domingo, 28 de março de 2010

O Visto do Tribunal de Contas: Contará (mesmo e tanto) para o controlo dos dinheiros públicos?!

A meio da discussão do OE/2010 veio a lume reduzir, ou não, o montante a partir do qual um contrato público se encontra obrigatoriamente sujeito a visto prévio do Tribunal de Contas. De acordo com a Lei do TC, o valor abaixo do qual os contratos públicos estão isentos de visto deve ser estabelecido, em cada ano, pelo OE. O valor actual, e que se manterá para 2010, é de € 350.000. O que significa que os contratos públicos cujo preço seja inferior àquele valor produzem de imediato todos os seus efeitos, incluindo os financeiros, sem supervisão a anteriori pelo TC. A partir daquele montante, os contratos podem ter eficácia, incluindo rectroactivamente à data do próprio contrato, ou seja, pode haver execução material do objecto do contrato, mas a entidade adjudicante/contraente público não pode conferir ao contrato, até o visto lhe ser concedido, eficácia financeira, i.é., não pode fazer qualquer pagamento ao co-contratante. A norma do OE/2010 que isenta as obras públicas (e quaisquer outros contratos públicos) do visto até €350.000, foi objecto de controvérsia, mas após os argumentos do PS e do Governo, que alertavam para o risco de paralisação dos serviços, sobretudo, das autarquias, e da inexequibilidade das pequenas obras e dos contratos públicos de menor valor, passou. Com uma alteração: a inclusão de uma norma de protecção contra a possibilidade de ser feito um falso desdobramento de obras de montantes mais elevados, para evitar a necessidade de um visto prévio (de resto desnecessária porque o Código dos Contratos Públicos impede a divisão em lotes de contratos com o mesmo objecto contratual, visando ludibriar as regras de contratação pública aplicáveis, designadamente o procedimento adjudicatório, em função do valor). Seria bom não esquecer que a fiscalização prévia não esgota os meios de controlo do TC, já que este pode, em sede de fiscalização concomitante ou sucessiva, apreciar a legalidade financeira dos contratos celebrados e, sendo caso disso, determinar a responsabilização do agente que tenha infringido as regras da realização de despesa pública.
Registe-se, igualmente, que a comissão de Orçamento e Finanças aprovou hoje a proposta do PSD para isentar de visto prévio do TC as empreitadas destinadas à reparação dos danos causados pelas intempéries na Madeira. Proposta aprovada com os votos favoráveis de todas as bancadas, à excepção do PCP, que se absteve, no debate na especialidade. “Sem prejuízo da fiscalização sucessiva da respetiva despesa, ficam dispensados da fiscalização prévia do Tribunal de Contas os contratos de empreitada de obras públicas e os contratos de fornecimento e de aquisição de bens e serviços, nomeadamente de estudos e projetos, destinados à reparação, reconstrução e outros decorrentes das intempéries ocorridas na Região Autónoma da Madeira", prevê a proposta. A proposta inclui um outro artigo que permite aplicar o regime excepcional de contratação pública para fazer face aos danos causados pelo mau tempo na Madeira.
Até porque com as hesitações, o pouco à-vontade e a inabilidade no manuseamento no (novo) Código dos Contratos Públicos que o TC vem demonstrando, um processo que lhe seja submetido para visto, desde que afastado dos mais simplistas e com alguma complexidade, andará para cá e para lá com inusitados e repetidos pedidos de esclarecimentos até que, não poucas vezes, o visto tácito seja assumido como a solução que menos põe em cheque a competência dos pouquíssimos auditores do visto e que parece ser a mais prudente para o TC, que não se costuma pronunciar sobre os aspectos mais intrincados da lei, sobre os quais a (pouca) doutrina e a (escassa) jurisprudência ainda não se debruçou e sobre outros tantos com os quais ninguém se quer comprometer. Estejamos mesmo certos que, um dia destes, alguém se arriscará a defender que a fiscalização prévia, numa Democracia real e assumida, após a entrada em vigor da lei de responsabilidade civil extracontratual do Estado - a Lei nº 67/2007 - e assim que haja vontade política para se desencadearem os mecanismos legais que intentem uma efectiva responsabilização dos gestores públicos, com sanções ao nível das cessações das comissões de serviço e da perda de mandatos, poucas razões (?) subsistem para se impor a manutenção de um instituto que muitos apelidam de "suspeição prévia". O que, de resto, não será uma grande revolução se atentarmos no número de processos intentados para efeitos de aplicação do regime de responsabilidade financeira que obtiveram condenação ou, nos casos daqueles que lá chegaram, na multa simbólica com que foram sancionados os prevaricadores. A verdade é que o sistema emperra e falha, meus senhores, e como concordará João Cravinho, infelizmente, não chega como garante de legalidade. Consciencializar os gestores públicos de que se lhes exige uma good governance, que a fiscalização das entidades de controlo não se resume a uma operação administrativa-burocrática e que as penalizações aplicáveis interferem com as suas ambições políticas, com a continuidade dos seus cargos, e lhes saem do próprio bolso seria muito mais eficiente, parece-me. Porque, falando em controlo dos dinheiros públicos, o Visto não conta assim tanto. Conta até pouco, muito pouco. Mas quem sou senão uma ex-auditora do TC, que - por acaso - até exerceu funções no visto?