quinta-feira, 29 de abril de 2010

O meu primeiro 1º de Maio (1974)



A semana entre o 25 de Abril e o 1.º de Maio de 1974 foi uma semana alucinante, pois acabáramos de assistir à implantação da Liberdade depois de uma longa ausência, através do Golpe de Estado levado a cabo pelos Capitães de Abril, assim designado. Uma semanda depois do 25 de Abril o Povo confirma a Liberdade
O Dia do Trabalhador foi pela primeira vez assinalado, em múltiplos países em simultâneo, inclusive em Portugal, no 1º de Maio de 1890. Cumprindo prontamente a orientação que havia emanado dos dois Congressos Operários de Paris, realizados no ano anterior, o operariado português também saiu às ruas nesse dia, reclamando a redução da jornada de trabalho. A iniciativa foi conduzida pela Associação dos Trabalhadores da Região Portuguesa. A partir dessa data, o 1º Maio nunca mais deixou de ser comemorado como dia da solidariedade internacional de todos os trabalhadores.
Maio tem sido, ao longo dos anos, sinónimo de liberdade e motor de profundas transformações sociais e políticas: País onde não se comemore o 1º de Maio é país oprimido, com um povo reprimido.
O princípio deste movimento internacionalista está ligado a acontecimentos bem trágicos, ocorridos 4 anos antes, no dia 4.Maio.1886, em Chicago, EUA. Os operários da cidade, encontrando-se em greve geral desde o dia 1 de Maio do mesmo ano pela jornada de 8 horas, realizam um comício sindical na praça Haymaiket, perante uma forte presença policial. O ambiente está carregado de tensão e ansiedade. A provocação está preparada. Uma bomba explode. A confusão instala-se. As forças policiais disparam sobre a multidão, em pânico. São feitas prisões em massa. Oito dos detidos são transformados em bodes expiatórios, através dum processo judicial viciado e manipulado que termina com a condenação à morte por enforcamento de todos eles. Os mártires proletários têm nome: August Spies, Albert Parsons, Adolph Fischer, Samuel Fielden, Georges Engel, Michael Schwarb, Óscar Neeb e Louis Ling. Quando uma instância superior vem, tarde demais e por força dos protestos da sociedade americana, reparar a injustiça de que os operários tinham sido vítimas, 4 deles já haviam sido enforcados: Parsons, Spies, Engel e Fischer. Ling, na véspera da execução, suicidou-se com uma vela de dinamite. As penas de Fielden e Schwarb foram comutadas em prisão perpétua e a de Neeb em 15 anos. Apesar da repressão, 50 mil dos operários em greve conquistaram imediatamente o dia de 8 horas, enquanto que outros 200 mil conseguiram reduções menos significativas.
O exemplo dos operários de Chicago galvanizou os trabalhadores do mundo inteiro. A partir daí, os trabalhadores ganharam o direito de intervir no estabelecimento dos seus horários de trabalho e consciencializaram-se da importância decisiva da sua unidade e da solidariedade internacionalista na luta pela emancipação e dignificação de quem trabalha.
UMA HISTÓRIA TAMBÉM PORTUGUESA, CONCERTEZA!
Em Portugal, o movimento sindical e laboral foi-se reforçando até ao derrube da Monarquia e a instauração da República. Com o novo regime político, algumas câmaras municipais decretaram o 1º de Maio como feriado oficial. A luta pela jornada de oito horas recrudesceu, o que levou a que ela fosse consagrada em 1919 para os trabalhadores da indústria e do comércio. 7 anos depois, com o golpe militar do 28 Maio de 1926, as liberdades fundamentais são suprimidas e fascizados os sindicatos. O 1º de Maio é proibido e as iniciativas que os trabalhadores, um pouco por todo o lado, tentam concretizar são alvo da mais feroz repressão policial. Por essa razão, a jornada do 1º de Maio alia, crescentemente, a luta pelo Pão, pela Paz e pela Liberdade à contestação do regime. Na longa noite fascista, o 1º de Maio de 1962 fica a constituir um raio de luminosa esperança. Nesse dia, em Lisboa, Porto, Setúbal e outras localidades, dezenas de milhares de pessoas saem à rua, protestando contra a falta de liberdades, contra a miséria e contra a guerra colonial que eclodira no ano anterior e que havia de vitimar e mutilar milhares e milhares de jovens trabalhadores. Também nesta altura cerca de 200 mil assalariados rurais do Alentejo e do Ribatejo entram em greve, conseguindo, desta maneira, impor aos latifundiários e ao fascismo a jornada de 8 horas. Punha-se fim, finalmente, ao trabalho de sol a sol.
O edifício da ditadura estremece, mas há-de demorar mais uma dúzia de anos a ruir. Disso se encarrega, em boa hora, o Movimento das Forças Armadas que, interpretando os anseios de liberdade, democracia e justiça social do povo, toma em mãos o derrube do fascismo e devolve as liberdades aos portugueses. O acto corajoso, cometido pelos dos jovens oficiais das Forças Armadas em 25.Abril.1974, é inequivocamente referendado pelos trabalhadores e pelo povo portugues, cinco dias depois, nas grandiosas manifestações do 1º de Maio, convocadas pela Intersindical Nacional (hoje, CGTP-IN). Foi o fim do corporativismo e a consagração, de facto, da liberdade sindical no nosso país.
1º DE MAIO 74: DO GOLPE À REVOLUÇÃO CONFIRMADA
O 1º de Maio de 1974 impulsionou uma dinâmica revolucionária que conduziu a profundas transformações políticas, económicas, sociais e culturais. Desencadeou, pode dizer-se, um processo verdadeiramente revolucionário, responsável por um período de desenvolvimento social e humano ímpar no nosso país.
Lisboa vestiu-se de Luz (como hoje), as ruas decoram-se de mil cores. Cantavam hinos, faziam promessas como se fossem juras de amor. Descobre-se um futuro diferente. Todos são donos das suas vidas. Os carros são poucos para o povo que saiu à rua em eufórica procissão. As ruas apertadas para a alegria que pairava no ar. Sentimentos fraternos evadiam de todos os rostos. Havia uma comunhão plena de esperança jubilada em gestos de vitória. Finalmente fruia-se Liberdade!
O feriado que se celebra hoje no 1 de Maio (aprovado em 27 de Abril) foi instituído como feriado nacional obrigatório no dia 30 de Abril de 74. Nesse dia, 1 de Maio de 1974, cerca de 1 milhão de pessoas celebrou euforicamente, em manifestações por todo o país, o Dia do Trabalhador. Foram as primeiras manifestações livres desde há quase 50 anos. O 1.º de Maio amanhece com um sol radioso, prenunciando uma grande festa. Era a primeira vez que se celebrava o dia do trabalhador em liberdade. O desfile até ao estádio 1.º de Maio, no INATEL em Lisboa tinha início no Martim Moniz, subindo a Av. Almirante Reis em direcção ao dito Estádio. Com as ruas apinhadas de gente, o dia passou-se de baixo e para cima, com a chegada de mais e mais pessoas a desfilar até ao fim. A esperá-las as palavras empolgadas de Mário Soares e Álvaro Cunhal.
Foi um dia inesquecível: as gargantas enrouqueceram; reinventaram-se as palavras de ordem gritadas. Nunca mais houve o 1º de Maio assim. Era o impacto avassalador da Liberdade.
É um dia a memorizar até pela indescritibilidade das emoções. Fica a saudade. Finalmente, já não era preciso ir ao futebol para gritar «LIVRE».

Sindrome de alienação parental: quando os filhos são as vítimas



20% das crianças em regulação de poder paternal são vítimas de síndrome de alienação.
Bem o ilustra o documentário brasileiro A Morte Inventada.
É o drama dos filhos que são vítimas de alienação parental (manipulação de um dos pais para odiar o outro).
Apesar de não haver números oficiais os especialistas avisam que o Síndrome da Alienação Parental está a crescer em Portugal. De tal forma, que ainda esta semana, em Setúbal se organizou um debate para marcar o Dia Internacional para a Consciencialização deste Síndrome.
O juiz desembargador Madeira Pinto estima que este fenómeno afecte 15 a 20% das crianças envolvidas em processo de regulação do poder paternal.
Também a psicóloga Teresa Paula Marques chama a atenção para a possibilidade de que "com o aumento exponencial de divórcios, o SAP também aumente". Acrescentando que "actualmente estima-se que uma criança em cada quatro vai ter de enfrentar o divórcio dos pais", pelo que este síndrome pode vir a afectar muito mais crianças portuguesas.
Cristina , 40 anos, separou-se em 2007 e a relação com o ex-marido, pai dos seus dois filhos, sempre foi conflituosa. Depois de passar uma fase em que os filhos não queriam estar com o ex-marido, a administrativa deparou-se com o pedido do filho para deixar Lisboa e regressar à Guarda para viver com o pai. Cristina acabou por aceder, mas o ex-marido nunca cumpriu o regime de visitas estipulado pelo tribunal. O processo está a decorrer no Tribunal da Guarda e Cristina não esquece as palavras do juiz quando entregou o filho ao cuidado do ex-marido. "O juiz escreveu que uma criança de 11 anos [idade do filho quando foi viver com o pai] já não precisava dos cuidados da mãe. Fiquei muito magoada com estas palavras. Como se pode dizer isso de uma criança de 11 anos?", questiona.
O caso de Cristina é raro. Normalmente, os homens são os principais afectados pelo SAP, uma vez que são as mães que ficam com a guarda parental. Segundo dados de 2006 (últimos dados conhecidos) dos 15 574 menores com guarda decidida em tribunal, 12 214 foram decisões favoráveis à mãe. "A minha ex-mulher começou logo a exigir que eu não podia ver os meus filhos ao fim de semana e só podia ter nove dias de férias com eles por ano. Durante a semana ia buscá-los às 19.00 e tinha de entregá-los às 20.00". O conflito de Rogério começou há 9 anos e hoje os seus filhos já têm 15 e 12 anos. No meio dos vários incumprimentos das visitas, já não vê os filhos há 1 ano, até porque estes começaram a recusar-se a estar com ele. "Os meus filhos estão formados e eu não tive nenhum contributo", lamenta o engenheiro de 47 anos.
A manipulação dos filhos para que estes odeiem os pais sempre existiu, mas o fenómeno foi identificado nos anos 80, pelo psiquiatra americano Richard Gardner, que o classificou de síndrome de alienação parental. Só recentemente os juízes portugueses começaram a aceitar este síndroma quando se disputa os menores em tribunal. Mas com muitas cautelas, pois, segundo os magistrados "são casos em que é difícil saber onde está a verdade"
Os juízes admitem dificuldades em decidir estes casos.
A alienação parental consiste num corte de relações entre as crianças e um dos progenitores, promovido pelo progenitor que vive com elas. Assim, os juízes confessam que a maior dificuldade é saber onde está a verdade. Até porque estes casos envolvem trocas de acusações entre as partes às vezes até suspeitas de abusos sexuais. "O grande drama é perceber quem diz a verdade. A mãe diz que a criança não quer ir, o pai diz que a mãe não deixa a criança ir", refere o juiz do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, Celso Manata.
Mas o facto do síndrome de alienação parental não estar ainda incluído no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais da Organização Mundial de Saúde também faz com que alguns juízes não o reconheçam como entidade clínica, diz a psicóloga Teresa Paula Marques.
O juiz Celso Manata aponta ainda o dedo às perícias:"As perícias são demoradas e depois a mãe vai fazer a avaliação psicológica a um lado, o pai a outro e a criança a outro e é o tribunal que tem de fazer a ligação entre eles. Ora, os juízes não têm formação para isso". A demora neste tipo de processos e a dificuldade em descobrir quem fala verdade leva o juiz a apelar às mães para que estas isolem os seus dramas com o ex-companheiro das crianças. Isto porque, os mecanismos de segurança que o tribunal tem de aplicar podem apenas servir para penalizar as crianças e os pais com um afastamento desnecessário, acrescenta o juiz.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Homens de Abril antes de Abril




