Qualificar certos actos contra as mulheres como violentos não é um problema exclusivo das sociedades modernas nem sequer das últimas décadas. Uma grande parte destes segue práticas seculares, legitimadas e silenciadas. Contextos espaciais, sociais e culturais diversos legitimam e sancionam tais práticas, positiva ou negativamente. Por vezes, essas práticas só são consideradas como violentas pelas próprias vítimas. No caso português, os últimos anos representam uma melhoria considerável nos mecanismos de percepção de tais actos como sendo violentos, bem como no seu controlo formal através de meios legais.
No Dia Internacional da Mulher nada mais útil que deixar uma nota para esta (velha) questão.
Antes de mais, convirá esclarecer que o conceito de violência doméstica inclui a violência, explícita ou velada, dentro de casa ou no âmbito familiar, entre indivíduos unidos por parentesco civil (marido e mulher, sogra, padrasto) ou parentesco natural pai, mãe, filhos, irmãos etc., e inclui práticas, como a violência e o abuso sexual contra as crianças, maus-tratos contra idosos, e violência contra a mulher e contra o homem geralmente nos processos de separação litigiosa além da violência sexual contra o parceiro.
Algum caminho foi feito desde a apresentação, a 28.Out.2009, pela Associação Portuguesa das Mulheres Juristas, dos primeiros resultados do Projecto Rebeca (co-financiado pela UE e pelo Estado Português, medida 7.3 do QREN/ POPH), que analisou a tramitação de 30 processos crime, desde a denúncia à acusação, acolhidas numa casa abrigo no Norte, na Relação do Porto, na presença do Procurador-Geral da República, da Procuradora Adjunta Maria João Taborda (DIAP- Porto) e pelo Juiz de Direito Artur Guimarães (TIC – Porto).
O relatório da Amnistia Internacional, de 2008, indicou que, em Portugal, persistem os episódios de violência contra as mulheres, e que, em 2006, 39 mulheres foram mortas pelos maridos.
A (AI) revelou que, em todo o Mundo, as mulheres vitimas de violência e violação sexual vêem negado o aceso à justiça e à dignidade, devido à discriminação do género, e que "tanto nos países pobres como nos ricos, as mulheres violadas ou abusadas têm poucas hipóteses de ver os seus atacantes serem responsabilizados", e que é "chocante que no século XXI, com tanta legislação destinada a promover a igualdade de género, nenhum governo tem sido capaz de assegurar a protecção da mulher e a responsabilização dos perpetradores destes crimes". Os relatórios demonstram que as vítimas de violação sexual e violência doméstica que procuram justiça enfrentam obstáculos, incluindo resposta inadequada ou negativa por parte da polícia e pessoal médico e judicial. "Dada a generalizada indiferença das autoridades, muitas mulheres sentem vergonha ou culpa e nem sequer tentam denunciar à polícia os crimes de que foram vítimas", acrescentando a AI que "a menos que a violência sexual seja acompanhada de violência física, esta simplesmente não é levada a sério", e conclui que os sistemas jurídicos de países desenvolvidos e em desenvolvimento, "contêm lacunas e discrepâncias que desencorajam as mulheres e raparigas a procurar justiça para os crimes de que foram vítimas". Desde o Camboja à Dinamarca, à Finlândia, à Noruega e à Suécia.
A Lei n.º 7/2000, 27.Maio, veio qualificar o crime de maus-tratos de crime público, passando este a poder ser denunciado por qualquer pessoa e a ser obrigatório para os agentes de autoridade comunicá-lo aos tribunais.
Já à parte do motivo que nos levou a lembrar a violência doméstica, será bom focar que os novos rumos, hoje reconhecidos, das relações afectivas levam a que se alargue o conceito de violência a outros casos não esteriotipados de relações, que não as heterossexuais (relatório da conferência Broken Rainbow elaborado pela LGBT (Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender), Londres (Jones, 2002)). A violência é igualmente perpetrada entre casais do mesmo género, pelo que se exige uma desconstrução da imagem estereotipada de felicidade e liberdade frequentemente associada a estes casais, mostrando que, como os demais, passam também por processos angustiantes e violentos no decurso da sua vida conjugal. Por causa do estigma normalmente associado à sua orientação sexual, há um maior receio em denunciar à polícia ou aos médicos a violência doméstica. Como na maioria dos casais heterossexuais, um dos parceiros controla o outro financeiramente. Tendem, tal como nos casais de heterossexuais, a desculpabilizar o agressor. Quando o homem vítima abandona o casal e recorre à comunidade homossexual, é estigmatizado, pois esta parece ter dificuldade em reconhecer que possa existir violência entre homossexuais. É de referir ainda que, devido aos estereótipos de género, é mais fácil de aceitar que os homens homossexuais, bissexuais e transsexuais sejam violentos para com o seu parceiro do que as mulheres lésbicas, bissexuais e transsexuais. Para combater esta estigmatização, as Unidades de Segurança Policial destas comunidades incluem a homofobia na lista dos crimes e, junto das autoridades locais, efectuam campanhas de sensibilização dirigidas aos homossexuais vítimas de violência doméstica.
A provar que se trata, primeiro, de um crime, segundo, que atinge qualquer dos parceiros, independentemente do sexo, da classe económica, ou do papel de cada um na relação. Crime é sempre crime e a sua penalização não deve separar agentes ou protagonistas a partir de juízos de valor e/ou preconceitos, por classe, sexo ou qualquer outro factor exógeno. O que se deve, sim, é separar o trigo do joio. Ou seja, a vítima do agressor.