terça-feira, 2 de março de 2010

Homem-Marido: Uma nova espécie/um novo estado?

Uma iraniana conseguiu que o tribunal condenasse o marido a comprar-lhe 124 mil rosas vermelhas, cujo preço é equivalente a €133.000. A mulher queixou-se da avareza do marido durante os dez anos de casamento e decidiu reclamar o seu dote para o castigar. Um homem foi condenado no Brasil a pagar à ex-mulher uma indemnização de cerca de €7.600, por ter cometido "infidelidade virtual", tendo o tribunal baseado a sentença numa troca de e-mails. Um tribunal rabínico condenou um marido a dar assistência sexual à mulher para sempre.
O papel do homem-marido que agora vem merecendo tanta curiosidade jurisprudencial, não é uma preocupação nova, e mereceu atenção desde as primeiras décadas do século XVI -na mesma altura em que os autores literários e filosóficos se dedicaram à educação feminina e à formação da mulher casada com vista a um equilíbrio das suas funções familiares, domésticas e devocionais. A valorização da instituição matrimonial e do estado dos casados conjugada com as exigências que, cada vez mais, se vinham fazendo à casada acabaram por desenvolver uma maior consciência dos deveres não só da mulher, mas também do marido, no pressuposto de que um bom casamento dependia da harmonia, da complementaridade e do cumprimento das responsabilidades dos casados um em relação ao outro e a toda a casa. As responsabilidades e os deveres próprios estavam, porém, diluídos no seu poder de "senhor". A preocupação dos deveres do homem, como marido, está patente na Letra para Mosén Puche (1524) de Fr. António de Guevara, na qual este franciscano, depois de enunciar as "propriedades de la muger casada", afirmou que "las propriedades del hombre casado son que sea reposado en el hablar, manso en la conversación, fiel en lo que se le confiare, prudente en lo que aconsejare, cuidadoso en proveer su casa, diligente en curar su hazienda, sufrido en las importunidades de la muger, celoso en la crianza de los hijos, recatado en las cosas de honrra, y hombre muy cierto con todos los que trata". Na Península Ibérica, merece um lugar de destaque, o Norte de los Estados de Francisco de Osuna, em especial à segunda parte, na qual "Villaseñor" representava "todos os casados" (igualmente, na literatura, e em especial no teatro, o Auto da Índia de Gil VICENTE falava d'"A ausência do marido e o "des-governo" da casa na época dos descobrimentos), e em que Osuna acusou o marido de se ausentar, sem autorização da esposa, durante longos espaços de tempo ou para longes terras, deixando a esposa "desprotegida", sobretudo em relação a tentações como a do adultério. Mas Osuna não se ficou apenas pela condenação "espiritual" do casado que "abandonava" a sua mulher e a sua casa. Essa condenação esteve na razão directa da exaltação da harmonia e da complementaridade dos esposos, bem como na íntima relação entre a vida espiritual com a moral e social dos casados. Assim o fez João de Barros no Espelho de Casados, lembrando que "posto que aja muitas vertuosas que esperam seus maridos ausentes. na Corte. nas Indias e na Guerra. Comtudo estas tem muitos inconuenientes pera o nam serem com muitas emportunações e neçesidades que lhe ocorrem". Assim o fez também Pedro de Luján nos Coloquios Matrimoniales, insinuando que o adultério era frequente quando os maridos "van a las Indias y dejan las mujeres mozas y hermosas", como o fariam também outros autores de finais do século e do século XVII. Mas, antes daquele mestre do "recogimiento", poucos tinham sido tão incisivos e tão exigentes face não só às ausências físicas do marido, mas também às ausências de notícias que mantivessem viva a chama da sua memória e a expectativa do regresso... Pedro de Luján - Coloquios Matrimoniales - pela boca de uma mulher, chamou a atenção para algumas injustiças de que elas se queixavam - foi tão longe como aquele espiritual franciscano, talvez devido às suas fontes principais (Erasmo, Guevara...), que contavam com a cedência final da esposa... Embora Luján, pela boca de Doroctea, viesse a lembrar que "En la ley de Cristo, la fidelidad que debe la mujer al marido, esa misma debe el marido a la mujer", também admitiria que "en la ley civil tienen más poder los maridos que no las mujeres, no para ofender, mas para castigar".