Memoriável foi o colóquio 'O Regime e a Ala Liberal', realizado em 2008. João Salgueiro, secretário de Estado do Planeamento de Caetano, recordou a derradeira conversa que teve com o último Presidente do Conselho do Estado Novo: "A última vez que estive com ele foi na quarta-feira de cinzas de 1974, já depois do golpe das Caldas da Rainha. Marcelo Caetano disse-me: 'Acabo de pedir a demissão [ao Presidente da República]. É a terceira vez que o faço e desta vez não volto atrás'. Mas depois voltou atrás. Foi pena". Salgueiro disse que "aceitei o convite na convicção de que Marcelo Caetano era a pessoa indicada para liderar essas mudanças". Durante 2 anos contactou com o Presidente do Conselho quinzenalmente. Os primeiros "arrepios no caminho" notaram-se logo em 1969. Aquando da formação das listas da União Nacional para as eleições, alguns dos convites a personalidades mais independentes e críticas já não foram aceites, designadamente em Lisboa. Aliás, 1969 foi um ano decisivo. Lembrou a visita de Caetano a Angola, Moçambique e Guiné, que tanto o entusiasmou. E do resultado das eleições, que "alterou radicalmente o comportamento de Marcelo Caetano". Sobretudo porque, ao contrário do que esperaria, os resultados da CDE foram largamente superiores aos da CEUD, a frente mais moderada, liderada pelos socialistas. "O teste foi a remodelação governamental de 1970, que constituiu um passo atrás". Viria a pedir a demissão do Governo no Verão de 1971. Salgueiro historiou a constituição da SEDES, "uma ideia que germinou logo a seguir às eleições de 1969. Foi, ela própria, um teste. Pedimos autorização para a sua constituição em Fevereiro de 1970, mas ela só veio no final do ano..." Foi numa iniciativa pública da SEDES, por exemplo, que o homem-forte da CUF, José Manuel de Mello, "defendeu uma evolução da situação colonial, bem como a não reeleição de Américo Tomás" para Presidente da República.
Também Francisco Pinto Balsemão sublinhou que "estávamos convencidos que era possível fazer uma reforma e conduzir o país à democracia". Quando Marcelo Caetano chegou ao poder, em 1968, "tinha o país na mão. Não precisava das eleições de 1969. E estava aberto a que fossem eleitos deputados da oposição". A campanha, acentuou o ex-deputado liberal, "decorreu totalmente em liberdade". O proprietário do Expresso e da SIC contou que, nas suas conversas iniciais com Caetano, "ele defendeu para os territórios africanos um projecto confederal, do tipo da Commonwealth. Mais tarde, quando lhe voltei a falar do assunto, a resposta foi sintomática: "Aonde é que isso já vai!" Enquanto deputado, Balsemão chegou a ir a Peniche, visitar alguns presos políticos, tentando interceder no sentido da respectiva libertação, uma vez cumpridas as respectivas penas. Explicou que foi uma das experiências "mais marcantes" da sua vida política. Tanto mais que, em 1975, na Assembleia Constituinte, cruzou-se com "José Magro, um dos presos que eu tinha visitado e que era, então, deputado comunista e vice-presidente da Assembleia. Fez de contas que nem me conhecia..." Contou pormenores das suas relações com Sá Carneiro, "que era muito individualista" e que estava a seu lado no hemiciclo. Expôs as ligações exteriores da ala liberal - à Igreja, ao mundo empresarial, às embaixadas, ao Governo, à própria oposição, aos meios de comunicação social. Aqui, notou que "não me lembro de ter sido alguma vez entrevistado pela RTP ou até pela Rádio Renascença". Referindo-se à eleição presidencial de 1972 (por um colégio eleitoral de que fez parte), confirmou os contactos com o general Spínola. Num primeiro momento, disse, "tentámos que Américo Tomás não se voltasse a candidatar". E confirmou que o próprio José Manuel de Mello apoiou essas diligências. Numa segunda fase, "houve quem falasse com os generais Spínola e Kaúlza. Ambos foram sondados" para se candidatarem ao cargo". "Ambos disseram que não" - lamentou.
Mota Amaral recordou a primeira reunião dos candidatos a deputados "com Marcelo Caetano no Palácio de São Bento, antes de iniciar a campanha. Foram marcados os parâmetros da nossa colaboração. Recordo que Marcelo admitia que pudesse haver deputados eleitos pela oposição" - o que, como se sabe, não aconteceu. "O que nos movia?", perguntou o ex-presidente da Assembleia da República. "Uma transição do regime para a democracia. O regime estava anquilosado e manifestamente não estava apto para enfrentar os problemas - entre eles a questão ultramarina, que viria a condicionar todos os demais". Referindo-se ao projecto de revisão constitucional apresentado pelos deputados liberais, que foi liminarmente chumbado pela maioria da Assembleia Nacional, o actual deputado do PSD sublinhou que só teve o apoio de três procuradores à Câmara Corporativa - Maria de Lurdes Pintasilgo, André Gonçalves Pereira e Diogo Freitas do Amaral. Quanto à questão colonial e ao projecto de uma "autonomia progressiva e participada", proposta por Caetano, reconheceu que "estava fora do tempo. Talvez fosse possível após a segunda Guerra Mundial". Já não nos anos 70.
A presidência do colóquio esteve a cargo de Rui Vilar. "Foi um tempo rico em experiências, de oportunidades e de frustrações. Mas tenho dúvidas que tenha sido um tempo de transição". E explicou: "se o tivesse sido, não teria havido a ruptura" do 25 de Abril. Preferiu falar de "alguma descompressão política". Recorrendo à metáfora da lagarta e da borboleta, disse que, se houve projecto de transição, "rapidamente encasulou, sem que tenha havido metamorfose". O presidente da Fundação Gulbenkian contabilizou 20 deputados da ala liberal. No essencial, os que subscreveram o projecto de revisão constitucional de 1971, da autoria de Sá Carneiro, Pinto Balsemão e Mota Amaral. Nessa altura, já "o líder carismático do grupo", José Pedro Pinto Leite, havia falecido. Quanto a Melo e Castro, chamou-lhe "o deus ex machina" da "ala liberal", que também morreu prematuramente. Rapidamente, porém, "a criatura evoluiu à revelia do criador". O grupo "não era homogéneo". Ainda assim, Vilar assinalou alguns "traços comuns". Eram relativamente jovens, politicamente inexperientes (ou quase), predominantemente juristas e ligados aos movimentos pós-conciliares da Igreja Católica. Umas das tribunas da ala liberal, foram o jornal Expresso e a SEDES.
Elmano Alves, considerado o braço direito de Marcelo Caetano na ANP, historiou com detalhe como procurou "transformar aquela associação cívica", como lhe chamou. Acusou o congresso da Oposição em Aveiro, em 1973, de ter sido "totalmente dominado pelo Partido Comunista". A estratégia ali aprovada "resultou dos acordos celebrados em Moscovo entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, para apresentar uma frente única às eleições legislativas de 1973". Detalhou em seguida a forma como decorreu o Congresso da ANP em Tomar, no mesmo ano. Quanto à constituição das listas da ANP em 1973, "procurámos não repetir os mesmos erros". Dos deputados liberais que haviam participado na anterior legislatura, "continuaram apenas dois". Um deles foi Mota Amaral. "Foi o prof. Marcelo quem me pediu para falar com o dr. Mota Amaral, para lhe dizer que tinha muito gosto em que ele continuasse como deputado". Elmano Alves contou ainda as condições em que foi preso, duas vezes, depois do 25 de Abril. "No dia 26, ainda fui à sede da ANP. Fui o último homem a fechar a porta e a entregar a chave".
Nogueira de Brito também não teve "nada a ver com a ala liberal", a que chamou "espécie de ala dos namorados do prof. Marcelo Caetano". Membro do Governo de Caetano até ao 25 de Abril, foi subsecretário de Estado do Trabalho e Previdência e, a partir de 1972, secretário de Estado do Urbanismo e Habitação. Só foi eleito deputado em 1973, "já como inscrito na ANP". Quando foi para o executivo, "aceitei sem grandes hesitações e até com algum entusiasmo". O ex-deputado e dirigente do CDS reconheceu, porém, que teve várias aproximações com a ala liberal", devido às alterações que promoveu na legislação sobre os sindicatos nacionais e a contratação colectiva, mas que viriam mais tarde a ser travadas. "Foi uma desilusão para todos os que tinham responsabilidades no sector". Também a revisão constitucional de 1971 "foi uma enorme desilusão".

Abril e o poder do sonho de um Povo



«Nenhum homem é uma ilha isolada. Cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa ficará diminuida, como se fosse a casa do teu amigo a tua própia casa. A morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E, se dobram os sinos, não perguntes por que dobram os sinos - eles dobram por TI» John Donne. «Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolo, Catilina, é vós outros dos antigos Que contra vossas pátrias com profano Coração vos fizeste inimigos: Se lá no reino escuro de Sumano Receberdes gravíssimos castigos, Dizei-lhe que também dos Portugueses Alguns traidores houve algumas vezes» (Luiz de Camões - Lusíadas, IV, 58)
Muitos séculos depois de Camões e muitos anos volvidos após o 25 de Abril de 1974, os poderes «ocultos» podem, ainda, mascarar as pantominas dos vira-casacas de certos quadrantes da sociedade portuguesa ... Mas tentar mascarar a verdade genuína do actual quotidiano dos portugueses, principalmente daqueles que sofreram e sobreviveram aos anos da "ditadura" da religão, guerra do ex-ultramar e a 48 anos de Governo fascista, que lhes roubou parte dos sonhos da juventude e lhes incendiou a infância, além de grave injustiça, é blasfémia.
Serão os sonhos determinantes na vida dos seres humanos?...Alguns sonhos podem ser uma espécie de luz que alumia os caminhos mais sinuosos, mesmo quando a claridade de cada dia parece escapar às turbulências dos tempos desta vida. levados por um sonho assim, os capitães de Abril de 1974, no "abraço" do movimento das Forças Armadas, violaram todas as "algemas" e abriram todas as"janelas" para uma nova era...a era da liberdade. Porém, há quem diga ainda hoje que, de "quando-em-quando", se ouve o "troar" dos canhões da barbárie. Outros asseguram que não. O debate violento que ainda hoje travam na luta pelo poder põe a nu uma questão talvez essencial para o futuro da humanidade: Se os direitos do homem ainda não são universais, poderão ao menos vir a sê-lo..? Que povo é este que povo...

