sexta-feira, 26 de março de 2010

Academia de Estudos Laicos e Republicanos: Elogio à mulher de Angola!


Academia de Estudos Laicos e Republicanos, 26, 19 h, Padaria do Povo de Campo de Ourique.
Hoje, é dia do galo. É Dia do homem. Não porque estamos a 26 de Março, mas porque é sexta-feira. Todas as sextas-feiras em Angola são Dia do Homem. À sexta-feira os homens ficam livres para tudo, por tudo e sobre tudo. A 2 deste mês, o coração da mulher angolana regressou séculos atrás à alma da Rainha Ginga. O único dia em que Angola se lembra da mulher. É o dia da Mulher de Angola. E elas reincarnaram a alma daqueloutra Rainha. As negras, algumas quase escravas, resgataram aquela sua forte personalidade, a sua visão política e de nação, o seu não à escravidão. Sabem que sem o poder das mulheres, ainda que oculto e imperceptível, não se constrói uma nação.
As mulheres não são poupadas pela sociedade angolana. São elas quem trabalha, fora e dentro de casa, elas assumem o sustento do lar. Mas não são chefes de família. Está por detrás delas o homem que serviu para fazer a guerra civil durante mais de 30 anos, que se aproxima vezes de mais da lúxuria de Baco, que conhece bem as regras de todos os jogos que o regem, e que se dedica à nobre arte da reprodução.
As mulheres povoam o meio rural, fazem-se à violência dos campos, reinventam e preparam a mandioca como um manjar dos deuses, e tratam da família, mas as decisões são privilégio do chefe da aldeia, um homem, normalmente o ancião, e o seu concelho, com mais homens.
Na cidade, amontoam-se as mulheres, vendem de tudo nos mercados e na rua, andam com o comércio à cabeça, com um filho atado ás costas e com outro na barriga.
África mantém este anacronismo: elas são o pilar de suporte da sociedade, assumem os deveres e sonegam-lhes os direitos.
Em Maio de 1924, teve lugar o I Congresso Feminista e de Educação, em Portugal, com a presença do Presidente da República, Manuel Teixeira Gomes, e a participação de várias individualidades políticas e associativas, apresentadas 25 teses, mas entre as mulheres que se destacaram (como Adelaide Cabete) destacou-se uma professora de Angola, Domingas Lazary do Amaral, que falou n’A Educação dos indígenas nas colónias e suas vantagens’. A intervenção feminina adensou-se, com o papel desempenhado pelas professoras a evidenciar-se, no reforço do republicanismo e na construção de um movimento feminista organizado, e contou magnificamente com esta mulher que já antes provocara as hostes políticas, quando denunciou o regime penitenciário aplicado às mulheres condenadas a degredo.
Estavam longe os tempos de Angelo Soliman. Mas ela insistia que lutar era preciso.
Foi uma pioneira e consagrou-se um exemplo para as mulheres negras. Que permanecem em luta, que assumem e traçam o seu destino histórico numa nova sociedade que pretendemos construir: sem discriminação de qualquer natureza, seja sexual, social, racial ou de classe.
Durante décadas, o movimento feminista trabalhou com a idéia da "irmandade" das mulheres; no pressuposto de que a opressão da mulher (ou, como se diz hoje, a opressão de género), atingia de forma igualitária e indiferenciada todas as mulheres. Graças à presença e ao trabalho de feministas negras esta idéia está superada. Hoje, é um ponto pacífico que, embora a opressão de género seja um denominador comum às mulheres que integram sociedades patriarcais, este é um problema sentido de forma diferentemente porque entre nós, as mulheres, continuam a existir diferenças de classe e de raça. Porque o racismo só é comum às mulheres "não-brancas". Fala-se hoje em womanismo: um movimento de luta pelas mulheres do mundo inteiro para conseguirem a igualdade entre si. Dizem-me que o feminismo negro é diferente do feminismo branco, porque é muito mais trágico. Admito. A mulher negra foi sempre mais oprimida e massacrada que a branca, vive do seu próprio suor há muito mais tempo, responde pela sua própria família desde épocas imemoriais, e a luz do túnel negro está muito mais longe. A luta das mulheres negras contra o racismo e suas manifestações através do preconceito e da discriminação racial e contra as contradições presentes na relação entre os géneros tem feito progressos notáveis no campo dos direitos sociais e humanos. Contudo, a