Entre os autores portugueses, salienta-se a posição do Dr. João de Barros que, no Espelho de Casados, embora não tenha adoptado perspectivas inovadoras em relação aos diferentes aspectos do problema, referiu e sintetizou os principais problemas do casamento e os deveres do marido, lembrando convir "ao marido Negoçear. Tratar. Ganhar. Defender. Demandar. e fazer outras cousas que som neçesarias pera manter sua casa", reafirmando, assim, as suas funções globais de "senhor"; mas lembrou, igualmente, obrigações mais concretas e deveres mais específicos enquanto marido, tanto para manter o seu poder, como para "orientar" a esposa. Algumas das indicações mais importantes relativas aos deveres do marido e à "defesa" da mulher encontramo-las na "Reprouaçam e Resposta. contra o Sexto fundamento da Incontinençia. Onde se proua serem menos continentes os homens que as molheres...", um dos capítulos mais longos da Terceira, que aborda a questão do adultério. Aqui, o Dr. João de Barros mostrou-se especialmente exigente em relação ao comportamento conjugal do marido, lembrando que "tanta obrigaçam tem o marido quanto a Deos como a molher de ser casto e tanto peca" e que "quem auer correger os outros hade ser mui corregido", insistiu, sobretudo, na importância de o marido saber manter a sua autoridade e o respeito - que implicava amor - da mulher; fê-lo, insistindo não só no seu amor à mulher (repetindo quase D. Duarte) - "Eu te mostrarei como te ame tua molher. sem erua. sem feitiço. e sem mezinha. Se queres ser amado ama"-, mas também no cumprimento das suas obrigações complementares de "senhor da casa" e de marido: "Porque som as vezes alguns tam floxos que deixam tudo a disposiçam da natureza: e nam olham o modo que nisso se deue ter. e deixam em sua casa fazer a molher o que quer. e a negligencia grande he causa de muito mal". Do seu ponto de vista, seria devido a esta negligência, à falta de vigilância - que era também falta de presença - que as alcoviteiras - figuras tão exemplarmente retratadas e recriadas, especialmente depois de La Celestina, pela literatura peninsular dessas décadas - se infiltravam nas casas e nas famílias; por isso lembrou o Dr. João de Barros - à semelhança do que fizera Vives para a donzela - que "olhara o homem de sua casa pollas molheres que la entrarem desconhecidas. pera que lhe nam aconteça como a Pleberio com Celestina. Nem se fie o marido muito em compadres. Nem em hospedes...". Considerou que "per outra rezam o mal das molheres proçede por culpa de seus maridos algumas vezes. porque ha muitos que nam tem cuidado dellas nem as prouem do que lhe faz mingoa e as deixam pasar e sofrer muita maa vida. e com a proueza as vezes fazem o que nam fariam sem ella (...) E o marido hade prouer a sua molher do neçesareo. porque entam tera
elle tambem culpa...". Esta passagem do Espelho de Casados realça, assim, a dupla face do "ofício" do marido. As suas responsabilidades "económicas" - respeitantes à "casa" e à "família" - não podiam ignorar as competências femininas no governo da casa. Ou seja, o marido deveria "provê-la" do que lhe fazia "míngoa" - uma alusão à pobreza das mulheres... - para que ela se não visse instada a recorrer a auxílios fora da "casa", o que se traduziria não só num perigo para a boa "fama" da casada, mas também numa ameaça à vida conjugal - e, logo, também à fidelidade, à harmonia, ao comportamento virtuoso dos casados... Esta preocupação com a "educação" do marido resultava ainda de se lhe reconhecer o poder e o dever de ser, não só enquanto "senhor", mas também como marido e pai - e, em primeiro lugar, para a mulher e para os filhos -, porque só assim desempenharia o papel de principal "educador" da mulher: informando-a dos seus deveres e dos limites da sua "liberdade" como esposa e como mãe, repreendendo-a em todos os actos e momentos em que tentasse ultrapassar as fronteiras impostas pela sua "condição", pelos seus deveres e, inevitavelmente, pelos critérios do marido. Só assim, nesta perspectiva, se evitariam situações como a que referiu o franciscano Juan de Dueñas - a mesma em que se encontrou Pero Vaz na Farsa de Inês Pereira - segundo as quais as mulheres se casariam com "maridos ydiotas simples: y de pouco saber", com esperança de "gouernar y regir la casa: tener mando y palo: y no solo a sus criados y criadas: mas avn a sus maridos han de traer de baxo de sus pies enseñorear y mandar".
