. E chama a atenção para o seguinte: "Se o fosso entre os sexos no final da escolaridade obrigatória (e as consequentes diferenças na participação no ensino superior) se deve em grande parte à mudança do tipo de exames e de avaliação - e existem provas de que esta mudança é, pelo menos, parte da razão -, então, nos últimos 20 anos, os rapazes têm alcançado menos do que eram capazes, e isso afectou a sua vida futura."
Em Portugal, como em vários países, a entrada maciça do sexo feminino nas escolas e universidades é um fenómeno relativamente recente, tornado possível pela igualização das oportunidades de acesso. Hoje as raparigas são mais numerosas, valorizam mais os estudos, têm mais êxito. "A diferença de resultados entre rapazes e raparigas tem vindo a acentuar-se, aumentando exponencialmente à medida que acrescem os ciclos de escolaridade, e atinge o seu auge no ensino universitário", refere Alice Mendonça. Logo aos 7 anos, no 2.º ano do ensino básico, há mais rapazes a ficar para trás. À entrada do 2º ciclo, no 5.º ano, as taxas de retenção masculinas têm quase duplicado as femininas. No 7.º, ano de estreia do 3.º ciclo do ensino básico, as percentagens de chumbos entre eles permanecem acima dos 20%. Entre as raparigas, este é também o ano mais complicado, mas nos últimos tempos a taxa de insucesso não foi além dos 17%. No 9.º ano, o último da escolaridade obrigatória, as taxas de retenção das raparigas têm oscilado entre os 11 e os 16%; as dos rapazes nunca estão abaixo dos 16% e têm ultrapassado os 20%. Antes de entrar na Torre, em 1996, Nuno Leitão deu aulas no ensino oficial. Começou pelo 12.º ano, acabou no 2.º ciclo. Lembra-se de os ter à frente, alunos com 15 anos a marcar passo no 7.º ano. De como estavam magoados, encurralados: "Já não são repetentes, são resistentes à escola."
Continuam a nascer mais rapazes do que raparigas (em cada 100 nascimentos, 105 são do sexo masculino). Por causa disso o seu número é superior nos primeiros anos de escolaridade. Mas, devido a taxas de retenção muito superiores às do género oposto, e também porque são largamente maioritários entre os jovens que abandonam precocemente a escola, em grande parte por causa da experiência de insucesso quando lá estão, em Portugal os rapazes começam logo a estar em minoria no 9.º ano.Para além de ser uma resposta ao fracasso experimentado na escola, este abandono precoce, maioritário nos rapazes, é também fomentado, em Portugal, por um "mercado de trabalho que procura mão-de-obra barata (desqualificada), especialmente masculina", observa Teresa Seabra. Pelo contrário, as raparigas vêem nos estudos "um modo de assegurar a sua independência enquanto adultas". É uma forma de emancipação. No conjunto do ensino superior, já representam mais de 50% dos inscritos e ultrapassam os 70% em cursos como os de Direito ou os que estão ligados à saúde. Entre os que conseguem chegar ao fim de um curso e obter uma licenciatura, 60% são mulheres. Estudos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) confirmam que uma pessoa licenciada tem muito mais hipóteses de vir a auferir um rendimento superior ao de uma que o não seja.
Em Portugal, no caso dos homens, aquela organização situou a diferença nos 8%. Num artigo publicado no jornal britânico Observer, Bahram Bekhradnia lembra outras vantagens de ter um diploma: sabe-se que "a educação superior acarreta benefícios sociais e académicos", que "uma pessoa que esteve na universidade tende a apresentar uma melhor saúde física e mental", que esta formação e experiência têm "um enorme efeito socializante". No passado, estes benefícios foram negados à maioria das mulheres. Agora, são os homens que, "ao não irem para a universidade em tão larga escala", estão a ser privados disto tudo. "Penso que é uma verdadeira desgraça", diz Bekhradnia.
No Reino Unido, para igualar a taxa de participação feminina, teria sido preciso que, no ano passado, entrassem, nas universidades britânicas, mais 130.000 estudantes do sexo masculino.
"Se os professores não aprendem a lidar com as diferenças, os alunos acabam por chumbar. E isto verifica-se sobretudo com os rapazes", avisou, numa entrevista à Visão, o filósofo norte-americano Michael Gurian.
