terça-feira, 6 de abril de 2010

Igreja e laicidade: a perspectiva de um católico apostólico-romano


Envia-me um amigo confessamente católico, apostólico-romano umas notas sobre a Igreja e o Estado laico, na sequência de uma troca de palavras, aquando da preparação para a minha mais futura recente intervenção num jantar/debate da Academia de Estudos Laicos e Republicanos. Trata-se de uma intervenção, na Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém, integrada na Conferência do Cardeal Patriarca, sob o título “Laicidade e laicismo: Igreja, Estado e Sociedade”, subtema "Igreja e Laicidade". Vai na íntegra, para não deturpar a essência do raciocínio.
"A Igreja aceita e respeita a laicidade do Estado, enquanto serviço estruturante da sociedade. Sabe que a área de intervenção do Estado é a ordem temporal do presente histórico, “hoc saeculum”, onde o respeito pela dignidade da pessoa humana, da sua consciência e das expressões legítimas da sua liberdade, a construção da justiça e os caminhos de desenvolvimento e de progresso são valores fundamentais. Mas se a esfera natural dos valores a promover e defender pelo Estado, é a ordem temporal, não pode desconhecer ou atacar valores transcendentes, também eles presentes na dinâmica da sociedade. Por isso, a Igreja nunca aceitará que a laicidade do Estado se transforme em laicismo a impor-se a toda a sociedade, que à partida não se pode definir como laica ou crente, pois isso depende da consciência dos cidadãos.
A Igreja está presente na sociedade, de que faz parte, através de dois caminhos complementares: a sua visibilidade organizativa – entre nós a Igreja é, a seguir ao Estado, a estrutura mais organizada e presente em toda a sociedade – e a presença dos cristãos, com a visão da vida que brota da sua fé, em toda a realidade social. A estrutura organizada da Igreja é ampla, e engloba, para além da sua organização religiosa, as instituições de serviço à sociedade, no campo da intervenção social, da educação, da comunicação e da cultura. Estas concretizam o seu serviço à pessoa humana e à sociedade, pondo em realce a natureza da missão da Igreja na sociedade: servir a pessoa humana e o bem comum. E é por isso que as relações da Igreja com o Estado, na medida que este se assuma como serviço à sociedade, só podem ser de cooperação em prol do bem comum, respeitando as esferas específicas e a natureza de cada Instituição. Esse princípio da cooperação inspira todos os conteúdos da nova Concordata celebrada entre a Santa Sé e o Estado Português. Tudo o que seja dificultar ou mesmo tentar irradicar da sociedade estas estruturas de serviço, protagonizadas pela Igreja, é manifestação de laicismo ultrapassado e retrógrado. Até porque ao promover o bem dos cidadãos, o Estado não pode ignorar o bem espiritual, aspecto que é missão específica das Igrejas e outras religiões.
Nós não defendemos um Estado confessional, cultivamos o respeito pela liberdade religiosa, expressão maior da liberdade de consciência. Não pedimos ao Estado que nos proteja, mas que nos reconheça no serviço que prestamos e que integra a nossa missão explicitamente espiritual.
Nesta cooperação e convivência da Igreja com o Estado laico, ao serviço de uma mesma sociedade, há um ponto de clivagem a analisar com clarividência: a dimensão ética da sociedade. Tem-se verificado, nos últimos tempos, a tendência para acantonar todos os valores morais que a Igreja defende na categoria de valores religiosos, que não dizem respeito ao Estado. Um caso flagrante foi o recente debate a propósito do referendo que legalizou o aborto. Esquecem que os principais valores da moral católica são valores humanos, da esfera da lei natural e, por conseguinte, universais. A fé cristã traz a esses valores apenas a exigência da perfeição e da radicalidade. Entre a moral cristã e a ética de um Estado justo, ainda que laico, há uma vasta base comum de um universal humano, cuja afirmação não é apenas religiosa, mas cultural. Não há identidade completa entre religioso e transcendente. E se não compete ao Estado laico promover ou defender os valores exclusivamente religiosos, ele não pode desconhecer ou alhear-se dos valores transcendentes, sob pena de cair na degenerescência cultural. Aliás todos os valores que definem o Estado democrático, a promoção da dignidade da pessoa humana, defesa da liberdade, sobretudo da liberdade de consciência, igualdade de todos, promoção da justiça, no contexto do Estado de Direito, pertencem a esse universal humano, partilhado pela própria Igreja. Quando a Igreja defende esses valores, como é o caso do carácter inviolável da vida humana desde o seu início ou a condenação da violência, fá-lo por serem valores humanos universais, que ganham nova densidade na exigência existencial da fé.
O actual quadro cultural com que a Igreja se confronta é o de um laicismo envolvente, que tende a tudo inspirar, e que põe problemas específicos que se situam no quadro da missão da Igreja e do comportamento dos cristãos em sociedade. Indico algumas das suas principais concretizações: o naturalismo, que leva à perda da dimensão sobrenatural; o individualismo que destrói a vocação de comunhão, em comunidade; o triunfalismo da razão, que compromete a adesão a uma verdade que nos é revelada; a alteração ética, fruto de um exercício individualista da liberdade; a perda do sentido da verdadeira felicidade. Estes são os principais pontos de confronto da perspectiva cristã do homem e da existência com uma cultura marcada pelo laicismo."