MUDANÇAS DE ABRIL



Principais mudanças operadas pela “Revolução dos Cravos” em Portugal:
A abolição da censura - Era a forma institucionalizada de supressão, pelas autoridades, de material considerado imoral, herético, subversivo, difamatório, violador do segredo de estado ou que fosse de algum modo ofensivo. Exercia-se sobre a literatura, o teatro e os meios de comunicação social. Era o “lápis azul”. A Constituição de 1933 (em vigor até 1974) previa a censura para os casos de natureza política ou social, que pudessem pôr em causa a ordem pública. Após a revolução de 1974, a censura foi abolida da Constituição portuguesa e foi publicada nova lei de imprensa (1975), que protege a liberdade de expressão e informação.
O fim da Guerra Colonial e a descolonização - Com início no norte de Angola, em Fevereiro de 1961, a Guerra Colonial apenas terminou quando o regime de Marcello Caetano, foi derrubado a 25 de Abril de 1974, e com a abertura do processo de descolonização nos anos de 1974 e 1975.
Ao longo de treze anos de luta militar, Portugal enviou para África centenas de milhares de soldados, com um número oficial de mortos que rondou os 9000 homens, e dezenas de milhares de feridos, a juntar a um número ainda superior de baixas entre guerrilheiros e civis guineenses, angolanos e moçambicanos.
Em 1974, ao derrubarem o regime, os «Capitães de Abril» faziam da descolonização um dos seus objectivos principais. A braços com uma grande indefinição política interna, o novo regime português reconheceu, em 1974, a independência da Guiné-Bissau e de Moçambique e, em 1975, a de Cabo Verde e Angola. Só no Verão de 1975 cessaram definitivamente os combates envolvendo portugueses em África. Chegava a hora da retirada, encerrando-se finalmente o longo ciclo do império.
Extinção da PIDE/DGS (Polícia de Informação e Defesa do Estado/Direcção-Geral de Segurança) - Para garantir que todos “pensassem” de forma análoga à do governo, o Antigo Regime possuía uma polícia política desde 1945. O seu objectivo era travar todos os possíveis movimentos contrários às políticas do regime. Os que conspirassem contra o Estado Novo eram, na maioria das vezes, presos. Com a Revolução de 25 de Abril de 1974, a PIDE/DGS foi extinta.
Extinção da Mocidade Portuguesa - A Mocidade Portuguesa era uma organização oficial juvenil criada em 1936, dirigida por um comissário nomeado pelo Ministério da Educação Nacional e com um carácter notoriamente paramilitar. Os seus objectivos enquadravam-se no espírito do regime da época, patente no regulamento da organização: “estimular o desenvolvimento integral da capacidade física da juventude, a formação do carácter e a devoção à pátria no sentimento da ordem, no gosto da disciplina e no culto do dever cumprido”. Esta instituição entrou em declínio em 1971 e acabou por ser extinta após o 25 de Abril de 1974.
Extinção da Legião Portuguesa - A Legião Portuguesa era uma formação de milícias criada em 30.Set.1936, após a eclosão da guerra civil em Espanha, e inspirada na legião nacionalista aí criada por Franco. Complementando a Mocidade Portuguesa, os seus propósitos eram de «organizar a resistência moral da nação e cooperar na sua defesa contra os inimigos da pátria e da ordem social». Os filiados, portugueses do sexo masculino com mais de 18 anos, prestavam juramento, comprometendo-se à acção política, cívica e moral. A organização estendia-se a todo o território português (que incluía as colónias ultramarinas), constituindo-se em pequenos grupos, integrados em formações maiores, fixadas nos principais aglomerados urbanos. Dirigida por uma junta nomeada pelo governo de então, prestava instrução militar. Em 1958 passou a ter a cargo a organização nacional de defesa civil do território. Prestava serviços como polícia de informação, com incidência em comícios oposicionistas ou actividades editoriais consideradas «suspeita» pelo regime. A organização foi extinta logo após a revolução de 25 de Abril de 1974.
As nacionalizações e a reforma agrária - A Revolução de Abril provocou uma viragem à esquerda nas políticas do país. Uma das consequências desta viragem foram as nacionalizações que se seguiram ao 25 de Abril e que colocaram nas mãos do Estado muitas empresas portuguesas. A Constituição Portuguesa de 1976 previa a expropriação de bens de grandes latifundiários e empresários sem obrigatoriedade de indemnizações, ponto que foi alterado na revisão constitucional de 1982.
PERÍODO REVULOCIONÁRIO - Afastados os principais responsáveis do regime, seguiu-se a libertação dos presos políticos e o fim da censura sobre a imprensa. Regressaram a Portugal inúmeros exilados políticos, entre os quais o dirigente comunista Álvaro Cunhal e o socialista Mário Soares. No programa do MFA apresentado ao país após o golpe, o mote dos «três D» (democratizar, descolonizar e desenvolver) resumia as aspirações dos militares, a que aderiram de imediato as forças políticas em constituição. Entretanto, os oficiais generais Costa Gomes e António de Spínola haviam sido atraídos para o movimento. O MFA entrava em compromisso com a hierarquia militar e desse compromisso saía uma Junta de Salvação Nacional. Consumado o golpe, a sucessão vertiginosa dos acontecimentos mostrava que se estava a entrar num período propriamente revolucionário. Com efeito, os «três D» teriam leituras diferentes por parte dos intervenientes no processo político, e essa divergência esteve na base da intensa luta social e política que o país conheceu em seguida. Para além das querelas entre os partidos políticos, foram complexas as lutas entre estes e os militares, e no interior das várias facções do próprio MFA, que a partir de muito cedo desempenhou um papel político autónomo. A Junta de Salvação Nacional concentrou o poder até Maio de 1974, perdeu progressivamente capacidade de acção, o mesmo sucedendo com o general Spínola, obrigado a afastar-se da presidência da república na sequência dos acontecimentos de 28 de Setembro, em que estiveram presentes sobretudo divergências quanto ao ritmo e à forma de fazer a descolonização.
NORMALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA - Depois do 25.Nov.1975 e da contenção da ala mais radical do Conselho da Revolução, deram-se as primeiras eleições legislativas livres para a Assembleia da República (25.Abril.1976), vencidas pelo Partido Socialista (liderado por Mário Soares: um dos protagonistas da oposição ao antigo regime antes de 1974 e ao Partido Comunista durante os anos quentes da revolução(. Acabava-se o ciclo dos governos provisórios e entrava-se numa via de normalização democrática.
A LIBERDADE TORNARA-SE, PARA SEMPRE, O SÍMBOLO DE ABRIL.

Salgueiro Maia: De homenagens (tardias) está o Inferno cheio!



A 28 de Abril de 1889 nascia António de Oliveira Salazar, a omnipotente figura do Estado Novo. Ingressou como Ministro das Finanças nos governos da ditadura militar a partir de 1928, e implantou um regime autoritário de fachada eleitoral, com um partido único, uma polícia política, censura prévia e a repressão das oposições políticas. Nascia o Estado Novo, uma ditadura do chefe de governo com uma Constituição corporativa (1933). Alicerçado num estado forte, e com uma austera política deflacionista e de contenção orçamental, Salazar governaria o país sob o lema “orgulhosamente sós”, marcando profundamente o século XX português. Depois de Salazar abandonar o poder em 1968, devido à queda de uma cadeira e consequente hemorragia cerebral, os destinos do regime ditatorial foram entregues a Marcello Caetano, que viria a ser derrubado no dia 25 de Abril de 1974.
SAGUEIRO MAIA - No dia 1 de Julho de 1944 nasce, em Castelo de Vide, Fernando José Salgueiro Maia, o principal protagonista da Revolução dos Cravos. A coluna militar que partira de Santarém sob a liderança de Salgueiro Maia chega ao Terreiro do Paço. Os carros de combate cercam os ministérios, a divisão da PSP aquartelada no Governo Civil, a Câmara Municipal, a Rádio Marconi e o Banco de Portugal. O posto de comando é estabelecido no centro da praça com uma chaimite e uma autometralhadora EBR. À frente das operações continua Salgueiro Maia, que comunica a Otelo Saraiva de Carvalho o sucesso na ocupação de Toledo (Terreiro do Paço) e no controlo de Bruxelas (Banco de Portugal) e Viena (Rádio Marconi).
Pouco depois das 06h00 – As forças do regime enviam para o Terreiro do Paço um pelotão de AML/Chaimites do Regime de Cavalaria 7. No entanto, o alferes miliciano que comanda o pelotão, depois de falar com Salgueiro Maia, acaba por aderir ao movimento revolucionário. Entretanto, outros dois pelotões, desta vez de Lanceiros 2, aderem também às forças da revolução. Entretanto, o ministro do Exército e outros elementos do Governo reúnem de emergência no Ministério do Exército para encontrar uma solução que faça face à rebelião militar.
A fragata “Almirante Gago Coutinho”, que na altura paticipava num exercício militar da NATO, recebe ordens para abandonar as manobras no Atlântico e entrar no Tejo, com o objectivo de abrir fogo contra as forças revolucionárias estacionadas no Terreiro do Paço.
Cerca das 09h00 – A fragata surge no estuário do Tejo, em frente ao Terreiro do Paço. No morro do Cristo-Rei, uma bateria da Escola Prática de Artilharia segue todos os seus movimentos.
Sob a ameaça de tal poder de fogo, Otelo ordena a Salgueiro Maia que proteja os militares e os tanques debaixo das arcadas da Praça do Comércio.
Cerca das 12h00 – O comandante Vítor Crespo consegue que seja anulada a ordem de abrir fogo e que a fragata vá fundear em frente ao Alfeite.
Depois de vencida a ameaça da “Gago Coutinho”, Salgueiro Maia vê-se a braços com um novo ataque das forças do regime. Cinco carros de combate M/47 de Cavalaria 7, atiradores do Regimento de Infantaria 1 da Amadora e alguns soldados da PM de Lanceiros 2 são as novas armas enviadas pelo Governo. A coluna é comandada por um brigadeiro que recusa o diálogo com Salgueiro Maia e manda abrir fogo. Ninguém lhe obedece e a coluna acaba por se juntar a Salgueiro Maia. Depois de ser informado, pelo posto de comando, de que Marcello Caetano está refugiado no quartel do Carmo, Salgueiro Maia deixa as suas forças a guardar os ministérios e dirige-se para o Carmo. No Rossio, depara-se com mais uma coluna militar enviada pelo regime para fazer frente aos revoltosos. Também esta coluna acaba por se juntar a Maia, já que o próprio comandante da mesma está com a Revolução, apesar de ter recebido ordens para prender o capitão Salgueiro Maia.
Cerca das 12h30 – Toda a baixa está repleta de populares que encorajam os soldados e lhes colocam cravos vermelhos nos canos das G-3. Salgueiro Maia já está no Carmo e recebe ordens do posto de comando para abrir fogo sobre o quartel do Carmo, já que a guarnição que guarda Marcello recusa a render-se e a entregar o chefe de Governo. Mas o capitão sabe que o disparo das autometralhadoras num largo repleto de populares iria provocar muitas mortes. Assim, opta por disparar armas automáticas para a parte superior do quartel. Maia entra no edifício duas vezes. Da primeira vez, consegue entrar mas não consegue a rendição. Da segunda vez, exige falar com o Presidente do Conselho. Salgueiro Maia pede a Marcello Caetano a sua rendição formal e imediata.
Abril é sempre tempo de homenagear Salgueiro Maia e de lembrar as injustiças a que foi devotado pelos políticos que hoje ocupam altas cadeiras, ditas "democratas". É tempo de recordar a valentia e coragem de um homem,tardiamente reconhecida pelos que se dizem "democratas". Mas que ignoraram aquele homem simples, de convicções e rectidão moral, que conduziu a coluna militar daqui, Santarém, até Lisboa para derrubar o regime. "Há os estados socialistas, os estados capitalistas e…. há o estado a que chegámos! Eu proponho-me a acabar com o estado a que chegámos! Quem quiser vir, vai formar lá fora, na parada. Os que não quiserem, ficam aqui. Há dúvidas?…” E foi com estas palavras que se dirigiu aos soldados na noite de 24 para 25. Todos rumaram a Lisboa. Os que ficaram, foi para fazer guarda ao quartel, porque segundo os relatos directos de quem viveu esse dia, estavam todos prontos a seguir o Capitão Salgueiro Maia. E importa dizer sempre que não houve sangue derramado. Os 5 mortos da Rua António Maria Cardoso, foram assassínios da PIDE. Por ironia do destino, um desses PIDES que matou cidadãos na rua, recebeu de Cavaco Silva enquanto primeiro ministro uma pensão “por serviços excepcionais ou relevantes prestados ao país”, pensão essa que tinha sido anteriormente negada a Salgueiro Maia pelo mesmo primeiro ministro.
Para António Sousa Duarte - autor de uma biografia sobre aquele capitão de Abril, intitulada "Salgueiro Maia - Um homem da Liberdade" -, a homenagem, feita em Junho do ano passado, por Cavaco Silva ao capitão de Abril foi "justa", mas "tímida, envergonhada, discreta e muito fugaz", sendo ainda "um erro em cima de outro erro", ou seja, "um duplo erro". ASD considera que, embora não se pedisse hoje ao Presidente da República que fizesse um "pedido de desculpa" em relação ao que fez há 20 anos - quando, enquanto primeiro-ministro, recusou a atribuição de uma pensão àquele capitão de Abril - ter-lhe-ia "bastado, com humildade, dizer que, em circunstâncias análogas, não faria o que fez há 20 anos", foi, pois, a "assumpção" e o "reconhecimento" de "um erro" e "de homenagens póstumas está Salgueiro Maia farto". ASD disse também que a homenagem do actual PR foi "tenuamente anestesiada", o que "prova" que "continua tudo como dantes". Em 1988, então primeiro-ministro, Cavaco Silva recusou atribuir a Salgueiro Maia uma pensão que tinha sido pedida pelo capitão de Abril pelos "serviços excepcionais e relevantes prestados ao país" devido à sua participação no 25 de Abril, para a qual nunca obteve resposta, segundo declarações da viúva de Salgueiro Maia. A recusa ou a falta de resposta ao pedido de Salgueiro Maia só vieram a público 3 anos depois do pedido ter sido feito, quando Cavaco Silva concordou com a atribuição de pensões a dois ex-inspectores da PIDE, um dos quais estivera envolvido nos disparos sobre a multidão concentrada à porta da sede daquela polícia política.
Só em 1995, já com António Guterres como primeiro-ministro, Salgueiro Maia viria a receber uma "pensão de sangue".
Indigna-se o PSD quando o afastam das causas de Abril. Talvez se perçeba porquê. Afinal, o homem que defendem, de novo, para assumir o cargo de Presidente da República, também ficou a fazer parte da história de Abril. Mas não por boas razões. Há é quem tenha memória curta.