Neste contexto, os conselhos sobre a "educação" da esposa pelo marido e o cumprimento dos "deveres" deste iam no sentido da conservação do seu poder - com contrapartidas - e da permanente vigilância em relação aos perigos que o comportamento pouco "controlado" dela poderia trazer para a "honra" dele. A insistência nesta vigilância não esquecia o respeito devido à esposa e ao seu "espaço" e "poder" próprios. Mas era um conselho recorrente, com acentos mais ou menos dramáticos e/ou mais ou menos específicos, conforme os aspectos em causa. Especialmente significativo nos parece o aviso de Guevara no seu Relox: "Loo, y aprueuo los maridos a sus mugeres que las amen, que las consuelen, que las regalen, y que dellas fien; pero afeolo, y condenolo, que las mugeres se anden de casa en casa a visitar, y que sus maridos no ossen, o no quieran en esto las contradezir (...) porque (...) mucha ocasion dan a que las tengan por vanas". Também Juan de Dueñas, lembrando que "al hombre ni le era aparejada señora ni sierua mas compañera" e que, por isso, todos os maridos as deviam tratar "no como a estrañas pues no lo son mas como a compañeras en muy loable y santa conuersacion", acentuou, por outro lado, que "en esto les quiero hazer preheminencia: que ellos sean los que manden y rijan la casa assi como señores y ellas les sean obedientes con temor reuerencial".
O que estes autores não ignoraram ou não silenciaram era a utilização acriteriosa ou sem contrapartidas do poder e de prerrogativas do marido que geravam situações e injustiças que contribuiam para tornar mais difícil e menos controlável a relação conjugal e a própria instituição matrimonial. Por isso, a teologia moral dedicou alguma atenção aos exageros do exercício desse poder pelo marido, como a que resultava da autoridade do marido para impor atitudes, ou para as negar, à mulher, "legitimando-lhe" os castigos corporais, aspecto retomado. Francisco de Osuna preocupou-se com a realidade e com algumas situações concretas de abuso de poder por parte do marido, referindo-se aos "açoutes"- quando "Villa señor" perguntou "como se ha de auer el marido con la muger terrible" - Osuna, pelas palavras de "El Auctor", acentuou que "ninguna ley da al marido licencia de herir a su muger: y por esso ay leyes que le ponen pena si la açota sin que aya causa para ello: e ya que aya causa para ello a de ser grande: y los açotes pequeños: no tantos: ni tan grandes como los dieras a tu hijo". Para evitar exageros, mas também para ilustrar algumas situações reais, Osuna disse que "no sean graues los açotes: ni con desonrra: que a penas acaesce entre los nobles: y entre los aldeanos diria que es quando ella sale a baylar con alguno que le vedo su marido...". Outra situação de abuso do poder pelo marido era a proibição, sem razões aparentes, de algumas "distracções" e, mesmo, de práticas religiosas elementares, como a ida à igreja. E isso era o que, segundo João de Barros, faziam os ciosos, havendo "muitos que se queimam disso tanto que ho causam a suas molheres. Porque as tem gardadas que nam vam a janella. nem a porta, nem a jgreja. nem a folgar. e dos ventos as guardam e se temem" e outros "taes que em todo hum anno nam deixam sajr a molher nem pera jgreja. e dizem estes que ha molher nam hade sajr fora de casa senam quando casa e quando morre". Mas, com a denúncia destas situações - algumas postas em ridículo -, com a diversificação dos conselhos para os maridos (apoiados no modelo do "bom casamento"), com a explicação dos benefícios da complementaridade dos casados no governo da casa ou com vários outros artifícios pedagógicos, foram-se sedimentando algumas fronteiras a esse poder, com conselhos genéricos, avisos, lembranças, de que um dos mais firmes foi o do franciscano Juan de Dueñas no Espejo de Consolación de Tristes: "Porque enlo que he aqui dicho y traydo por exemplo no tomen algunos maridos demasiada osadia y loco atreuimiento: de tratar indeuida y malamente a sus mugeres trayendolas debaxo de sus pies".
Expurgando o que a posição tem de temporal e contextualmente historico, existem algumas preocupações com os deveres do homem-marido que hoje, mercê, eventualmente, da própria evolução dos papeis sociais cometidos aos homens e às mulheres, tendencialmente paritária, e, por consequência, da paridade intermatrimonial, fica alguma perplexidade sobre a pertinência das preocupações nos tempos de hoje. Algo que dá que continua a dar que pensar.