A 19 de Fevereiro deste ano deu-se a Conferência “O Contexto Internacional da Crise (1383-1385)”, por João Gouveia Monteiro, na Casa do Infante, integrando o ciclo “A Projecção Internacional do Porto nos Séculos XV-XVI: as crises da Monarquia e a afirmação económica e social do Noroeste”. Infelizmente não pude ir, mas um amigo fez-me chegar algumas conclusões.
As épocas de crise têm algo de semelhante: suscitam o que de melhor e de pior cada povo tem.
Na intenção de responder à pergunta linear: Como deve encarar-se a profunda alteração política e social que marcou o período compreendido entre a morte de D. Fernando e a elevação de João I ao trono? Qual o verdadeiro carácter dessa crise no quadro da história nacional?, outras respostas vão surgindo pelo meio.
Com base na admirável reconstituição de Fernão Lopes, mais de 50 anos depois dos acontecimentos, tem-se procurado uma explicação social para essa grande viragem da nossa história. Se a tradição reduz a crise a um simples movimento de carácter popular, há quem veja nela o termo de um longo processo de desagregação da nossa sociedade e, ainda, quem a considere o exemplo marcante da luta de classes que criou novas estruturas ao País.
Tratou-se de um movimento que durou 16 meses e que teve na base causas políticas, económicas e sociais. Tudo o que se passa depois da elevação do novo monarca e que ressalta da última parte do testemunho do cronista é a explosão de um processo que toma outras variantes e já não corresponde ao motor do grande movimento. Sucede que a explicação da crise de 1383-1385 se coloca muitas vezes para além do seu quadro temporal, o que falseia a análise histórica, pois confundem-se os seus móbiles e aproveitamento. Deve-se a António Sérgio uma nova interpretação sobre a crise. As origens desta mergulhavam no abalo económico provocado pela grande peste de 1348, na fuga de populações rurais para as cidades e no desemprego que então ocorreu no mundo agrícola. Os lavradores e «donos das herdades» procuravam lutar contra a falta de mão-de-obra, forçando os serviçais em dificuldade a fixar-se nos campos e a receber os mesmos salários. Assim se criou uma situação de conflito que veio a eclodir com a morte de D. Fernando, quando os burgueses de Lisboa e Porto aproveitaram o descontentamento para financiar a revolta e para modificar o quadro estrutural do País.
A hipótese de Sérgio é difícil de manter na sua ligação à «grande pestenença» e ao papel da burguesia, que as fontes coevas deixam no silêncio. Data das Cortes de 1372 a última referência conhecida às sequelas da epidemia. O mal-estar das populações vinha sobretudo das guerras com Castela que causaram um profundo desgaste nas energias do País. Também a população de Lisboa sofreu, em 1373, a ocupação castelhana durante três meses, e nove anos mais tarde a dos Ingleses, ambas causando à capital os maiores prejuízos e vexames. As razões da crise nacional mergulham, pois, na política de D. Fernando, tanto a externa, que foi desastrosa, como a interna, em que o comportamento da rainha concitou os maiores ódios entre a população. Se o perigo dinástico tivesse ocorrido dez anos mais cedo, não faltavam já as condições para idêntico desfecho; apenas que havia então um rei e a legalidade não estava em perigo. O quadro político tem assim uma importância fundamental na crise da Independência, pelo que «as origens desta encontram-se no reinado de D. Fernando» (Marcello Caetano).
As carências do mundo agrícola tinham evidentes reflexos na vida urbana, mas sempre as houve em anos de crise e não foram motivo bastante para a eclosão de um movimento social. Como justificar também que houvesse uma ambição dos povos em hostilizar os «senhores feudais» ou em se apoderar dos bens dos «homens honrados» e proprietários terrenais? Se tal aconteceu com os adeptos do partido castelhano, não consta que tenham perdido os seus bens móveis e de raiz os que seguiram a causa do Mestre ou esperaram, para o fazer, o desenvolvimento da crise. A grande clivagem deu-se com a posição que cada um tomou no pleito dinástico, bastando ela para definir o futuro em termos de pessoas e bens.
Em 1383 não houve uma luta de classes, mas apenas o choque entre pessoas de vários estratos que tomaram posições ideológicas diferentes. Não se poderá mais repetir que a nobreza e o clero seguiram a primeira facção e o povo inteiro a segunda. Tão-pouco o confronto se deu entre abastados e desfavorecidos, porque no seio dos grupos sociais e das famílias houve terríveis divisões perante o magno problema que se punha à consciência da Nação. Sabe-se que houve conflitos de vizinhança regional que encontraram ali o exacto momento para o deflagrar de paixões abertas ou veladas. Poderiam multiplicar-se os exemplos para demonstrar que, enquanto não se proceder a uma análise cuidada do primeiro livro da chancelaria do Mestre de Avis, as hipóteses explicativas da crise de 1383-1385 têm de avançar-se com cautela.
Repete-se que a crise de 1383, sendo de carácter nacional, apenas em torno de pessoas e ideias tomou uma feição social. O choque não foi de classes antagónicas, mas de homens e grupos que se opunham pelo ideal patriótico, pelo sentimento afectivo e por ódios ou interesses. Que o povo das cidades e campos fosse em maior número do partido do Mestre não causa espanto, na medida em que fora o grande sacrificado das guerras de D. Fernando e a parte da Nação que melhor sentia, pela dureza do seu mister e pelo espectro da fome e do desemprego, a necessidade de uma vida estável. Mas a sua participação fez-se por um espírito de ligação à terra e de raiva contra o invasor que o partido de D. Beatriz, apesar da sua base legalista, para muitos representava. Havia uma real consciência do perigo, como o próprio Nuno Álvares confessou, antes de seguir ao encontro do Mestre de Avis: «Amigos, eu vos quero dizer hna cousa: eu vejo amte mym hü poço muito gramde, e muito furado e escuro, o qual quem em ele emtrar, será gramde marauilha escapar: porem eu me não poso ter em nenhua maneira que nora emtre em ele.»