terça-feira, 27 de abril de 2010

A homossexualidade no Estado Novo



Como era ser homossexual no Estado Novo? Como era viver no reino do não dito e do semipermitido? As respostas encontradas pela Pública - com a ajuda de estudiosos e de homossexuais que viveram sob estes anos de chumbo, alguns dos quais ainda hoje aceitam apenas falar sob anonimato - revelam um quadro repressivo feroz para a generalidade dos homossexuais apanhados pelas rusgas da polícia e uma permissividade calada, que ignora, ou finge que não existe, a prática por uma elite que, pelo seu estatuto social, está acima da moral e sobretudo da lei. "Não se fala e não existe. A regra é esta. A homossexualidade era o segredo que toda a gente sabia. E, como toda a gente sabia, ninguém dizia", afirma António Fernando Cascais, professor universitário e um dos mais antigos activistas da defesa dos direitos dos homossexuais em Portugal. "Há um tratamento diferente de acordo com a classe social, uma diferenciação de tratamento que vem de antes e que se intensifica com o Estado Novo", explica Cascais, que tem a mais completa base de dados sobre História da homossexualidade em Portugal: "Normalmente, as classes mais baixas ¬¬- que são arrebanhadas na rua - são humilhadas nas esquadras e espancadas em público, passeadas nas ruas, postas a lavar o chão. Já para as famílias das elites há um sentimento de permissividade, de serem vistos como pessoas que não têm de partilhar da moral comum, a moral burguesa." Havia, pois, liberdade para quem tinha estatuto social e dinheiro. "Nós tínhamos dinheiro para pagar e para fazer muita coisa - pagar o silêncio da sociedade e pagar o silêncio da polícia", assume António Serzedelo, professor reformado e dirigente da Opus Gay, que em Maio de 1974 foi co-autor, com amigos de Lisboa e do Porto - entre os quais o sociólogo José António Fernandes Dias - do manifesto Liberdade para as Minorias Sexuais, do Movimento de Acção dos Homossexuais Revolucionários (MAHR).
A lei era clara. A homossexualidade começou a ser punida pelo Código Penal a partir da revisão de 1886, através dos artigos 70.º e 71.º, que perdurarão quase 100 anos - até 1982. Sem nunca mencionar a palavra, prescreve-se que aos que "se entreguem habitualmente à prática de vícios contra a natureza" passam a ser "aplicáveis medidas de segurança", como o "internamento em manicómio criminal", "internamento em casa de trabalho ou colónia agrícola", "liberdade vigiada", "caução de boa conduta" e "interdição do exercício de profissão".
A condenação da homossexualidade vai ser apertada através das leis. A "lei de Julho de 1912 apresentava uma definição de 'vadio' próxima da do Código Penal e que especificava que se aplicava ao homossexual", escreveu a antropóloga e professora universitária Susana Pereira Bastos em O Estado Novo e os Seus Vadios (Dom Quixote, 1997). Uma determinação que passará a ser aplicada em 1945 pelos Tribunais de Execução de Penas. A Mitra, criada em 1933 para receber mendigos e vadios, é o lugar de internamento de muitos dos homossexuais apanhados pela polícia - isso durou até 1952, quando foi transformada em instituição parapsiquiátrica. Outro lugar era a Colónia de Trabalho do Pisão, segundo Susana Pereira Bastos. Cascais refere que muitas mulheres homossexuais foram "deportadas dentro do país para Castro Marim".
Na década de 1920, há na Europa, sobretudo na Alemanha, a "expressão de uma cultura homossexual literária e uma discussão científica sobre a homossexualidade" que em Portugal é acompanhada pelas "elites sociais e culturais", diz Cascais. Mas o vanguardismo literário português vai ser cortado ainda antes do 28 de Maio de 1926 - golpe de Estado, liderado por Gomes da Costa, que inicia os 48 anos da ditadura portuguesa e que levará Salazar ao poder - por um movimento que anuncia o esteio cultural e mental de adesão ao salazarismo.
Liderada por Pedro Theotónio Pereira, a Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, movimento católico criado em 1923, consegue que o Governo Civil interdite os livros de poesia homossexual de Judith Teixeira (Decadência), António Botto (Canções) e Raul Leal (Sodoma Divinizada). A polémica levará à ostracização destes três poetas. Raul Leal vivia em Paris, mas António Botto e Judith Teixeira foram perseguidos. Botto foi demitido da função pública e acabou por fugir para o Brasil com a mulher, que no Rio de Janeiro o acompanhou até ao fim. Doente, sofrendo delírios da sífilis, morreu na miséria em 1959. Cascais recorda que a sua pobreza era tal que "comia farinha com água". O poeta tentou, por todos os meios, voltar a Lisboa, ao ponto de escrever ao cardeal Gonçalves Cerejeira, chefe da Igreja católica portuguesa, dedicando-lhe o poema Fátima e oferecendo a letra do hino do 13 de Maio, o Ave, Fátima.
Judith Teixeira, por sua vez, foi gradualmente remetida ao absoluto silêncio até morrer, também em 1959, mas em Lisboa. Foi ainda mais maltratada do que Botto ou Leal, diz a historiadora Alice Samara. "[Fernando] Pessoa, no texto que escreve em defesa dos dois, não fala dela." A crítica que lhe é feita, à época, "é política e não literária". Essa ferocidade tem uma razão: "É uma mulher que quebra o pudor e afronta o homem. Até Marcello Caetano escreveu contra ela."
A partir daí e durante décadas, a homossexualidade exprime-se na literatura de forma cifrada, críptica: "Ninguém queria ter a sorte de Botto e de Teixeira", diz Cascais. "O próprio Eugénio de Andrade disse que não queria pagar em vida o que Botto pagou." Este quadro de autocensura nas artes só é quebrado pela geração dos surrealistas e por figuras como Mário Cesariny e Natália Correia, que, diz o professor e activista, "reconquistam uma liberdade para a homossexualidade que se amplia na geração de Ary dos Santos e mais ainda na geração de antes do 25 de Abril". Essa recuperação de espaço de criação homossexual é também construída pela poeta Manuela Amaral, lembra Maria Andrade, responsável pela Lilás.
"As artes estavam sujeitas a uma censura férrea e os homossexuais era onde mais ferozmente insidia a censura, isto desde que a expressão artística não estivesse ligada ao regime", prossegue Cascais. Mas "há pessoas que furam essa censura". Um deles é o actor e declamador João Villaret, que "expressa subtilmente a sua homossexualidade fazendo homenagem e recuperando para a sociedade portuguesa a poesia de António Botto, com o argumento de que quem lhe tinha aberto o caminho da declamação tinha sido Botto."
Mas se a moral de Theotónio Pereira passa a ser a bitola para a maioria da sociedade, entre os que não eram perseguidos pela polícia estavam os apoiantes do regime. "Havia gente reconhecida pelo regime que vivia a sua homossexualidade em privado", diz Cascais. O caso mais exemplar e apontado por vários dos entrevistados da Pública, entre os quais o dirigente do PCP Ruben de Carvalho, é o do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros durante o consulado de Salazar, Paulo Rodrigues. Mas há mais casos. Cascais lembra Virgínia Vitorino. "Nos anos 1930, ela escrevia uma poesia subtil, era dos autores mais vendidos e tinha um programa na rádio com audiência, onde fazia a apologia do regime, nomeadamente nas peças de teatro. E ninguém lhe tocava." Também a intelectual e escritora Edith Arvelos "nunca foi incomodada", sublinha Cascais. O escritor Eduardo Pitta conta que ela viveu em Moçambique com a cantora italiana Wanda del Ré e que depois de se separar veio para Lisboa e viveu em casa da escritora Fernanda de Castro, de quem escreveu as memórias. A própria "Fernanda de Castro e António Ferro eram um casal maldito pelas suas relações, mas eram protegidos porque eram do regime", diz Cascais.
O investigador explica que "o círculo de amizades de Fernanda de Castro, onde Natália Correia se inicia ainda jovem nas lides literárias e que se juntava, por exemplo, em férias no Algarve, era claramente um círculo de relações homossexuais". Cascais lembra "que a homossexualidade e a bissexualidade era uma coisa consentida e vivida em certos meios intelectuais com normalidade", e como prova aponta "uma entrevista do jovem [ainda jornalista] António Ferro, para o Diário de Notícias, feita em Paris à escritora Collette, em que, escreve ele, ela acabou a conversa à pressa porque tinha de ir a uma festa ter com uma menina que não podia perder". Ou seja, "há um lado de integração da homossexualidade no regime e de promoção de homossexuais pelo regime, nomeadamente pelo Secretariado de Propaganda Nacional do mesmo António Ferro, sendo o cineasta Leitão de Barros um caso notório". Ainda que existisse nas vanguardas culturais e nas elites certa abertura, ao quadro legal repressivo somava-se uma ciência ao seu serviço para enquadramento ideológico. "Não tivemos um Magnus Hirschfeld [cientista alemão defensor dos direitos dos homossexuais que viveu entre 1868 e 1935]", diz Cascais, para quem "a ciência portuguesa é conservadora, é a ciência da repressão e da medicalização - veja-se o caso de Egas Moniz". Foi o Nobel da Medicina quem, em Portugal, doutrinou as teorias médicas que definiram a homossexualidade como doença. É esta escola que será seguida e aprofundada por Arlindo Camillo Monteiro e Asdrúbal António de Aguiar, do Instituto de Medicina Legal de Lisboa, que estudam "casais lésbicos do povo, em que um dos membros assume um género masculinizado", revela Paulo Guinote, autor do blogue A Educação do Meu Umbigo, na sua tese de mestrado Quotidianos Femininos (1900-1933).
Perante a homossexualidade, mesmo nas elites, o tratamento psiquiátrico e os choques eléctricos são prática comum. "O caso mais célebre é o do bailarino Valentim de Barros, que morreu nos anos 1980, no Hospital Miguel Bombarda, onde viveu quase 50 anos", depois de ter sido internado em 1938. Este é um claro caso de repressão médica sobre alguém com mudança de identidade de género - Valentim Barros era travesti no dia-a-dia.
A repressão é enquadrada pelo discurso da "verdade científica", até porque a ciência serve, também, a ideologia. "A homossexualidade é subversiva para o Estado Novo porque foge à norma", diz Maria Andrade, da Lilás. Põe em causa um pilar da sociedade burguesa concebida pelo salazarismo. "De um modo diferente do rufião, o homossexual subvertia igualmente os valores de honra masculinos, confundia as identidades de género, perturbava os códigos que geriam as relações entre os dois sexos, recusava a instituição familiar, o pilar do Estado Novo", explica Pereira Bastos.