Para além das diferenças entre os géneros que são culturalmente induzidas, vários estudos neurológicos demonstraram que as raparigas têm mais apetência para a comunicação verbal e para movimentos finos, "tarefas" a cargo do hemisfério esquerdo do cérebro, que se desenvolve nelas bem mais cedo do que nos rapazes. E os rapazes têm mais apetência para tarefas visuo-espaciais, uma vez que o hemisfério direito, "construtor e geómetra", é mais activo no sexo masculino. "Têm vias e tácticas diferentes para aprender o mesmo", disse ao diário espanhol El País o neurologista Hugo Liano. O projecto PISA, lançado pela OCDE para medir a capacidade dos jovens, de 15 anos, na literacia em Leitura, Matemática e Ciências, demonstrou, com a série de 3 provas já realizadas nos 32 países-membros, que os melhores resultados a Matemática tendem a ser alcançados por alunos provenientes de famílias em que os níveis de educação e o status profissional são mais elevados. Mas, em média, foram os rapazes que apresentaram melhores resultados em Matemática e Ciências e as raparigas em Leitura.
Os exames nacionais do 9.º e 12.º ano têm, em Portugal, confirmado esta tendência. Mas no ano passado a média das raparigas nos exames de Matemática do secundário foi superior à dos rapazes. E esta inversão poderá não ser esporádica, avisa Alice Mendonça: "O aumento da discrepância na capacidade de leitura entre os sexos faz com que as raparigas comecem a ultrapassar os rapazes nestas matérias." Por enquanto, e apesar de maioritárias no ensino superior, elas continuam a ser a minoria nos cursos de Informática, Arquitectura e nos de Engenharia Técnica. Separá-los resulta? Para conter a maioria feminina, em Portugal, há alguns anos, houve quem chegasse a propor a introdução de quotas para homens nas faculdades de Medicina. Em países onde o debate está lançado, há quem defenda o regresso às escolas separadas. Mas são mais os que propõem estratégias de ensino diferenciado que coabitem no mesmo espaço. Seja através de aulas separadas para as disciplinas onde as diferenças são maiores, seja através de reforços específicos de certos conteúdos pedagógicos. Nos Estados Unidos, onde os rapazes estão a abandonar o equivalente ao ensino secundário a um ritmo superior ao das raparigas (em cerca de 30%), as escolas oficiais foram autorizadas a abrir turmas diferenciadas. No Reino Unido, as escolas do pré-escolar receberam instruções do Governo para reforçarem os exercícios de escrita com "materiais engraçados", junto dos rapazes de 3/4 anos, de modo a reduzir as fortes diferenças entre os sexos na escrita e leitura, sentidos pouco depois, à entrada na primária. Iniciativa contestada por especialistas de desenvolvimento infantil que chamam a atenção para o facto de muitas crianças, especialmente os rapazes, não terem ainda adquirido, nestas idades, as capacidades de motricidade fina necessárias ao desenvolvimento da escrita. Alice Mendonça vê a adopção de estratégias diferenciadas nas escolas como "um novo desafio social" a que urge deitar a mão.
Em Portugal, não fazem parte do programa do Governo. "Não existe qualquer orientação expressa pelo Ministério da Educação sobre a abordagem diferenciada por género, como estratégia de aprendizagem." O ministério lembra que a Lei de Bases do Sistema Educativo, aprovada em 1986, atribui ao Estado a responsabilidade de "assegurar a igualdade de oportunidade para ambos os sexos", e que, no ensino pré-escolar, "cada educador tem autonomia e responsabilidade para gerir o currículo", devendo "estimular o desenvolvimento da criança tendo em conta as suas características individuais". Nuno Leitão concorda que, no geral, e não só no pré-escolar, os programas oficiais deixam um bom espaço de manobra: "É o professor quem decide, na sala de aula, a organização das aprendizagens. Pode fazê-lo optando pela que lhe dá mais jeito, mas também pode escolher, em vez disso, a que é melhor para os alunos." Defende que é preciso sensibilizar as escolas para as diferenças entre os dois géneros, mas não apoia a adopção de estratégias diferenciadas. Na sua escola, que funciona do pré-escolar ao 2.º ciclo, incentivam-se as perguntas dos alunos (uma "pedagogia preciosa"), o debate colectivo, as experiências feitas pelas próprias crianças (em vez de estarem a ver o professor a fazê-las), a curiosidade, a memorização. "Dá-se a oportunidade aos alunos de conseguirem, de forma autónoma, construir um sentido para as coisas, que é o que eles procuram antes de mais, criando assim uma motivação intrínseca que os leva a querer saber mais."É quase uma ilha. E não só pelo facto de não se registar ali o hiato de resultados entre raparigas e rapazes que anda a sobressaltar meio mundo." Esse hiato, frisa Teresa Seabra, é igualmente fomentado pelos modelos propagandeados pelos media: "Ser bom aluno, sendo rapaz, funciona, em alguns grupos de pares, como um handicap. Se os rapazes passarem a interiorizar, maioritariamente, a ideia de que desafiar a escola e ser mau aluno é "normal", estarão criadas as condições para que os homens sejam, amanhã, uma nova classe baixa das sociedades desenvolvidas ocidentais."