sábado, 8 de maio de 2010

"Ser e saber - (re) visitações do passado e construção das identidades (homos)sexuais"



Relendo o trabalho "Ser e Saber" – (re) visitações do passado e construção das identidades (homos)sexuais", de Ana Maria Brandão, percebe-se melhor esta discussão sobre se a aprovação do casamento homossexual vai aumentar o número de homossexuais assumidos. Muito embora só recentemente me tenha interessado pela questão - talvez porque, para mim, não é e nunca foi, uma questão - não deixo de reflectir sobre a matéria. Até que ponto a assunção da normalidade, o ser-se hetero, impede as pessoas de assumirem terem afectos num sentido que a generalidade interpreta como desviante? A autora explica o assunto, sinteticamente, mas com lucidez.
Explica que a identidade se refere à experiência de nos sentirmos, por um lado, unos, inteiros, e, por outro, diferentes e diferenciáveis dos outros. Ter uma identidade pressupõe a continuidade e a consistência do ser a partir das quais nos reconhecemos como sendo os mesmos e os outros nos reconhecem como sendo nós próprios. Isto não significa que as formas identitárias sejam imunes à mudança. Pelo contrário, permanecemos iguais não excluindo a mudança, mas articulando o novo com o já existente de modo a garantirmos a coerência identitária e a evitarmos rupturas. A partir das histórias de vida de algumas mulheres, pretendemos dar conta desse processo de articulação/ negociação, procurando mostrar de que modo vamos atribuindo e modificando os sentidos que damos às experiências por que passamos e como as vamos integrando progressivamente nas nossas definições identitárias anteriores. Os dados apresentados referem-se a um projecto de investigação em curso que se debruça sobre o processo de construção das identidades (homos)sexuais.
A cada momento, o que podemos ser (de facto, mesmo o que gostaríamos de poder ser) é enformado tanto pelos nossos quadros de referência, como pelos dos outros, por uma certa ordem das coisas que torna o mundo previsível e sem a qual a interacção se torna difícil ou virtualmente impossível. A identidade é sempre, e ao mesmo tempo, um encerrar e um abrir de fronteiras2. Ela estabelece o que somos excluindo o que não faz parte de nós, traçando um limite para lá do qual seríamos, necessariamente, outra pessoa, determinando o que se espera de nós por sermos o que somos. Identificarmo-nos significa aceitarmos ou, pelo contrário, recusarmos, esses limites que (nos) contêm, que (nos) encerram, mas também aceitar (ou recusar) uma certa ordem do mundo que coloca cada coisa no seu lugar. A indefinição identitária gera confusão na medida em que o nosso lugar nesse mundo se torna, subitamente, desconhecido, pondo em causa o que tínhamos como adquirido acerca de nós próprios e, por essa vida, suscitando dúvidas sobre o modo como os outros nos vêem.
Quando a heterossexualidade é o padrão dominante e considerado exclusivo, quando outros modelos estão praticamente ausentes ou o que se mostra deles é estigmatizante, a ocorrência de um evento que a possa pôr, de algum modo, em causa, pode gerar um sentimento de isolamento, mesmo de "anormalidade", com o qual é preciso aprender a lidar. Trata-se, portanto, de voltar a organizar o mundo, de (re)descobrir qual é o nosso lugar aí. Eliminar o elemento "anómalo", ou, pelo menos, conseguir percebê-lo, encaixá-lo naquilo que éramos antes, integrá-lo na nossa relação com os outros, não representa, deste ponto de vista, "um movimento negativo, mas um esforço positivo para organizar o ambiente”.
O modelo historicamente construído e afirmado da "(hetero)sexualidade normal" desencadeia uma série de pressupostos acerca de quem somos, de entre os quais a atracção (sexual, romântica) pelo sexo oposto ocupa um lugar de destaque. Imaginemos que nos apaixonámos pela pessoa "errada", que é como quem diz por alguém do mesmo sexo...
Esta breve exploração dos dados parece, pois, apontar no sentido da existência de mecanismos (psicológicos, mas também sociais) que operam no sentido de uma delimitação clara das definições que damos de nós próprios, traçando limites entre o que somos e o que não somos, encerrando "aqueles que distinguem em limites que lhes são atribuídos e que os fazem reconhecer". Mas eles parecem funcionar como elemento de estabilidade emocional precisamente porque, (de)limitando, definem também o campo de actuação possível.