Liberdade...o destino humano


A vida humana (não a vida biológica) é vida construída, que se faz todos os dias. É uma tarefa. A vida animal tem todos os mecanismos de regulação – o sistema de instintos. Os instintos no homem são muito limitados. Em compensação, o homem tem a faculdade da imaginação, o poder mental de descobrir horizontes, a capacidade de projectar o seu percurso, de se projectar, como diria Sartre. É este pormenor que permite distinguir o que o homem é e quem é. Este simples enunciado faz a diferença.
O que o homem é procede de seus pais, avós, antepassados e dos elementos que integram o cosmos (oxigénio, hidrogénio, carbono…). Quem é o homem procede da educação, formação, cultura, hábitos, usos e costumes em que cresceu e se desenvolveu. Ora, desprovido de um sistema de instintos que regule a sua praxis, o homem decide, em cada momento da sua vida de acção, o que fazer. Com efeito, tem que optar entre múltiplas possibilidades que se lhe apresentam. A opção é um acto livre. Se, como dizia Karl Jaspers, «o homem é um ser a caminho», é naturalmente um ser livre, como dizia Jean-Paul Sartre. Portanto, se o homem é um ser naturalmente livre, poderá renunciar à sua liberdade? Obviamente, que não.
Vejamos: se me predisponho a aceitar ou a fazer o que determinada pessoa, ou grupo, me impõe, não estarei a hipotecar a minha liberdade? Se calhar, não. Se me decido a isso é porque já tenho essa predisposição. É um acto inquestionável da minha liberdade de que não posso renunciar. A liberdade é irrenunciável. Digamos que há vários patamares de liberdade. Três exemplos: a) Se a vida profissional de um homem depende de outro homem, a liberdade daquele está limitada aos humores deste. Mas ele pode dizer não a todo o momento e, quando o faz, pratica um acto de liberdade, mas isso pode custar-lhe o emprego. b) O homem pode não ter recursos para a sua subsistência e isso pode fazer com que abdique de parte da sua liberdade, colocando-se à disposição de terceiros. Mas pode dizer não, nem que isso agrave mais a sua situação. c) Pode viver numa situação política que não lhe permita a liberdade de decisão, de expressão, de movimentos. Mas pode dizer não, sofrendo as consequências de tal decisão.
Nestes casos paradigmáticos e exemplares, o homem é sempre livre. A todo o momento, ele pode renunciar ao conforto de um bom emprego, pode não aceitar as condições e os termos do trabalho que os outros lhe impõem, e, consciente da sua atitude, pode tudo questionar e começar tudo, de novo. Como dizia Sinatra, à sua maneira. Mesmo que, em casos limite, isso lhe custe a sua própria forma de vida e de estar. O homem pode sempre exercer e invocar a sua liberdade. Uma coisa é ter liberdade de acção e de movimentos, outra é ser verdadeiramente livre. Porque penso exactamente assim, exerço uma atitude de liberdade. Porque a liberdade é uma atitude, um acto de consciência.
Posso, num certo momento, estar privado da minha liberdade, o que não significa que não seja um homem livre. Ainda que fique condenado, calado, que ignore ou que não responda, não quer dizer que esteja prisioneiro. Isso tem a ver, sobretudo, com a força bruta que limita a minha liberdade. Quem me condena, limita a minha acção ou me humilha pode ser bem menos livre do que eu. Posso estar preso, e, consciente dos meus actos, sentir-me mais livre que o Juiz que me condenou. Um homem livre não é o que, em determinado momento, detém o poder e que, pela força e autoritarismo, oprime e limita os movimentos, as decisões, o livre arbítrio do outro; nem sequer é aquele que, sob a capa do poder e do saber, de modo ignorante e autoritário, subjuga o outro, limitando-o na sua acção, preterindo-o, negligenciando-o, humilhando-o.
Façam os ditadores o que fizerem, nunca conseguirão apoderar-se do OUTRO. A liberdade é constitutiva do ser humano, o que faz com que o homem seja um ser responsável. Porque sou livre, sou responsável. A liberdade é um postulado da responsabilidade. Porquanto, ao saber-se responsável, o homem sente que está sujeito ao cumprimento de deveres. Para assumir os deveres inerentes à sua condição e à sua prática, o homem só pode ser livre. Se não fosse livre, como se responsabilizaria pelos seus actos? Quando, autoritariamente, é imposto a alguém que pratique determinado acto, a responsabilidade deste acto não cabe ao executante, mas sim àquele que o ordenou. É simples. Só não vê, ou compreende, quem não quer ou é ignorante. Liberdade e responsabilidade caminham a par, são absolutamente inseparáveis. O que acontece é que ao longo da história, a liberdade tem conhecido muitos adversários. Os seus verdadeiros opositores têm o mesmo problema: um déficit de liberdade. Não sabem ser livres, recusam-se a ser livres, e temem que os outros o sejam, pela impossibilidade de comunicar e de compreender a liberdade dos outros. Aquele que oprime, mais tarde ou mais cedo, acaba por ser igualmente oprimido, até porque a sua graduação de oposição difere da dos seus comparsas. Ou porque oprime de mais ou de menos. In extremis, os outros porão em causa a forma como se opõe.Cada homem só é livre e responsável se o outro também o for, na mesma medida. E a medida é coisa óptima (António Pinela, Reflexões, Novembro de 2003).

A liberdade de opinar...começou em Abril



Miguel Castelo Branco refere que trabalhou, nos últimos 15 anos, na companhia dos cimélios das maiores bibliotecas patrimoniais portuguesas: Évora, Biblioteca Nacional, Palácio da Ajuda, Academia das Ciências, Torre do Tombo, Coimbra, Aveiro e Porto, e que constatou que, dos códices iluminados medievais e renascentistas aos incunábulos do século XV, das tipografias dos grandes impressores dos séculos XVI e XVII – Valentim Fernandes, Germão Galharde, João de Barreira, António de Mariz, Paulo Craesbeck – emana a persistente e jamais derrotada capacidade dos homens de todos os tempos em derrubar pela palavra escrita ideias e verdades impostas, autoridades tidas por indiscutíveis, linhas de pensamento que se julgam insuperáveis. "A história da liberdade é, por isso, a história da faculdade de pensar, criticar e refazer o conhecimento."
Homo cogitans, o homem nasce dotado para a abstracção, a intelecção do universo físico e metafísico, o estabelecimento de leis, a construção do método científico, o domínio do passado e a prospecção e antecipação do futuro. A Filosofia e a História das Ideias ensinam-nos que devemos empreender por um ininterrupto esforço cognoscitivo para encontrar respostas, desfazer certezas e validar novas. A vida intelectual é um campo de batalha silencioso, uma luta de supressão entre ideias que morrem e ideias que triunfam antes que a sua expressão social – política, económica, artística – se verifique. Apesar de ninguém pode colocar grilhetas no pensamento, é uma evidência histórica que a repressão da expressão do pensamento faz parte de todos os sistemas sociais. Não há comunidade histórica que não tenha criado instituições repressivas visando policiar, reprimir, censurar ou mesmo suprimir ideias tidas por contrárias a uma estimada verdade oficial. Se o conhecimento é poder, ideias que coloquem em risco a estabilidade do corpo social e submissão dos indivíduos são legalmente puníveis.
A liberdade de expressão encontra limites positivos-legalísticos e limites materiais, i.é, indiscutíveis. Qualquer sociedade política interdita, in limite, o seu contrário, numa tendência totalitária mais ou menos discreta, mais ou menos intransigente,mais ou menos violenta. As democracias possuem pulsões liberticidas e é certo e sabido que, às vezes, as escondem sob uma aparente capa de tolerância. O elemento mais perturbador desta repressão disfarçada é que em tais sociedades não existem aquelas típicas instituições repressivas mandatadas para a supressão do "direito de expressão", mas uma translação do eixo para outras sedes de poder condicionador, nomeadamente a comunicação social – não há opinião pública, mas opinião que se publica – e as instituições produtoras e reprodutoras da verdade oficial, nomeadamente a universidade e as casa editoras. Outro elemento perturbador prende-se com a crescente desautorização do "pensamento duro" – sempre relativo, tomado como igual a outras formulações teoréticas - em benefício do "pensamento mole", ou seja, da opinião. Se a todos se reconhece o direito à livre opinião, a democracia transforma-se num método, numa forma de estar, num modus vivendi, e, sobretudo, numa postura de vida, numa atitude, deve defender-se, assim, que conquanto não se firam os "limites materiais", as opiniões merecem igualmente ser todas respeitadas. É esta a grande vulnerabilidade das sociedades abertas, conservadoras no centro, intransigentes e repressivas na periferia.
Os bloqueios de que padece a sociedade portuguesa provém de uma forte e silenciosa herança secular da vigilância, repressão e sufocação de ideias proibidas. Desde a Inquisição, às listagens de obras proibidas, à censura, à auto-censura e ao desprezo, a camuflar o medo, pelo que se desconhece e não se compreende. Temos, por natureza do meio, por essa aculturação, uma aversão à mudança das mentalidades e do agir diferente. Somos algo hostis ao incómodo causado pela responsabilidade nascida da auto-determinação, consensualistas e desconfiados, fugidios e precários na arte de argumentar.
Espero que um dia nos permitamos, orgulhosamente, assumir o risco de empreender por essa aventura fantástica do livre pensamento e da sua defesa pública. Sem o receio de ser, realmente, livre. Até porque o verdadeiro berço dessa liberdade de opinar foi Abril.

Jornalistas...INCÓMODOS? DE CERTEZA?

“O governador civil de Beja, António Saleiro, possui hoje vasto património sem que se lhe conheçam negócios além dos combustíveis e sem que tenha recebido herança de peso. A sua ascensão no negócio da gasolina tem episódios pouco edificantes…”, afirmou José António Cerejo num conjunto de artigos, publicados em Out.1997 no PÚBLICO, em conjunto com Carlos Dias e Eduardo Dâmaso, que investigavam a actuação do ex-presidente da Câmara de Almodôvar e governador civil de Beja.
AS queixou-se criminalmente contra os autores dos artigos, mas viu o processo ser arquivado por o tribunal entender que “pretender “silenciar” o direito dos jornalistas a darem a conhecer, aos restantes cidadãos, investigações ou indícios de práticas menos correctas dos seus “governantes”, seria cercear, de modo autocrático e abusivo, o substrato da democracia e abalar os alicerces do Estado de Direito instituído”.
Recorreu então o ex-governador civil de Beja aos tribunais cíveis, pedindo uma indemnização de 6.000.000$00. A juíza de 1.ª instância, Ana Luísa Bacelar, considerou ter havido da parte dos jornalistas um “desrespeito do dever geral de probidade” e condenou-os, em 13Jun.2003, no pagamento de uma indemnização de 19.951,92, sentença que foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Évora de que foi relator o juiz desembargador Francisco d”Orey Pires.
O Supremo Tribunal de Justiça, tendo em conta a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre liberdade de expressão , em acórdão de 23Jan.2005, de que foi relator o juiz conselheiro Moitinho de Almeida, absolveu, no entanto, os jornalistas e o PÚBLICO. Considerou o STJ que “o direito à liberdade de expressão não pode ter como limite absoluto o bom-nome e a reputação de terceiros. Tratando-se de questões de interesse geral, cabe à imprensa divulgar as informações e ideias a estas respeitantes e ao público o direito de as receber” e que, perante os factos devidamente apurados, “a liberdade do jornalista abrange o recurso a certa dose de exagero, mesmo de provocação, polémica e de agressividade”.
Em 5Nov.1998, os jornalistas Francisco Fonseca e Eduardo Campos Dâmaso publicavam no jornal PÚBLICO uma notícia dando conta que fora deduzida acusação pelo Ministério Público contra a empresa XPZ e outros, entre eles Nuno Delerue, ex-deputado do PSD, por crimes fiscais e outros. Nessa notícia, transcreviam excertos dessa mesma acusação, bem como partes do artigo que tinham publicado no jornal PÚBLICO em 1995 sobre essa matéria e que tinham dado origem ao processo criminal de que agora noticiavam a acusação.
Instaurado um processo crime por violação do segredo de justiça, ED assumiu em julgamento o seu conhecimento da lei que proibia a divulgação da acusação, mas tinha considerado mais importante o exercício do direito/dever de informar.
O Tribunal de Esposende, em 25.Mai.2004, pela pena da juíza Paula Cristina da Silva Rivas, não hesitou em condenar o jornalista pela prática do crime de violação de segredo de justiça na pena de 70 dias de multa à taxa diária de 25c., num total de 1750c., embora reconhecesse que “nenhum prejuízo para a investigação decorreu naturalmente da publicação da notícia”. A decisão foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães em acórdão de que foi relator o juiz desembargador Manuel Cardoso Miguez Garcia.
O jornalista e o PÚBLICO queixaram-se no TEDH desta decisão que entendiam violar a sua liberdade de expressão e, em 24.Abril.2008, o TEDH considerou injustificada a condenação de ED, declarando que Portugal violara o artigo 10.º da CEDH.

Vicente Jorge Silva: Insultuoso...de certeza!?