Testemunho claro de um sentimento nacional que a guerra contra Castela e o perigo que ela permitiu vencer acabou por transformar em consciência de um povo.
Com base na admirável reconstituição de Fernão Lopes, mais de 50 anos depois dos acontecimentos, tem-se procurado uma explicação social para essa grande viragem da nossa história. Se a tradição reduz a crise a um simples movimento de carácter popular, há quem veja nela o termo de um longo processo de desagregação da nossa sociedade e, ainda, quem a considere o exemplo marcante da luta de classes que criou novas estruturas ao País.
Tratou-se de um movimento que durou 16 meses e que teve na base causas políticas, económicas e sociais. Tudo o que se passa depois da elevação do novo monarca e que ressalta da última parte do testemunho do cronista é a explosão de um processo que toma outras variantes e já não corresponde ao motor do grande movimento. Sucede que a explicação da crise de 1383-1385 se coloca muitas vezes para além do seu quadro temporal, o que falseia a análise histórica, pois confundem-se os seus móbiles e aproveitamento. Deve-se a António Sérgio uma nova interpretação sobre a crise. As origens desta mergulhavam no abalo económico provocado pela grande peste de 1348, na fuga de populações rurais para as cidades e no desemprego que então ocorreu no mundo agrícola. Os lavradores e «donos das herdades» procuravam lutar contra a falta de mão-de-obra, forçando os serviçais em dificuldade a fixar-se nos campos e a receber os mesmos salários. Assim se criou uma situação de conflito que veio a eclodir com a morte de D. Fernando, quando os burgueses de Lisboa e Porto aproveitaram o descontentamento para financiar a revolta e para modificar o quadro estrutural do País.
A hipótese de Sérgio é difícil de manter na sua ligação à «grande pestenença» e ao papel da burguesia, que as fontes coevas deixam no silêncio. Data das Cortes de 1372 a última referência conhecida às sequelas da epidemia. O mal-estar das populações vinha sobretudo das guerras com Castela que causaram um profundo desgaste nas energias do País. Também a população de Lisboa sofreu, em 1373, a ocupação castelhana durante três meses, e nove anos mais tarde a dos Ingleses, ambas causando à capital os maiores prejuízos e vexames. As razões da crise nacional mergulham, pois, na política de D. Fernando, tanto a externa, que foi desastrosa, como a interna, em que o comportamento da rainha concitou os maiores ódios entre a população. Se o perigo dinástico tivesse ocorrido dez anos mais cedo, não faltavam já as condições para idêntico desfecho; apenas que havia então um rei e a legalidade não estava em perigo. O quadro político tem assim uma importância fundamental na crise da Independência, pelo que «as origens desta encontram-se no reinado de D. Fernando» (Marcello Caetano).
As carências do mundo agrícola tinham evidentes reflexos na vida urbana, mas sempre as houve em anos de crise e não foram motivo bastante para a eclosão de um movimento social. Como justificar também que houvesse uma ambição dos povos em hostilizar os «senhores feudais» ou em se apoderar dos bens dos «homens honrados» e proprietários terrenais? Se tal aconteceu com os adeptos do partido castelhano, não consta que tenham perdido os seus bens móveis e de raiz os que seguiram a causa do Mestre ou esperaram, para o fazer, o desenvolvimento da crise. A grande clivagem deu-se com a posição que cada um tomou no pleito dinástico, bastando ela para definir o futuro em termos de pessoas e bens.
Em 1383 não houve uma luta de classes, mas apenas o choque entre pessoas de vários estratos que tomaram posições ideológicas diferentes. Não se poderá mais repetir que a nobreza e o clero seguiram a primeira facção e o povo inteiro a segunda. Tão-pouco o confronto se deu entre abastados e desfavorecidos, porque no seio dos grupos sociais e das famílias houve terríveis divisões perante o magno problema que se punha à consciência da Nação. Sabe-se que houve conflitos de vizinhança regional que encontraram ali o exacto momento para o deflagrar de paixões abertas ou veladas. Poderiam multiplicar-se os exemplos para demonstrar que, enquanto não se proceder a uma análise cuidada do primeiro livro da chancelaria do Mestre de Avis, as hipóteses explicativas da crise de 1383-1385 têm de avançar-se com cautela.
Repete-se que a crise de 1383, sendo de carácter nacional, apenas em torno de pessoas e ideias tomou uma feição social. O choque não foi de classes antagónicas, mas de homens e grupos que se opunham pelo ideal patriótico, pelo sentimento afectivo e por ódios ou interesses. Que o povo das cidades e campos fosse em maior número do partido do Mestre não causa espanto, na medida em que fora o grande sacrificado das guerras de D. Fernando e a parte da Nação que melhor sentia, pela dureza do seu mister e pelo espectro da fome e do desemprego, a necessidade de uma vida estável. Mas a sua participação fez-se por um espírito de ligação à terra e de raiva contra o invasor que o partido de D. Beatriz, apesar da sua base legalista, para muitos representava. Havia uma real consciência do perigo, como o próprio Nuno Álvares confessou, antes de seguir ao encontro do Mestre de Avis: «Amigos, eu vos quero dizer hna cousa: eu vejo amte mym hü poço muito gramde, e muito furado e escuro, o qual quem em ele emtrar, será gramde marauilha escapar: porem eu me não poso ter em nenhua maneira que nora emtre em ele.»
Testemunho claro de um sentimento nacional que a guerra contra Castela e o perigo que ela permitiu vencer acabou por transformar em consciência de um povo.
Mais uma lição para hoje?