sábado, 3 de abril de 2010

Edmundo Pedro: quando a irreverência nasce em pessoa!


Num dos jantares das minhas Tertúlias, conheci Edmundo Pedro. Acabara de publicar "Memórias – Um Combate pela Liberdade" (Lisboa: Âncora. Prefácio de Mário Soares e posfácio de Fernando Rosas). O João Tunes apresenta de forma tão fiel o livro que lhe sigo os passos. Conta a sua história desde o período que vai da infância até à saída de Edmundo Pedro do Campo de Concentração do Tarrafal, no imediato pós-guerra mundial e com 27 anos de idade, passando pela sua infância revolucionária (começou-a mais a saga das prisões, com 14 anos), a adolescência e a primeira fase da vida adulta, em que o substancial se desenrolou como prisioneiro do Tarrafal para onde entrou com 17 e saiu com 27 anos! Ali estão os episódios que marcaram a sua vida de “crente” no marxismo-leninismo da primeira metade do século XX (o mesmo que enformou Pavel - aliás muito interessante a sua tese de que este era o lider expectável para o PCP e não Cunhal - , Bento Gonçalves e Cunhal). Antes da decepção. EP fez, então com 88 anos de idade, o inventariado das formas sucessivas como se inspirou e interiorizou o fanatismo por um modelo revolucionário radical, como se suportou nele para suportar provações extremas e para se imunizar às evidências dos absurdos, perversões e desmandos da prática e das referências do seu serviço ideológico. Aliás, tirando algumas ligeiras adaptações, ainda hoje se mantém a mesma receita de formatação para se chegar ao altar da imunidade fanática comunista, essa transformação, parafraseando Júlio Cortazar, do militante político no “homem crustáceo”, o da coerência absoluta, aquele em que todo o mundo pode desfazer-se em cacos, todas as evidências mostrarem o crime debaixo da mentira, que não arredará um pé para o caminho da dúvida ou da interrogação, porque se vestiu com a imunidade fanática de uma carapaça que o liberta da dúvida, do cotejo e da reflexão, trocando tudo isso pela tranquilidade de possuir uma certeza revelada. Para mais, tratando-se de um renegado, EP faz esse re-percurso com uma limpidez e honestidade intelectual sem máculas, procedendo a um oportuníssimo ensaio psicológico sobre o “homem marxista-leninista” (formato que a Internacional Comunista, sob a batuta de Stalin, espalhou por todo o mundo e de que ainda agora se vão encontrando umas suas abencerragens aqui e acolá, incluindo em Portugal). O retrato repressivo do Estado Novo, quando este copiava, no que podia adaptar, Hitler e Mussolini, sobretudo bem expresso na perfídia maior do Campo do Tarrafal (EP afirma que esta é uma falta curricular de Cunhal que devia merecer mais atenção), é não só impressivo como detalhado até ao âmago dos limites do cinismo e do sadismo de que o salazarismo foi capaz de conciliar com a sua fórmula própria de “fascismo nacionalista-clerical”. Expondo-se na sua humanidade sofrida, Edmundo Pedro dá luz suficiente a retratos únicos, com interessantes contributos biográficos, sobre um conjunto de figuras marcantes da história revolucionária portuguesa e que o marcaram: Pavel e de Bento Gonçalves, lideres proeminentes do PCP e que ainda hoje são mantidos numa penumbra construída para que não incomodem o lugar único histórico atribuído pelo PCP a Álvaro Cunhal. Mas a figura mais revelada por EP, tanto ou mais que ele próprio, é o seu próprio pai, Gabriel Pedro, o mais aventureiro, corajoso, emotivo, rebelde, indisciplinado e truculento entre todos os revolucionários comunistas clandestinos de todos os tempos, com toda uma vida dedicada à revolução comunista e à devoção pela União Soviética (que nunca conheceu mas amou sobre tudo na terra). GP, fiel militante comunista que assim morreu antes do 25 de Abril, era não só um disponível entusiasta para todas as ousadias (com 70 anos de idade, foi o mais importante operacional da acção da ARA em que foi colocada, pelo lado do rio, uma bomba no navio “Cunene” que, carregado com armamento para a guerra colonial, sofreu uma devastadora explosão), como um rebelde perante as afrontas (foi o prisioneiro mais castigado no Tarrafal) e um homem frontal a expor as suas ideias e pensamentos, inclusivé perante o seu partido (o que lhe valeu vários afastamentos, suspensões e expulsões) mas com profundos desequilíbrios emocionais e incapaz de viver fora do enquadramento do seu partido. E é assim que se entende que, preenchendo GP todos os requisitos e mais alguns para ter lugar de destaque no martiriológio e na galeria dos revolucionários notáveis e lendários do movimento operário e do PCP, ainda seja um incómodo para o partido a que dedicou toda a vida. Como EP revela e denuncia, o PCP não omite GP quando não pode, tendo-lhe dado o nome a um Largo em Almada e pouco mais. E, inclusive, as memórias que GP escreveu antes do 25 de Abril e pouco antes de morrer - morreu militante comunista destacado - estão apreendidas e na posse de um guardião da ortodoxia estalinista (Domingos Abrantes), sem direito a serem reveladas nem publicadas (total ou parcialmente). Pela razão única de os escritos de memória de GP não se encaixarem nos cânones do militante obediente, o protótipo do “bom camarada”. Sem direito sequer a serem lidas pelo próprio filho. Invocando-se o argumento de que as memórias escritas por GP são “património do partido”, leia-se património dos seus silêncios e pelo perigo subversivo de demonstrar que, mesmo entre revolucionários, cada homem e cada mulher são seres únicos e diferentes entre si.
Espera-se que EP continue as suas memórias. Depois de falar sobre a sua experiência de fidelidade comunista, fica o interesse na outra parte da sua vida e os porquês de renegado (que não o impediu de voltar ao combate contra o fascismo e à prisão). Um renegado especial. Com uma lucidez incrível e excelente memória, senhor de uma não-reverência a copiar, EP cometeu O pecado do renegado – após o 25 de Abril e enquanto dirigente do PS, andou em movimento de armas para o combate violento pela democracia e contra a imposição de uma ditadura comunista (o que o levou, em democracia, ao regresso à prisão). Ou seja, segundo os cânones das suas origens políticas, ao serviço da contra-revolução, do capital e da reacção. Fico a aguardar pelo volume II. Espero que a discutir em primeiríssima mão numa das Tertúlias.