quarta-feira, 3 de março de 2010

A Qualidade da Democracia em Portugal: Um estudo

Conclui agora a leitura de "A Qualidade da Democracia em Portugal: A Perspectiva dos Cidadãos" - Relatório inicial de um estudo promovido pela SEDES, com o apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e da Intercampus, de Pedro Magalhães (ICSUL), de Julho de 2009.
O relatório conclui que os estudos resultantes de inquéritos por questionário aferem o grau de satisfação dos portugueses com a democracia e o grau de legitimidade que conferem ao regime. Afirma que, pelo menos desde os finais dos anos 80, uma percentagem elevada e estável dos portugueses não contempla a existência de alternativas sérias à Democracia enquanto regime (Morlino e Montero 1995). E que Portugal é um dos países da Europa Ocidental cujos cidadãos se sentem mais insatisfeitos com o funcionamento do seu regime democrático (Torcal e Magalhães 2009).
O estudo visa responder às seguintes questões: o que está por detrás dessa insatisfação? Em relação a que aspectos e dimensões da qualidade da democracia portuguesa somos, afinal, mais e menos críticos?
Com base no esquema teórico preconizado pelo Democracy Barometer for Established Democracies (Bühlmann, Merkel e Wessels 2007), o estudo desenvolveu um conjunto de indicadores para medir as avaliações dos portugueses sobre a qualidade da democracia em nove dimensões: "o gozo de liberdades cívicas e direitos políticos; o acesso à justiça e a igualdade perante a lei; a igualdade de oportunidades de participação politica; a percepção de que os eleitos atendem às expectativas e exigências dos cidadãos; a disponibilidade de informação politica imparcial e pluralista; o funcionamento das eleições como mecanismo de responsabilização e de representação; a existência de “freios e contrapesos” no sistema que impeçam abusos de poder; e a percepção de que as decisões politicas são tomadas sem pressões externas ao processo democrático."
A maioria avalia o regime positivamente quanto ao exercício das liberdades de voto, de associação e de expressão, e da capacidade das eleições para recompensar e punir os governos pelo seu desempenho. Um aspecto em que não existem clivagens sociais e politicas, independentemente da posição dos eleitores na estrutura social e/ou das suas preferências politicas e ideológicas.
A avaliação é negativa, quanto à justiça e do Estado de Direito, em que uma expressiva maioria (+ de 2 em cada 3 eleitores) considera que diferentes classes de cidadãos recebem tratamento desigual em face da lei e da justiça, e se sente desincentivada de recorrer aos tribunais. Incluindo no domínio da “responsabilização horizontal” – um sistema de freios e contrapesos que evite abusos de poder – a confiança dos cidadãos parece deslocada para a Presidência da República e, em menor grau, para um órgão designado politicamente, o Tribunal Constitucional. Acresce que a independência do poder judicial em relação ao poder politico não é um dado certo.
Avaliação muito má para a “responsividade” do sistema politico (parâmetro que mede até que ponto a classe politica em geral e os governantes em particular atendem às expectativas, preferências e exigências dos cidadãos), em que mais de 2 em cada 3 eleitores entendem que não têm qualquer influência nas decisões politicas, que os políticos se preocupam exclusivamente com interesses pessoais, que a sua opinião não é tomada em conta nas opções dos governantes e de que não há sintonia entre o que é verdadeiramente prioritário para o país e aquilo a que os governos dão prioridade.
Avaliação igualmente negativa para as qualidades do sistema eleitoral. A maior parte dos inquiridos considera que o governo está condicionado por factores externos (situação económica internacional, poderes económicos e prioridades de outros governos) em relação aos quais a responsabilização politica democrática é impotente. E detectam, especialmente as mulheres, uma tendencial desigualdade nas oportunidades reais de participação politica em Portugal.
Indagando sobre as diferentes dimensões de avaliação da qualidade do sistema democrático em Portugal, verifica-se que estão mais relacionadas com a (in)satisfação geral dos cidadãos com o sistema, embora os dados revelem que as dimensões directamente ligadas ao exercício das liberdades cívicas e politicas e ao processo eleitoral não ajudam a explicar o (baixo) grau de satisfação genérico dos portugueses com a democracia, incluindo não apenas as dimensões avaliadas mais positivamente pelos indivíduos (“liberdades” e “responsabilização politica”) mas também uma dimensão avaliada negativamente (ligada à representação proporcionada pelo sistema eleitoral).
A dimensão mais relacionada com a (in)satisfação geral com o funcionamento da democracia parece ser a (baixa) “responsividade” (apercebida) da classe politica, em que prevalece a ideia de que os eleitos não atendem às expectativas e interesses dos eleitores. E é essa ideia que mais está relacionada com a percepção de uma baixa qualidade geral do regime. As outras dimensões relacionadas com essa percepção têm a ver com a qualidade (imparcialidade e pluralismo) da informação politica, com a ideia de que as decisões do governo são condicionadas por pressões de poderes não responsabilizáveis politicamente, com a falta de mecanismos de responsabilização horizontal do poder e, finalmente, com o tratamento desigual perante a lei e a justiça.
A “falácia eleitoralista” (noção de que as eleições e a sua regularidade são o aspecto central de qualquer avaliação da qualidade da democracia) é rejeitada pelos eleitores. Ou porque consideram que há aspectos substantivamente mais importantes na sua concepção do que é realmente “uma boa democracia” ou porque a qualidade da democracia portuguesa em torno do exercício de direitos políticos e das eleições é “tomada como certa”. A (in)satisfação dos eleitores com o regime está predominantemente relacionada com a avaliação da existência de incentivos dos eleitos para atenderem à vontade eleitoral, como um ente com força anímica autónoma, em vez de a relacionar com outros factores e prioridades, como a informação necessária para fazer boas escolhas autónomas e para responsabilizar os governos pela verificação de algumas condições básicas de cidadania, legais ou sociais.
Em tempos de crise, e, sobretudo, para os que a pretendem agravar com cenários de eleições antecipadas, a qualidade da democracia não pode, não deve, ser posta em causa. E, muito menos, a pretexto de que uns são melhores democratas do que outros. E, seguramente, muito menos ainda, quando se confunde a "qualidade" da Democracia com as "oportunidades" da Democracia.