terça-feira, 6 de abril de 2010

Alexandre Herculano: um valioso contributo para a lei de separação da Igreja e do Estado


Na celebração centenária, em curso, da República, algumas figuras do Liberalismo saem desmerecidas. Os vultos de elevada estatura humana, cívica e intelectual, como Mousinho da Silveira, Almeida Garrett e Alexandre Herculano, votam-se ao esquecimento. Sem eles, porém, seria impensável o triunfo dos ideais liberais em 5 de Outubro de 1910. A lei da separação da Igreja e do Estado, de 20 de Abril de 1911, encontrou em Alexandre Herculano um precursor decisivo em tempos de obscurantismo religioso. O seu catolicismo esclarecido e um rigoroso conhecimento histórico do País explicam a sua luta contra uma mentalidade retrógrada instituída. Se a Igreja portuguesa reconhece, hoje, as reais vantagens da autonomia dos poderes civil e religioso, no século XIX, a mensagem evangélica de 'Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus', não era assim tão claramente interpretada. A Igreja, até ao Concílio Vaticano II, não assimilou esta particularidade do pioneirismo de Jesus de Nazaré. A luta travada, dentro e fora de Portugal, pela emancipação do Estado, teve em Pio IX um alto adversário. Este papa condenou o Liberalismo e as doutrinas defensoras dos ideais de progresso e de liberdade, contribuindo para que muitos católicos portugueses se mantivessem apegados às teses do Antigo Regime, continuando a ver na pessoa do rei uma autoridade provinda de Deus, com poderes absolutos. Entre 1820 e 1910 os ideais de progresso e liberdade percorreram um longo caminho e derramou algum sangue. Alexandre Herculano compromete-se, desde muito novo, com a luta pela causa liberal, começando a empenhar-se na revolta militar de 1831 contra o governo de D. Miguel (que se autoproclamou rei absoluto em desafio ao regime constitucional instituído em 1820 e confirmado por D. João VI)e, até à sua morte (em 1877), amadurecem nele o homem, o cidadão e o crente católico. As suas convicções e princípios fizeram com que assumisse atitudes de ruptura em face de cedências de amigos ou de correligionários mais rendidos ao pragmatismo e aos consensos da governação. Não compreendeu que A. Garrett, alinhado politicamente mais à esquerda (no Setembrismo de Passos Manuel), tenha pactuado com a Regeneração, em 1851. A geração de Antero de Quental, Eça de Queirós e Oliveira Martins - nascidos na década de 40 - viu nele a consciência moral da Nação. Alexandre Herculano é o Sá de Miranda do século XIX: 'Homem dum só parecer, dum só rosto e duma [só] fé, de antes quebrar que torcer'. O combate ideológico-político de Herculano sustenta-se da investigação histórica e do atento acompanhamento da realidade contemporânea. Foi um intelectual cujas convicções e atitudes emergiram dum conhecimento sólido e bem estruturado. O historiador é inseparável do homem político. Deu-se à investigação histórica sem obliterar a intervenção directa nas polémicas do seu tempo. Na sua 'História de Portugal', a isenção levou-o a omitir o lendário milagre de Ourique da aparição de Cristo a D. Afonso Henriques. A violenta reacção do Clero não o fez desviar do seu rigor de historiador; reforçou-o na sua atitude pedagógica (às vezes violenta) da divulgação de nobres ideais, batendo-se pela expressão e difusão das suas ideias. Não se limitou a responder aos adversários, que o atacavam do púlpito abaixo; alargou o horizonte da luta ideológica, elaborando e publicando a 'História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal'. Com ela, Herculano denuncia uma das consequências mais trágicas da aliança entre o poder do absolutismo real e o poder religioso, contribuindo para alertar as consciências cristãs contra o mau uso do poder religioso, punha em causa o Antigo Regime (demonstrando que D. João III lançara mão de todos os meios para arrancar do Papa a criação da Inquisição portuguesa). Na mesma linha de combate ideológico se enquadra a defesa da autonomia do casamento civil em face do casamento religioso, uma reivindicação que abre caminho à futura lei da separação da Igreja e do Estado. Sobre ele disse o Prof. Óscar Lopes: 'Alexandre Herculano lutou por coisas que, mutatis mutandis, têm a sua correspondência nas nossas aspirações progressistas de hoje'. Mas não é só como brilhante historiador e ensaísta que AH ocupa um lugar especial entre os maiores portugueses de todos os tempos. Também como ficcionista se justifica plenamente a evocação do segundo centenário do seu nascimento, a ler, de novo, 'Eurico o Presbítero', 'O Bobo', 'O Monge de Cister' e as 'Lendas e Narrativas'. Precursores, como AH, da consagração de valores que hoje enformam a sociedade portuguesa devem ser crítica mas necessariamente evocados. Reclama-o a pedagogia cívica. Por que não aproveitar o exemplo de Herculano e a efeméride comemorativa para discutir o papel da Igreja portuguesa hoje num Estado laico? Uma proposta de Agostinho Domingues, a que anuo veementemente.