sábado, 3 de abril de 2010

Sigamos na aventura do pensamento e façamos a sua apologia pública. Em nome de uma (madura) Democracia!


Dos códices iluminados medievais e renascentistas aos incunábulos do século XV, das tipografias dos grandes impressores dos séculos XVI e XVII – Valentim Fernandes, Germão Galharde, João de Barreira, António de Mariz, Paulo Craesbeck, et. al – ressalta a persistente voluntariedade, comum a homens de todos os tempos, em fazer da palavra uma arma para lutar contra ideias e verdades impostas, autoridades indiscutíveis, linhas de pensamento insuperáveis. A história da liberdade contém a história da faculdade de pensar, criticar e refazer o conhecimento. Homo cogitans, o homem é o único ser dotado para a abstracção, a intelecção do universo físico e metafísico, o estabelecimento de leis, a construção do método científico, o domínio do passado e a prospecção e antecipação do futuro. Vem-nos da Filosofia e da história das ideias o ininterrupto esforço cognoscitivo para encontrar respostas, desfazer certezas e validar novas. A vida intelectual é uma "caverna", um campo de batalha silencioso, uma luta de supressão entre ideias que morrem e ideias que triunfam antes que a sua expressão social – política, económica, artística – se verifique. "Não há machado que corte a raiz ao pensamento", mas a repressão da expressão do pensamento faz parte de todos os sistemas sociais. Não há comunidade histórica que não crie instituições "controladoras", algumas mesmo repressivas, para policiar, reprimir, censurar ou suprimir ideias contrárias à verdade oficial. Conhecimento é poder, e quando as ideias colocam em risco a estabilidade do corpo social e submissão dos indivíduos, o Poder tipifica-as criminalmente. A liberdade de expressão tem limites positivos (a lei), mas também outros a que o Poder chama de limites materiais (indiscutíveis). Uma sociedade política interdita, in limite, o seu contrário. Essa tendência totalitária é, numas, mais discreta, noutras menos. As democracias possuem pulsões liberticidas, e escondem-nas, as demais das vezes, sob a capa de tolerância. O elemento mais perturbador desta repressão disfarçada é que, nas sociedades ditas democráticas, não existem instituições repressivas mandatadas para a supressão do "direito de expressão", mas uma translação do eixo para outras sedes de poder condicionador, nomeadamente a comunicação social. A opinião pública coincide, em absoluto, com a opinião publicada – e as instituições produtoras e reprodutoras da verdade oficial, nomeadamente a universidade e as casa editoras. Outro elemento perturbador é a desautorização do "pensamento duro" – sempre relativo, tomado como igual a outras formulações teoréticas - em benefício do "pensamento mole", ou seja, da opinião. Se a todos é autorizada opinião, a democracia transforma-se num método, numa atitude; logo, conquanto não se desrespeitem os "limites materiais", as opiniões são "igualmente" respeitadas. É esta a grande vulnerabilidade das sociedades ditas abertas, mas que são conservadoras no centro e intransigentes e repressivas na periferia.
Os bloqueios de que padece a sociedade portuguesa são herança secular da vigilância, repressão e sufocação de ideias proibidas e do medo que lhes inere. Temos uma história longa de Inquisições, listagens de obras proibidas, censura, auto-censura e desprezo pelo desconhecido e incompreendido. Os portugueses são, por natureza do meio, avessos à mudança das mentalidades, hostis ao incómodo causado pela responsabilidade nascida da auto-determinação, consensualistas e desconfiados, fugidios e precários na arte de argumentar. Há que manter a esperança de que um dia possamos, com orgulho, assumir o risco da aventura do pensamento e da sua defesa pública. Sem medo de repressões e, muito menos, de represálias.