Depois de uma relação de 20 anos com um homem, que acumulou, até há pouco tempo, a qualidade de Meu Único Namorado, Noivo e Marido, penso que estou numa situação (des)privilegiada para falar de uma espécie de amor de que deveríamos estar inibidos e até proibidos de sentir, ou na pior das hipóteses, de recorrer a antibióticos, vacinas ou tratamentos clínicos, quando atingidos por tal vírus. Falo do amor (?!) destrutivo.
Fruto da cultura ocidental, achamos que é normal associar-se a ideia do amor a uma dimensão trágica e uma dimensão transcendental. Apanhados pela mitologia grega, que legitimou que a beleza de Helena levasse Páris a apaixonar-se, a raptar Helena e a ser perseguido por mil navios que deram origem a uma longa guerra que o levou à morte bem como à destruição de Tróia, ficámos prisioneiros desta ideia de que o amor está intrinsecamente ligado a poder, conflito, destruição e transformação.
Bataille (1957/1988) descreve o ser humano como um ser descontínuo em busca de continuidade e de amor, cuja componente sexual e de reprodução encerram em si mesmas a génese da sua própria destruição e transcendência. Para ele, a procura da transcêndencia dos nossos limites na relação com o outro possui uma componente agressiva expressa no acto sexual, na reprodução e nas situações em que estão em causa os limites individuais da nossa descontinuidade. Porque quando fazemos o amor ou a guerra transgredimos os nossos próprios limites e os do outro e a atingir (ou a procurar atingir) uma forma de elevação que nos aproxima da morte.
David Schnarch (1991), demonstra como o amor contém um potencial destrutivo mediante a forma como o indivíduo se diferenciou da sua família de origem e projecta na relação com o outro, aspectos não resolvidos durante o seu desenvolvimento. Segundo ele, a separação não resolvida com a mãe, pode levar a um desejo de fusão com o parceiro(a) ou a ver o outro como extensão de si próprio. - Situação muito comum no contexto português, em que os filhos são criados essencialmente pelas mães e permanecem na casa dos pais depois de atingirem a idade adulta, dividindo atenções entre as mães e os parceiros(as) e a uma intromissão inadequada destas na dinâmica relacional, com as mães a recorrer a subtis estratégias que reforçam o seu poder junto dos filhos, não os deixando crescer ou a tornarem-se autónomos. Exemplos: a vitimização, a rivalidade com as noras ou genros, a exigência de compromissos (deveres) familiares, o cuidar dos netos ou a prestação de favores que reforçam o sentimento de dívida para com os pais. - Outros aspectos problemáticos são a falta de gratificação narcísica durante a infância que poderá “desviar” a pessoa para um desejo permanente de sentir-se especial ou superior aos outros e tender a procurar a pessoa perfeita que resulta da projecção dessa defesa. Esta estratégia conduz a uma insatisfação recorrente na relação, com frequentes boicotes inconscientes que acabam por destruir a relação. No oposto, a criança gratificada e sobreprotegida tende a ficar dependente da aprovação e da atenção do Outro na relação e a tornar-se reactiva quando as suas necessidades não estão satisfeitas, agindo com agressividade, com “birras” ou “ataques de ciúmes”. Os casais acabam por lutar por gratificação e validação mútuas através da forma como projectam no Outro questões mal resolvidas no seu desenvolvimento ou decorrentes de situações de negligência ou abuso. E tais comportamentos agressivos e, a maioria das vezes, despropositados, são induzidos até de forma inconsciente. Segundo Scharchn, as pessoas mais diferenciadas tendem a auto-validar-se em vez de se validarem através do Outro, de modo a tolerar melhor a sua ansiedade em vez de a projectarem no Outro, ou a assumirem personalidades parcialmente diferentes dentro e fora da relação. Na opinião do autor, a intimidade e o erotismo são potenciados pelo nível de diferenciação que permite um grau de entrega na relação capaz de ultrapassar os medos inerentes à aparente perda da individualidade ou experiência da continuidade descrita por Bataille. Nestes casos, a intimidade passa a ser extremamente gratificante e reafirmativa, e não destrutiva.
Tal como na mitologia grega, o amor pode ser fonte de destruição e conflito mas também de transcendência e transformação.
"Quando amar é sinónimo de sofrer, estamos a amar demais. (...) Quando desculpamos o seu mau humor, mau feitio, indiferença ou desconsiderações como problemas decorrentes de uma infância infeliz e procuramos ser a(o) sua(seu) terapeuta, estamos a amar demais. (...) Quando o nosso relacionamento prejudica o nosso bem-estar emocional e talvez mesmo a nossa segurança e saúde física, estamos indiscutivelmente a amar demais. (...)", excertos do Prefácio do livro "Mulheres que amam demais", de Robin Norwood. No Brasil, foi criado o grupo de apoio MADA - Mulheres que Amam Demais Anónimas, programa de recuperação para mulheres que visam a sua recuperação depois de relacionamentos destrutivos e a conseguir relações saudáveis consigo mesma e com os outros. O grupo foi criado com base no livro, em que a autora percebeu um padrão de comportamento comum ao que chamou de "mulheres que amam demais". A ideia de criar o grupo está nos 12 Passos, nas 12 Tradições, nos Lemas e nos Conceitos adaptados de AA-Alcoólicos Anônimos, que foi o pioneiro de todos os grupos de apoio anónimos.
Enquanto não existem grupos de apoio, apoiemo-nos na família, nos amigos, em quem está a jeito, quando uma tal malapata nos atinge. Porque quando alguém nos destrói a pretexto de nos amar, o mínimo que podemos fazer é desamá-lo na exacta desproporção. Ou seja, desamar para construir. Porque só quando nos construimos a nós somos capaz de construir o Outro. De amar construtivamente.