"O Supremo Tribunal Militar que negou a Salgueiro Maia uma pensão por serviços distintos concedeu-a dois “heróis” dos que jugularam a nação durante décadas sem fim. O insulto é feito a Portugal e a cada um de nós. E eu devolvo-o: considero essa trupe de generais e de almirantes um punhado de parasitas, sem sentido de dignidade nem de amor à pátria, sem actos de heroísmo ou de valor que lustrem os galões que ostentam, sentados à manjedoura do Estado, sempre a reclamarem uma maior ração e talvez se sintam desprotegidos pela ausência da PIDE que lhes dava segurança”, afirmava Francisco Sousa Tavares num dos dois artigos publicados em 3 e 10 de Maio de 1992 que determinaram o julgamento de Vicente Jorge Silva, director do PÚBLICO, como cúmplice do crime de abuso de liberdade de imprensa. Apesar da morte de FST, os juízes do STM não desistiram da queixa contra o director do jornal. Na altura, foi publicado no DN e n”O Independente um abaixo-assinado, com mais de uma centena de assinaturas, de solidariedade com FST e VJS, tendo Mário Soares (então PR) manifestado o desejo de que fossem absolvidos, o que levou o almirante Sousa Cerejeiro, presidente do STM, a apresentar a sua demissão.
Em julgamento, provou-se que VJS não tinha tido conhecimento prévio do primeiro dos artigos e que o segundo artigo, por ser de cariz opinativo e atendendo aos traços pessoais do articulista bem como às circunstâncias de tempo e modo em que tinha sido escrito, não continha carga ou intenção difamatória. Apesar de ser um pouco “azedo”, pelo que, não cabendo a VJS censurar o mesmo, foi absolvido pelo colectivo presidido pela juíza Elisa Salles.
”Basta ler os excertos dos artigos recentes de Silva Resende, que publicamos nestas páginas, para se fazer uma ideia da personagem que o novel Partido Popular quer candidatar ao principal município do país. Será inverosímil e grotesco – mas é verdadeiro. Nem nas arcas mais arqueológicas e bafientas do salazarismo seria possível desencantar um candidato ideologicamente mais grotesco e boçal, uma mistura tão inacreditável de reaccionarismo alarve, sacristanismo fascista e anti-semitismo ordinário. Qualquer figura destacada do Estado Novo ou qualquer presidente da Câmara de Lisboa durante o anterior regime passariam por insignes progressistas em comparação com este brilhante achado de Manuel Monteiro”, afirmava VJS no seu editorial em 10.Jun.1993, referindo-se à anunciada candidatura, pelo CDS, do advogado e jornalista Silva Resende à presidência da CMLisboa .
SR queixou-se criminalmente por difamação, tendo VJS sido absolvido pela juiza Maria Fernanda Pereira Palma, que, embora dando como provado que as expressões utilizadas para qualificar as ideias de SR eram “incisivas, deselegantes, ferozes e até brutais”, mas, ainda assim, protegidas pela liberdade de expressão constitucionalmente consagrada no nosso país. Assim não o entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa, para onde SR recorreu, que, presidido pelo juiz desembargador José Guerreiro Madeira Bárbara, em 29.Nov.1995, condenou o director do PÚBLICO em multa e indemnização a SR, por considerar que VJS, ao utilizar as expressões em causa, teria “admitido que tais expressões podiam dar a imagem de que SR era pessoa “alarve”, “grotesca”, “boçal” e “besta”, denegrindo assim a imagem pessoal deste, e apesar disso escrevera aquelas expressões aceitando este resultado como possível”.
O director do PÚBLICO queixou-se no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por considerar que, com a sua condenação, Portugal violara o direito à liberdade de expressão que se obrigara a respeitar ao aderir à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Em 28.Set.2000, Portugal foi “condenado”, pela primeira vez, pela violação de tal direito. No entender do TEDH, “os escritos (de VJS) e em particular as expressões utilizadas podem passar por polémicos. Apesar disso, estes não contêm um ataque pessoal gratuito, porque o autor dá neles uma explicação objectiva”. Para o TEDH, “a invectiva política extravasa, por vezes, para o plano pessoal: são estas os riscos do jogo político e do debate livre de ideias, garantes de uma sociedade democrática” e, por isso mesmo, a condenação consagrada na CEDH.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Magistratura no Feminino: Exemplo de Coragem Justiceira




(DN-PROVA DA EFICÁCIA DA INVESTIGAÇÃO NO FEMININO), Fev. 1, 2010, Fernando Madaíl
PROVA DA EFICÁCIA DA INVESTIGAÇÃO NO FEMININO
Polícia, soldado, juiz eram carreiras tão masculinas, durante quase todo o século XX português, como os ofícios de metalúrgico, sapateiro ou camionista. Num país de raras advogadas, a magistratura esteve interdita às mulheres até ao 25 de Abril, quando o DL n.° 251/74 facultou “o acesso aos cargos judiciários ou do Ministério Público aos cidadãos, sem discriminação do sexo”. Sinal dos tempos e das mentalidades, três dos rostos mais conhecidos da PGR, o topo da pirâmide que dirige o MP, são mulheres: Cândida Almeida (este mês reconduzida como coordenadora do DCIAP, o órgão que coordena e dirige a investigação e prevenção da criminalidade violenta, altamente organizada ou de especial complexidade), Francisca Van Dunen e Maria José Morgado (que foi directora adjunta da PJ).
A evolução legislativa fez com que os magistrados do MP, como sintetizava, em 2002, Cândida Almeida, que foi a 1ª juíza do País, se tenham tornado “técnicos especializados para o combate à criminalidade”. E também se tenha atenuado a ideia da impunidade dos poderosos, até porque, referia Cândida Almeida em 2001, “o interrogatório de um membro do Governo, p.ex., feito por um polícia ou por um magistrado é manifestamente diferente, devido ao estatuto de quem interroga”. Houve um papel feminino nesta mudança de paradigma? Talvez sim, talvez não. Afinal, estamos num século em que é vulgar a mulher ser magistrada, oficial ou comissária.
Cândida Almeida SENTOU OTELO E D. BRANCA NO BANCO DOS RÉUS - "Qualquer dia temos de estar com cinco códigos para saber qual é que se aplica e a verdade é que a lei tem de ter tempo para se sedimentar”, replicava CA quando, a propósito da prisão de Carlos Cruz, era questionada sobre a eventualidade de se proceder a uma alteração legislativa relativamente à prisão preventiva. Após dirigir o megaprocesso da rede terrorista das FP-25 de Abril, o mais complexo processo político-criminal da III República (onde se sentou, no banco dos réus, Otelo), e o dossier Dona Branca, assumiu, em 2001, o cargo de coordenadora do DCIAP, para onde foi agora reconduzida por mais 3 anos. A PGA que, nos últimos tempos, tem dado a cara na condução do caso Freeport, quando se estreou à frente do DCIAP o tipo de criminalidade estava a mudar. Não se tinha apenas passado do tempo em que a magistrada do MP acusava o delinquente individual, fosse ladrão ou burlão, para passar a incriminar o bando, a associação criminosa. Estavam também a surgir novas formas de criminalidade, desde as máfias do Leste - que cobravam “imposto” aos imigrantes ilegais e castigavam os “devedores” com sequestros, tiros no joelho, choques eléctricos e homicídios - ao contrabando - que já não era o delito antigo e individual, que “nunca suscitou grande censura popular” em Portugal, mas o praticado por associações criminosas “altamente perigosas”, que “têm que corromper e, como ganham muito dinheiro, diversificam e endurecem a sua acção”. “Para manterem a logística e o máximo lucro”, prosseguia na entrevista ao Público, “têm de saltar para a alta criminalidade: falsificam documentos, coagem, sequestram, matam se for preciso.
Movimentam milhões e milhões de contos e atingem de forma decisiva a economia e as finanças das democracias e da UE.” Mas, acima de tudo, CA sublinhava a corrupção, “um dos crimes que mais afecta os pilares da democracia”. E explicava que “a chamada corruptela [o cidadão que paga ao funcionário para obter a licença ou o serviço público] é tão importante como a outra, porque um cidadão que está habituado a comprar ou a ser comprado não é capaz de ter discernimento para criticar o político”. Defensora do segredo de justiça, além do Freeport tem estado em evidência na Operação Furacão. Mas em todos os casos, seja no julgamento dos vulgares criminosos ou dos notáveis, como sublinhava ao Independente, “os magistrados não são deuses e erram”.
Maria José Morgado - DENUNCIOU MUNDO SUJO DO DINHEIRO NO FUTEBOL - “O futebol é um mundo de dinheiros sujos com promiscuidades políticas [com as autarquias] que não se sabe onde começam e onde acabam e que são altamente nocivas para as instituições democráticas.” Após 18 meses como directora-adjunta da PJ (Dez.2000-Ag.2002), onde era responsável pela Direcção Central de Investigação da Corrupção e Criminalidade Económica e Financeira, MJM denunciava, um mundo que, até à altura, nunca saltara dos murmúrios das tertúlias para o discurso do MP. Naquela altura, quando trocara já o “respirar do cheiro a pólvora’ da PJ pelo regresso ao gabinete de PGA onde “o papel ainda cheira a papel”, acusada de ter “excesso de visibilidade”, ainda não existia o processo Apito Dourado, que viria a dirigir - mas, entre os seus casos mais célebres, tinha estado na origem da prisão de Vale e Azevedo. “Não sou sócia de nenhum clube e nem sequer gosto de futebol. O meu desporto favorito é nadar e o meu clube é onde há indícios de crime”, tinha afirmado, 2 anos antes, quando acusara o ex-presidente benfiquista de “aproveitamento em benefício próprio de uma verba devida ao clube”, na transferência de Ovchinnikiv. Esse universo “sofisticado” da corrupção e branqueamento, fuga ao fisco e desvios de fundos, “crimes de gabinete”, “economia de máfias”, “terrorismo económico” seria registado em "O Inimigo sem Rosto - Fraude e Corrupção em Portugal". A magistrada do MP desde 1979, a PGA no Tribunal da Relação de Lisboa desde Setembro de 2000 - e a quem Cunha Rodrigues encarregara de conduzir a acusação no julgamento do ex-governador de Macau, Carlos Melancia (caso Fax de Macau) - explicava, que “o tráfico de droga é uma brincadeira ao pé do contrabando organizado do álcool e do tabaco, das fraudes internacionais de combustíveis, contra os impostos especiais de consumo”. A antiga dirigente do MRPP- presa em Caxias pela PIDE antes do 25 de Abril, onde resistiu 10 dias à tortura do sono e depois pelo COPCON, estando 11 dias em greve de fome, afastando-se do partido em 1975, quando alinhou na chamada “linha negra” contra a “linha vermelha”, o que originou a moção de Durão Barroso “fogo sobre a renegada Morgado” -, antes de se tornar, em 2007, directora do DIAP de Lisboa, já tinha enfrentado directores de Finanças e um inspector da PJ envolvidos no Gang do Fisco, fornecedores dos navios-hotel da Expo’98, a rede de importação de jipes que não pagava IVA, todo o tipo defraudes em qualquer mundo.
Francisca Van Dunen FALOU SOBRE DESVIOS NO PROCESSO CASA PIA - A “revolução tranquila”, no sentido da justiça ter de ser aplicada com humanidade, mudança de mentalidades que Pinto Monteiro pretende instalar no Ministério Público, foi a tónica do improviso do PGR na tomada de posse de Francisca Van Dunen, em Fev.2007. A até então directora do DIAP de Lisboa - onde tinha instaurado um processo disciplinar a um procurador que não lhe estava a reportar os desenvolvimentos da investigação do processo Casa Pia - tinha sido eleita pelo CSMP, procuradora distrital de Lisboa, sucedendo no cargo a João Dias Borges, que se jubilara. A nova responsável por aquela estrutura que compreende 42 comarcas, 14 círculos judiciais (incluindo os da Madeira e dos Açores) e que tem 21 procuradores-gerais adjuntos, sublinhava, no discurso de posse, que a nova lei de política criminal exigia meios informáticos para se monitorizar o cumprimento das exigências de investigação impostas pela AR, pois não era possível atender à nova realidade através do habitual sistema “manual” para se saber como estavam a decorrer os processos. Afinal, passara a haver uma lista de crimes que deviam ser investigados prioritariamente, uma lista onde surgem o homicídio, crimes sexuais contra crianças, violência doméstica ou falsificação de moeda. Na carreira de Francisca Van Dunen, que tratou de casos tão mediáticos como os que envolveram Zezé Beleza e Costa Freire, regista-se que foi assessora do PGR Cunha Rodrigues, esteve na Alta Autoridade Contra a Corrupção e na PGR (com Souto Moura), antes de dirigir o DIAP de Lisboa, na época em que surgiu o dossier Casa Pia. Já na PGD de Lisboa, após ter afirmado, na posse, que “nenhum lugar da hierarquia é uma fonte de privilégio”, redigiu uma circular a determinar que os magistrados do seu círculo só podiam marcar férias em Agosto, o que gerou tanta polémica como quando afirmou, na reportagem da SIC “As Procuradoras” (transmitida em Fevereiro de 2009) que terá havido “desvios questionáveis” na condução do processo Casa Pia.

