Continuam a existir crimes passionais e provavelmente vão continuar a existir sempre que haja, pelo menos, dois apaixonados. Associamos os crimes passionais, e aquilo que representam, ao reflexo de uma lógica sociocultural que tradicionalmente menoriza as mulheres e legitima que os homens as penalizem.
O relatório da Amnistia Internacional denunciou que, em Portugal, se assassinam mulheres com alegações de razões de "amor". Estimam-se, por mês, 5 homicídios conjugais, a maioria sobre mulheres (Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres). O estereótipo mantém-se, de acordo com os dados da Judiciária, quando cruzados, também, com a actividade da APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima).
Os autores da maioria dos crimes passionais são, por regra, imputáveis, e só excepcionalmente se reconhecem casos de inconsciência por causas patológicas. Trata-se de um crime relacionado com estereótipos do papel do género - na família, no emprego, em todas as situações.
A professora da UCP Sofia Neves afirma: "O mito do amor romântico, que alimenta uma crença social no amor sacrificial por parte das mulheres, e que é um factor de risco para a violência na intimidade, configura uma forma de poder para muitos parceiros que, em nome de uma pseudo-supremacia masculina, usam a coacção física, psicológica e sexual como instrumento de dominação sobre as companheiras."
Vai daí que, irreflectidamente romântica, me espanto positivamente com a notícia dos Insólitos do Expresso que anuncia que um homem de 33 anos pode vir a ser condenado pelos encontros nocturnos que mantinha com a sua namorada, porque, para poder disfrutar da sua amorosa companhia, atravessava vedações, evitava câmaras de vigilância e até abria portas com chaves caseiras, para alcançar o lugar que a hospedava: uma prisão de baixa segurança em Bielefeld, na Alemanha. Daniele (o amoroso) tentou obter autorização para visitas conjugais com a sua amada, mas esse direito foi-lhe negado porque quando a sua namorada foi presa deu o nome de outro homem como seu companheiro. Não hesitou (assim lhe chama a imprensa alemã), 'o Romeu do xelindró', que invadiu o estabelecimento prisional várias noites consecutivas, à espera de um beijo da sua querida. Ora, após tantas saudades, parece que o beijo foi indo e foi indo e gerou algum borbulhinho sonoro audível pelas restantes prisioneiras, que, movidas por aquela inveja tipicamente feminina, se queixaram à direcção da prisão. "Algumas das mulheres sentiam que o seu sono estava a ser interrompido, enquanto que outras temiam que o homem as pudesse vir visitar também" disse a direcção do estabelecimento. (Estes tipos seguramente não percebem nada de mulheres!) Por causa destas denúncias a direcção mandou instalar um equipamento de vigilância de vídeo, que permitiu a sustentação do corpo acusatório para condenar os amantes - apanhados, imagine-se, em flagrante delito. Defesa do arguido: "mas eu amo-a - nós estamos noivos!". E à interrogação do advogado do mesmo: "Não podíamos ter rido desta situação e cancelado o julgamento?", respondo com um enxerto do poema "Invenção do amor", de Daniel Filipe: Um homem uma mulher um cartaz de denúncia colado em todas as esquinas da cidade A rádio já falou A TV anuncia iminente a captura A polícia de costumes avisada procura os dois amantes nos becos e avenidas Onde houver uma flor rubra e essencial é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo É preciso encontrá-los antes que seja tarde Antes que o exemplo frutifique Antes que a invenção do amor se processe em cadeia.