realidade demanda uma ampliação desta luta, com capacidade de apreender na dinâmica social os antagonismos presentes e inerentes a ela. No que respeita à luta pela vida, compreendida na resistência quotidiana que acolhe “... é a mulher negra anónima, sustentáculo económico, afectivo e moral da sua família, aquela que desempenha o papel mais importante. Exactamente porque, com sua força e corajosa capacidade de luta pela sobrevivência, transmite às suas irmãs mais afortunadas, o ímpeto de não recusarem à luta pelo seu povo. Mas, sobretudo porque, como na dialéctica do senhor e do escravo de Hegel – apesar da pobreza, da solidão quanto a um companheiro, da aparente submissão, é ela a portadora da chama da libertação, justamente porque não tem nada a perder”. (Gonzalez: 1982: 104). António Spínola falou sobre a luta travada pelas mulheres angolanas: “Em Angola as mulheres pretendem chamar a atenção para o seu papel e a sua dignidade, bem como levar a sociedade a ter uma consciência social do valor da pessoa, a perceber o seu papel e contestar e rever preconceitos e limitações que têm sido impostos à mulher. Como mães, esposas, filhas, ou simplesmente como mulheres, elas têm lutado pela sua emancipação, combatendo o analfabetismo e os actos de violência no género e na família. Elas estão, sobretudo, firmemente inseridas no processo de reconciliação e reconstrução nacional”.
Nascer-se mulher em África é uma desvantagem e todas as medidas voluntaristas com vista à paridade de género ainda não são suficientemente eficazes. As mulheres são destituídas de voz em muitas sociedades. Sendo-lhes recusado o poder da palavra, o seu silêncio torna-as quase invisíveis. Uma mulher bonita tem de ser forte. Uma mulher negra tem de ser mesmo muito bonita porque tem de ser muito mais forte.
O papel que antes cabia às professoras, e que a nossa Domingas tão bem cumpriu, é hoje assumido pelas artistas. Actualmente, a arte é a nova arma que lhes permite conservar e alargar a sua zona livre de intervenção. As artistas africanas exploram os desafios do mundo sem concessões. Vigilantes, exumam demónios, abatem preconceitos, destroem tabus e não receiam revelar os nossos medos mais sombrios. A sua arte é uma metáfora, uma transgressão contínua de tudo aquilo que é interdito. E, mesmo quando lírica ou delicada, assinala uma ruptura radical com a ideia de uma arte africana ‘feminina’ que se pressupõe ser ‘bonita’ e nunca perturbadora ou exigente. Estas exímias artistas africanas elevam o debate em torno da arte contemporânea a um nível superior. Deste modo, prestam homenagem à memória das batalhas perdidas e aos sonhos fracassados de gerações de mulheres africanas sacrificadas em prol das prioridades nacionais e em nome da estabilidade social. É importante continuar “a subir a corda”, engendrando novos caminhos, melhorando a participação crítica das mulheres negras, tornando visíveis as lutas antes silenciosas. Ouvem-se, refugiadas no ermo da noite, as vozes da Rainha Ginga e da nossa Domingas. Creio mesmo que hoje se fizeram nós da nossa corda. E que perceberam que os espíritos livres nunca morrem e que a união da nossa força vem daquela que foi a força delas também.
Às mulheres angolanas aqui presentes. “Pela estrada desce a noite... Mãe-Negra, desce com ela... Nem buganvilias vermelhas, nem vestidinhos de folhos, nem brincadeiras de guisos, nas suas mãos apertadas. Só duas lágrimas grossas, em duas faces cansadas. Mãe-Negra tem voz de vento, voz de silêncio batendo nas folhas do cajueiro... Tem voz de noite, descendo, de mansinho, pela estrada... Que é feito desses meninos que gostava de embalar?... Que é feito desses meninos que ela ajudou a criar?... Quem ouve agora as histórias que costumava contar?... Mãe-Negra não sabe nada...Mas ai de quem sabe tudo, como eu sei tudo Mãe-Negra! Os teus meninos cresceram, e esqueceram as histórias que costumavas contar... Muitos partiram p'ra longe, quem sabe se hão-de voltar!... Só tu ficaste esperando, mãos cruzadas no regaço, bem quieta, bem calada. É tua a voz deste vento, desta saudade descendo, de mansinho pela estrada.”
E aos homens angolanos que aquí estão. O que se espera deles? Que cumpram a profecia-poesia: “Da terra que possui mulheres excepcionais Somente nascem homens excepcionais.”