Caxias: uma parte do Terror até Abril de 74 - Sá Carneiro em protestos



Em Janeiro de 1972, a revista «Continuidade», o órgão oficial da PIDE, descrevia assim as condições da prisão: «Somente a presença de grades nas janelas lembra que se trata de uma prisão. Os detidos dispõem de quartos individuais, com casa de banho privativa e água corrente quente e fria, permitindo-lhes as melhores condições de alojamento…
A cozinha de Caxias, dotada de moderna aparelhagem, permite a confecção de alimentos nas melhores condições, completando as demais condições de alojamento, que podem ser consideradas das melhores em todo o mundo. Um posto médico, apetrechado com o material corrente em qualquer bom consultório, assegura uma completa assistência a quantos dela possam carecer.»
Como é óbvio, a realidade eram bem diferente. Os presos que o digam. Foram os seus relatos, verdadeiramente impressionantes, que revelaram a dimensão do horror, o alcance da tragédia.
«Falo-vos de Caxias. Falo-vos de uma máquina de bestialização articulada em nome de uma ideologia como pretexto adeuqado. Aqui, o carácter recíproco do respeito entre os homens foi ferozmente destruído. Aqui, recusando aos presos a higiene mais elementar, infligindo-lhes os mais brutais tratamentos, os pides negavam-se a ver neles homens. Aqui, os cárceres, os curros, os catres com sangue seco, as paredes, os corredores, os silêncios, os gritos, o desespero – depõem sobre a irresistível evolução do espírito nazi-fascista para o desprezo total do homem no homem. Aqui, com o sacrifício das próprias vidas, os mais puros e abnegados dos resistentes ao insulto fascista encarnam a liberdade (com L maiúsculo, camarada tipógrafo, com L maiúsculo!) na sombra, no opróbio, na morte – sempre honrando-se, sempre honrando-nos!» (Baptista Bastos, in «Diário Popular», 25 de Maio de 1974)
Caxias era uma pequena parte de um complexo de medo (Aljube, Peniche, Ilha Terceira e Ultramar, como Timor, o Tarrafal, em Cabo Verde, ou Machava, em Moçambique).
E se o Estado Novo insistia em encontrar apenas virtudes no estabelecimento prisi0onal, os deputados da Oposição não iam, definitivamente, na mesma «onda». Em 15.Jan.1972, o deputado Francisco Sá Carneiro propôs na Assembleia Nacional a designação de uma comissão eventual que procedesse a um inquérito ao regime prisional de Caxias. Numa fase que começava a ser conturbada, numa fase em que a Ditadura já não conseguia, como conseguira nas décadas anteriores, sufocar todo o tipo de contestação ao regime, os deputados da Oposição já se sentiam à vontade para falar e para enfrentar os fiéis da União Nacional.
A acta número 149 do Diário das Sessões da Assembleia Nacional do dia 17.Jan.1972, páginas 3003 a 3022, reflecte bem a forma como o regime e a Oposição se preocupavam com Caxias. Por motivos diferentes, como é óbvio. A Oposição preocupava-se com as condições dos presos, que já ninguém conseguia esconder, enquanto que o regime se preocupava com as repercussões que essas condições podiam ter na contestação nacional e internacional.
Discurso de Francisco Sá Carneiro e diálogo com outros deputados, alguns afectos ao regime, e uma pequena parte das actas referentes àquela tarde em que, durante 2,5 h. O tema principal foi a prisão de Caxias. «Tenho recebido, nos últimos tempos, numerosas queixas quanto à actuação da Direcção Geral de Segurança, tomado conhecimento de várias exposições sobre essa matéria e lido acusações que lhe são feitas publicamente. Os pontos mais graves referem-se a casos de prisões e buscas sem mandados e aos métodos de interrogatórios praticados, durante os quais se não admite a presença de advogado dos suspeitos presos. (…)
Investigação não é, não pode nunca ser, obtenção de confissões. (…) A defesa da sociedade não pode fazer-se com desrespeito pelas pessoas.
Casal-Ribeiro: – Faz-se à bomba … O Orador: – V. Ex.ª disse alguma coisa, Sr. Deputado? Casal-Ribeiro: -Disse, disse, em voz bem alta: faz-se à bomba! Henrique Tenreiro: – V. Ex.º dá-me licença? O Orador: – Só um momento. Éque há duas interrupções … Casal-Ribeiro:- Eu, é só um comentário: só à bomba! O Orador: – Não, é uma interrupção … Casal-Ribeiro: – Pois é. E um comentário: faz–se- à bomba. (…) O Orador: – Sr. Deputado, eu não lhe estou a pedir resposta nenhuma, nem estou preocupado … Agora do que não abdico é o de estar no uso da palavra, de responder a quem eu entender e como entender. (…) Poderá pensar-se, ante a ida a prisão da Direcção-Geral da Segurança em Caxias, dependente do Ministério do Interior, que foi a mesma a atitude deste.
Não foi. Como a imprensa noticiou, essa visita teve lugar no dia 4 e durante ela tivemos ocasião de falar com vários presos. Essa era a razão determinante da nossa ida; por isso imediatamente aderi à oportuna iniciativa do Sr. Deputado Correia da Cunha, fruto da sua intervenção junto do Sr. Ministro do Interior, à qual se associou também o Sr. Deputado Pinto Balsemão. Foi-nos depois esclarecido pelo Sr. Ministro que poderíamos visitar a cadeia quando quiséssemos, mas não falar com as pessoas aí detidas, a não ser eventualmente, a título excepcional e meramente pessoal; não como Deputados. Nessas condições entendo que se não justifica qualquer outra diligência directa. A própria visita à cadeia, que no dia 4 não prevíramos e que não houve tempo para efectuar, tendo ficado prevista para mais tarde, não tem justificação se não pudermos, como Deputados, ouvir os presos que entendermos. É nessa qualidade que tenho recebido as numerosas queixas e reclamações a que aludi, que se referem não só ao regime prisional de Caxias, mas também, e sobretudo, á actuação da Direcção-Geral de Segurança quanto a detenções, buscas e interrogatórios.
É como Deputado que tenho a obrigação de não me calar e de exigir que, se os factos são verdadeiros, se lhes ponha termo e se punam os responsáveis; se são falsos, se responsabilize quem os publica. (…) E assim termino por propor, Sr. Presidente, que a Assembleia Nacional designe uma comissão eventual para estudar todas as queixas, reclamações e acusações formuladas e proceder a inquérito à actuação da Direcção-Geral de Segurança e ao regime prisional da Cadeia de Caxias, devendo apresentar, no prazo de um mês, um relatório circunstanciado da sua actividade, das conclusões a que chegou e das medidas que propõe. Disse. V: – Muito bem! Henrique Tenreiro: – Não apoiado! Casal-Ribeiro: -Isso mesmo, não apoiado. V: – Apoiado! Muito bem, muito bem!
O orador foi cumprimentado. (…)
Requerimento - Ao abrigo do disposto no artigo 11.º, alínea d), do Regimento, requeiro que me seja dado conhecimento se foi realizado algum inquérito, ordenado designadamente pela Presidência da República ou pela Presidência do Conselho, ao modo como foi interrogado na Direcção-Geral de Segurança José Pedro Correia Soares, que actualmente se encontra detido na prisão de Caxias; no caso de ser afirmativa a informação pedida, requeiro também que me seja facultada cópia integral de todas as peças desse inquérito e prestadas informações sobre as suas consequências.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 15 de Janeiro de 1972. – O Deputado, Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro.»
No mesmo ano, ainda se voltaria a ouvir falar de Caxias. No dia 20 de Abril, foi lida na Sessão Parlamentar que Ana Maria Correia Antunes enviara uma carta a propósito das condições em que vivam os presos de Caxias. No dia 7.Dez., Sá Carneiro «voltava à carga» e exigia informações sobre uma estudante universitária do Instituto Superior de Agronomia, chamada Dália Rosa Falcato. Queria saber se a aluna se encontrava detida em Caxias à ordem da DGS; se estava doente e com febre e se tinha sido vista por um médico da Faculdade de Medicina de Lisboa e por um psiquiatra da mesma cidade; se lhe fora diagnosticada uma depressão nervosa e aconselhado o fim do regime de isolamento a que fora votada desde a sua detenção; se esse isolamento já terminara e em que dia; se fora requerida a sua transferência para um hospital pisquiátrico e através de que despacho; e a quantos interrogatórios fora sujeita e com que duração.
No ano seguinte, Sá Carneiro apresentaria um projecto-lei de amnistia para crimes políticos e infracções disciplinares, com origem em motivos políticos. O objectivo final era a consagração, na Constituição e nas leis, das liberdades públicas que não existiam em Portugal. O projecto apresentado por Sá Carneiro seria liminarmente recusado e nem sequer chegou a ser discutido em plenário. O Presidente da Comissão Parlamentar de Política e Administração da Assembleia Nacional, Gonçalves Proença, considerou que não era oportuna tal discussão naquele momento. Foi o último dos projectos do deputado que já antes tinham sido recusados, como o da liberdade de associação, da liberdade de reunião, dos funcionários civis, da alteração ao Código Civil, do divórcio e separação de pessoas e bens e da organização judiciária. Todos não tiveram sequer a oportunidade para ser discutidos com a justificação de serem "gravemente inconvenientes". Por estas razões, e, sobretudo, por não conseguir cumprir a missão para que fora eleito pelo círculo do Porto – Francisco Sá Carneiro renunciou ao seu mandato a 25 de Janeiro de 1973.

