sábado, 3 de abril de 2010

Adriano Moreira: Intervenção e Humanismo

Homens de palavra, há cada vez menos. Um senhor desta rara espécie, ainda vivo, é Adriano Moreira. A reler "Uma Intervenção Humanista". Intervenção e humanismo encaixam-lhe na perfeição. Um percurso de vida trilhado pelas sendas da justiça e pelas vias do direito e percorrido no respeito pela dignidade de cada pessoa. Intervenção, que evidencia a acção de AM, que, face a circunstâncias desfavoráveis, não desistiu ou refugiar no mundo teórico, mantendo-se apegado e atento à vida, às realidades de cada conjuntura, numa incessante procura em contornar os ventos contrários de forma a fazer bolinar a nau das suas ideias. Humanismo, para caracterizar uma vida que tem sido (como Manuel Patrício afirma no prefácio), "um céu estrelado de actos — as únicas acções humanas consentâneas com o estatuto ontológico deste Homem." Para quem vislumbra ao fundo do túnel, a luz de uma alma atlântica, a ler, ainda, A Espuma do Tempo. Memórias do Tempo de Vésperas. Portuguesmente, já num discurso de 1964, referia os portugueses, mundo fora: “… não é aconselhável desfazer solidariedades forjadas no passado em leal cooperação, não é aconselhável ignorar os interesses fundamentais de todos os que pertencem ao mesmo sistema de cultura geral, não é útil enfraquecer qualquer dos pilares de uma civilização construída e mantida por um trabalho comum. […] A palavra é uma arma que destrói exércitos, e a acção é uma forma de rezar capaz de mover montanhas: pregar os nossos valores essenciais, agir de acordo com eles, não ignorar os desafios ideológicos, esclarecer, reivindicar a integridade de uma concepção de vida, é uma forma, que se afigura importantíssima, de servir as solidariedades que desejamos ver desenvolvidas e fortalecidas com autenticidade”. Há um patriotismo genuíno, um «attachment» (para citar Oakeshott), o que AM chama “a maneira de ser português”. É um patriotismo enraizado num sentimento de empatia, ou simpatia, para com os seus compatriotas e para com os seus modos de vida realmente existentes.
Num mundo em que os homens têm cada vez mais palavras e são cada vez menos de palavra, esta já não tem o cunho pessoal de quem a diz, já não hipoteca quem a diz, já não serve de garantia, e, muit menos, se vive ou morre por ela. Os tempos actuais obrigam-nos à desconfiança na palavra dada. Eis um tema que Shakespeare desenvolve até à exaustão: ao desprezo votado à palavra pelo príncipe Hamlet («palavras, palavras, palavras…»), responde
Shylock, no Mercador de Veneza, com a primazia da letra, isto é, a exigência de que o estranho contrato que ele propõe a António seja por este assinado.
Somos cada vez mais, como diria o poeta Ruy Belo, «homens de palavras», no plural, e menos homens de palavra. Eis um tema bastante comentado, nos últimos tempos, a propósito dos políticos que usam e abusam das palavras. Nem sempre porque mentem descaradamente. Também porque nem sempre lhes escrevem as palavras mais próprias para se dizer. Já Hannah Arendt perguntava se enganar não fará parte da própria essência dos políticos. Em regra, eles limitam-se apenas a escancarar, ou a tornar descarada, a mentira que faz intrinsecamente parte da palavra. Com efeito, a palavra mente, por estrutura, mesmo quando diz a verdade. É aquilo a que Freud, retomando uma expressão do velho Aristóteles, chamava proton pseudos, ou seja, uma mentira fundamental inerente ao próprio acto de falar. José Gil, escreveu sobre Portugal: um país, segundo ele, onde nada se inscreve, falamos muito e repetidamente sobre as mesmas coisas. Eis o que leva o autor a dizer que Portugal é «o país da não inscrição».
Por tudo isto, é imperativo ler e reler Adriano Moreira e, entretanto, sentarmo-nos numa confortável bérgere, estilo barroco, com um Armagnac velho pela frente, a ouvir Ego sum Resurrectio, e a aguardar que, na volta da vida, um dia a mãe-Política nos (re)ofereça outro homem mais ou menos assim. Já que, na verdade, nos contentávamos com um o mais parecido possível. Coisa que não me conste que haja por aí.