Do 25 ao 26 de Abril de 74



A PIDE/DGS rende-se após conversa telefónica entre o General Spínola e Silva Pais director daquela corporação.
Pré-publicação de um excerto do artigo A ocupação da sede da PIDE/DGS em 1974 (Luísa Tiago de Oliveira e Isabel Gorjão Santos). «Num contexto geralmente marcado por uma forte pressão da população que ocupava as ruas próximas, a tomada da sede da PIDE/DGS foi o culminar de um trajecto com várias etapas. Primeiro, na manhã de dia 25, a operação inicial dos fuzileiros, mal sucedida. Depois, o cerco mantido sobretudo por forças do Regimento de Cavalaria 3 de Estremoz, cujos efectivos orçavam pelos 100 homens. Em seguida, o substancial reforço de 230 fuzileiros, organizados em duas forças, uma das quais já lá havia estado. Finalmente, a ocupação e rendição da PIDE/DGS.
No momento libertador, na manhã do dia 26, são indiscutíveis as presenças de Costa Correia, oficial de Marinha, pelo menos à frente de 230 fuzileiros, bem como de Campos Andrada, oficial de Cavalaria do Exército, às ordens de Spínola, também de Cavalaria, munido da autoridade emanada do general mas sem efectivos militares próprios. As presenças destes militares e os seus modos de acção bem como a memória que transmitem são significativas das contradições que caracterizaram este momento, das tensões entre ramos das Forças Armadas, entre correntes políticas e personalidades, nomeadamente entre sectores do Exército e da Marinha, entre spinolistas e não-spinolistas.
Através da descrição densa destes eventos, é possível perceber como, em tempos de grande aceleração da História (como o 25 de Abril e os processos revolucionários), se cruzam acções previstas para grupos organizados com outras desencadeadas por decisões pessoais, não programadas, ou com movimentações espontâneas, entrelaçando-se projectos amadurecidos com circunstâncias imponderáveis. Ao estudá-las, pode-se entender como os homens lidam com as “janelas de oportunidades” e quais os riscos que correm em momentos em que ainda não se sabe quem vai vencer. No fundo, trata-se de tentar perceber aquilo por que os homens agem e como o fazem, o grande propósito da História.»
26 de Abril.1974.
Apresentação da Junta de Salvação Nacional (militares designados para sustentar o governo do Estado Português, após o golpe de estado que derrubou o Estado Novo. Em funcionamento entre 1974-1976, após o comunicado do presidente António de Spínola às 01:30 do dia 26 de Abril). A Junta vinha prevista no programa do Movimento das Forças Armadas para o exercício político, até à formação de um governo civil, para precaver a destituição imediata do Presidente da República (o almirante Américo Thomaz) e Governo, dissolução da Assembleia da República e do Conselho de Estado, promulgando a lei constitucional 1/74 de 25 de Abril. Exerceu interinamente as funções da Presidência da República (de 26 de Abril a 15 de Maio, data em que designou como Chefe de Estado o presidente da Junta, António de Spínola) e da Presidência do Conselho (de 26 de Abril a 16 de Maio, data em que tomou posse o I Governo Provisório, chefiado por Palma Carlos).
Por ordem do MFA, Marcelo Caetano, Américo Tomás, César Moreira Baptista e outros elementos afectos ao antigo regime, são enviados para a Madeira. Foram conduzidos sob prisão para o Quartel General, instalado no Forte no centro do Funchal, onde permaneceram até serem exilados no Brasil. O major Faria Leal foi quem recebeu no Funchal, a 26 de Abril de 1974, os ex-presidentes da República e do Conselho. No fim do mês, chegam os familiares mais directos dos dois presidentes: Gertrudes e Natália Tomás (mulher e uma das filhas de Américo Tomás) e Ana Maria Caetano (filha de Marcelo). Carlos Azeredo, o novo governador, chega no dia 2. Tenente-coronel. No seu livro de memórias "Trabalhos e Dias de um Soldado do Império", o general CA dedica 2 páginas ao episódio. "Recebi-os numa pequena salinha do rés-do-chão da residência do governador". Dispensa a menção à presença do major, mas não esquece o pormenor de ter aguardado a chegada dos prisioneiros "de pé e acompanhado do meu pastor alemão"... Depois de ouvir Azeredo, Américo Tomás pergunta: "Então eu estou prisioneiro?", ao que o tenente-coronel responde: "É como diz, senhor almirante".
Mais tensa é a conversa com Caetano, que, após ter ouvido a intervenção do militar, "sucumbiu psicologicamente e lembrando o assassinato da família imperial russa, pediu que o matassem mas não o enxovalhassem na sua dignidade".
Tomás e Caetano ficam detidos no Funchal até 20 de Maio. "Na madrugada desse dia, uma escolta com o capitão Viana levou-os no navio 'Pirata Azul' para o Porto Santo, onde apanharam um Boeing 707 da FAP que os conduziu para o exílio no Brasil". Já Silva Cunha e Moreira Baptista seguem para o continente, tendo ficado detidos no forte da Trafaria.
O General Spínola é designado Presidente da República. Consta que pensava que o Partido Comunista estaria prestes a tomar o poder. E que, em desespero de causa, sem aliados internacionais de monta que o pudessem apoiar - já que a sua visão do Portugal pós 25 de Abril não passava pela entrega imediata das colónias aos movimentos africanos de «libertação» - estabeleceu contactos com o departamento de estado norte-americano, no sentido de pedir aos Estados Unidos apoio para uma intervenção da NATO em Portugal, com o objectivo de impedir a tomada de poder pelo Partido Comunista e a instalação de um governo pró-soviético em Lisboa. Já em Maio de 1974, menos de um mês depois da revolução, Spinola encontra-se nos Açores com o então presidente americano Richard Nixon, envolvido em pelo escândalo Watergate. A administração americana ao longo do Verão de 1974 estava tremendamente debilitada e paralisada pela situação interna. Em 9 de Agosto, o presidente Nixon demite-se e para Spinola que vê com mais apreensão a situação internacional, bem como a situação nacional as coisas começam correr muito mal. Está cada vez mais abandonado na presidência da república e a fraqueza dos Estados Unidos, leva-o mesmo a considerar a possibilidade de apelar à Espanha de Franco, no sentido de ao abrigo do pacto ibérico pedir a intervenção armada do regime franquista em Portugal.
Uma Força de Fuzileiros e Paraquedistas comandado por Capitão Tenente Abrantes Serra e pelo Capitão Mário Pinto, ocupam o forte de Caxias colocando a GNR sob seu controlo. Apesar de algumas hesitações por parte da Junta, até ao fim do dia todos os presos políticos seriam libertados. O Tenente Nunes chegou ao forte de Caxias trazendo a ordem trazendo a ordem de libertação para todos os presos [políticos] ali detidos.
Ocorre a manifestação do MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado) na Praça D. Pedro IV (dita “Rossio”). Na estátua, “grafitti” com as siglas do partido, foice-e-martelo, e faixa com os dizeres: “O 1º de Maio é Vermelho. Todos ao Rossio 19H”. Ostentam bandeiras e faixas com palavras de ordem contra a guerra colonial. Visíveis também cartazes com as efígies de Mão Tse Tung e Ribeiro dos Santos.
Lisboa e o País tinham acordado na ressaca da festa do 25.

domingo, 25 de abril de 2010

Portugueses exilados no Brasil ... até ao 25 de Abril de 74



“Fui sempre um exilado, mesmo antes de sair de Portugal” (Sena, 1978). Numa sociedade vigiada como a de Portugal salazarista, onde a ideologia oficial se intrometia em todos os domínios da vida social, impõe-se perguntar quando começa o exílio: no momento da partida ou antes? Claro que o regime se sustentou pela força policial e pela repressão, mas a mentalidade dominante e que concebeu um ultranacionalismo imperialista
de inspiração conservadora e tradicional não podem ser menosprezadas. Os portugueses exilados no Brasil, a maior parte nascidos entre as décadas de 1920-1930, privaram com um sistema educacional direccionado para a inculcação de uma mentalidade oficial e nacional-colonial. Para os que militavam na oposição, o exílio inicia-se em Portugal, pelo contacto com os movimentos que emergiram no decorrer e no Pós-Guerra, como o MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista), o MUD (Movimento de Unidade Democrática) e o MND (Movimento Nacional Democrático), ou por relações próximas com intelectuais contrários ao regime. As formas de expulsão desses opositores foram as mais variadas. A falta de perspectivas profissionais decorria do compromisso com actividades políticas, sendo alvo de exclusões (muito comuns na carreira universitária) ou da censura (artistas, jornalistas e escritores). O quotidiano vigiado e a repressão selectiva produziam situações de medo e insegurança, e sobretudo um distanciamento que fez com que muitos se identificassem como um tipo singular de imigrante no Brasil. Não eram “imigrantes económicos”, como a maioria dos portugueses da “colónia”, mas “imigrantes políticos”; ou mesmo não eram “colónia”, mas “diáspora”; por fim, não eram simplesmente “imigrantes”, mas “exilados”. Além disso, eram “portugueses”, o que significava estarem imersos num universo de significados próprios das relações históricas e ambíguas entre o Brasil e Portugal. Os “exilados”, assim que chegavam ao Brasil, acentuadamente entre as décadas de 1950 e 1960 no caso do Portugal Democrático, deparavam-se de imediato com um discurso de propaganda “oficial” amplamente difundido junto das “colónias” de imigrantes portugueses. Esse discurso atribuía um papel “heróico” ao emigrante no suposto “destino migratório” do país, mas, sobretudo, operava uma justaposição entre patriotismo e apoio ao governo - discurso que por sua vez posicionava os opositores do regime como “antipatriotas” ou “traidores”. Além do discurso “oficial”, os anti-salazaristas defrontavam-se, ainda, com um quadro de acções estruturado desde a década de 1930, que vinculava a embaixada portuguesa no Rio de Janeiro e os consulados regionais, como o de São Paulo, aos órgãos “oficiais” do governo português, exercendo vigilância e controle. Assim, durante todo o período da resistência no exílio, o dia 5 de Outubro, data da Revolução Republicana, foi comemorado ano após ano, como “uma jornada de esperança” na transformação de Portugal e, no final de cada acto, enunciava-se a sentença republicana “antes quebrar do que torcer”, traduzindo a incontinência de convicções.
Os opositores do pós-guerra (incluindo aqueles que exilaram) singularizam-se pela sua diversidade. Eram militantes comunistas, socialistas, anarquistas, liberais republicanos, monarquistas e, após as eleições portuguesas de 1958, dissidentes que surgem do interior do próprio regime. Os opositores que se reuniram em torno do Portugal Democrático tinham essa peculiaridade. Contava-se entre eles republicanos como João Sarmento Pimentel e Jaime Cortesão, simpatizantes do socialismo como Adolfo Casais Monteiro e Maria Archer, e uma maioria de comunistas. A oposição no exílio contou com o apoio militante e voluntário de um número expressivo de operários, técnicos e funcionários, além de intelectuais, escritores e jornalistas, que deram uma significativa contribuição à cultura e à sociedade brasileira, pela sua actuação nas universidades e nos meios artísticos e literários.
A característica dominante, numa primeira fase, foi a produção de categorias diferenciais em relação à interpretação da situação migratória do português no Brasil, distanciando-se das demais trajectórias migrantes, através de uma auto-atribuição como “exilados” ou “emigrantes políticos”, em contraposição aos contingentes de “emigrantes económicos”. As críticas eram direccionadas, sobretudo, à difusão da propaganda do regime no Brasil, bem como às manifestações públicas de apoio organizadas pelos “comendadores” – frente às quais se questionava a representatividade dessas lideranças junto aos imigrantes.
Os acontecimentos decorrentes das eleições de 1958, quando Humberto Delgado se apresentou como candidato pela oposição unificada em Portugal, permitiram a divulgação da “questão portuguesa” nos meios de comunicação brasileiros, e forçaram ao exílio muitos dos participantes directos da campanha, incluindo intelectuais, artistas, jornalistas e académicos. O êxito que conseguiram ao estabelecerem uma unidade da oposição no exílio permitiu ao movimento estender-se em redes internacionais, decorrência directa dos contactos mantidos em diversas partes do mundo, para os quais foram determinantes os vínculos já estabelecidos pelo PCP. A vinda de destacadas lideranças políticas para o exílio no Brasil, como Humberto Delgado, e Fernando Queiroga, em 1959, e Henrique Galvão, em 1961, teve um efeito definitivo sobre a discussão acerca dos papéis da oposição exilada, mas foi a “questão colonial” o tema que produziu as maiores cisões na unidade alcançada pela oposição no exílio.
Salazar tinha grande interesse em conseguir o apoio do Brasil para a sua política colonial, face às pressões internacionais e às condenações que vinha a sofrer, até por uma questão simbólica. O Brasil tinha sido uma ex-colónia de Portugal, o que legitimava o discurso da “irmandade”, a constituição de uma “comunidade de sentimentos” entre países de língua portuguesa e, por conseguinte, a presença de Portugal - pelo passado histórico comum e pela língua - nos territórios africanos. O discurso do Chanceler português Franco Nogueira, de 21.Jul.1964, sintetizava-o: “Nós não pomos limites à colaboração com o Brasil e pensamos, ao contrário, que quanto mais estreita, mais profunda e mais ampla for essa colaboração tanto melhor será para os interesses do Brasil e de Portugal. De tudo o que dizemos ao Brasil nesta linguagem temos em mente uma vasta Comunidade de mais de cem milhões de habitantes ...”. Do lado brasileiro, o Presidente Marechal Castelo Branco defendia uma alternativa neo-colonial na formação da Comunidade Afro-Luso-Brasileira, revelando os interesses do regime militar brasileiro, nessa ocasião, em credenciar-se como “natural” mediador no processo de “independência” das então colónias portuguesas em África. Os portugueses posicionaram-se como um dos poucos, talvez único, contingentes de imigrantes que chamaram a atenção para uma série de paradoxos e ambiguidades das relações e dos tratados de colaboração e amizade entre o Brasil e Portugal, consagrados em 1972, assim como das retóricas da “irmandade” e do “luso-tropicalismo”. Na longa história de imigração dos portugueses no Brasil, este núcleo talvez tenha sido o único a enfatizar as diferenças e as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes na sociedade brasileira, ao contrário das semelhanças e do sucesso na “aventura migratória”, como a maioria (das bem sucedidas) lideranças migrantes.
Com o fim do Estado Novo, muitos dos exilados retornam a Portugal e procuram participar nas mobilizações decorrentes do 25 de Abril, seguindo orientações partidárias e programáticas diversas, emergentes do processo revolucionário e de re-democratização da sociedade portuguesa. Mas outros, uma parcela considerável, não deixa o Brasil e funda, em 1982, o Centro Cultural 25 de Abril (CC25A), em São Paulo. Desde então, a celebração anual do aniversário da Revolução e a participação activa nas questões políticas que envolvem os imigrantes portugueses no Brasil têm sido constantes, agora num contexto de regime democrático e pós-colonial.