sábado, 20 de fevereiro de 2010

Teresa Beleza: Sinal de mudança na consciência jurídica!


Os menos interessados pelas coisas do Direito estranharão que Teresa Beleza aparecesse como subscritora fundadora do MPI – Movimento Pela Igualdade, para a defesa do casamento entre homossexuais, ao lado de nomes mais conhecidos ligados ao meio da cultura, e de quem se espera uma maior liberdade na discussão destes temas e, ainda mais, em dar a cara por eles. Sabendo-a nascida numa família conservadora, julgar-se-á que TB teve um assomo inesperado de intervenção cívica nesta matéria. Não é verdade. Assisti à sua dissertação de doutoramento "Mulheres, Direito, Crime ou A Perplexidade de Cassandra", e a sua preocupação em estudar as particularidades do comportamento feminino face à Justiça ficou ali bem provada. Em 2004, volta a redigir um breve texto "Anjos e monstros – a construção das relações de género no Direito Penal" e foi a confirmação de que a causa feminina, que não lhe veio do berço, foi produto da sua vivência maturada, enquanto jurista e cidadã atenta.
Foi nessas qualidades que retirou algumas ilações e conclusões que subscrevemos e deixamos para reflexão.
Em Maio de 2004, o STJ lavrou um acórdão sobre um crime de homicídio em que exprimia, de forma nem sequer velada, a sua aceitação do dever de sujeição sexual da mulher ao marido como circunstância atenuante da pena por uxoricídio. No mesmo ano, o Tribunal Constitucional recusou, argumentando questões de técnica jurídica, conhecer de um outro acórdão do STJ em que, na opinião da recorrente e da Conselheira que votou vencida, a lei era interpretada no sentido de avalizar uma desigual distribuição dos deveres conjugais. Estava em causa o que eram, ou melhor a quem competiam, as tarefas domésticas. Maria Fernanda Palma, outra mulher a quem prestamos tributo, votou vencida: “(...) a perspectiva acolhida pelo tribunal a quo admite autonomamente a relevância de pretensos “valores tradicionais” que relegam a mulher para um papel de responsável (juridicamente responsável, sublinhe‑se) pelas tarefas domésticas no âmbito da comunidade conjugal. O tribunal recorrido aceita tal concepção invocando o meio rural em que os cônjuges estão inseridos. Todavia, o meio social e as concepções tradicionais que lhe estão associadas não constituem fundamento legítimo para impor deveres jurídicos relacionados com a posição relativa dos cônjuges que possam condicionar a respectiva autonomia e ponham em causa a própria igualdade no âmbito do casamento.”
Subjacente ao sentido da decisão judicial, que concluía pela existência de um especial dever de desempenhar funções domésticas por parte da mulher, contrapondo ao igualitarismo legal e constitucional a manutenção de códigos de comportamento conservadores e tradicionais que se imporiam sobre as leis, mesmo a fundamental.
Teresa Beleza tirou conclusões. Contrariando a sua vocação para resolver o discurso judicial pode ser um problema quando mina a imposição de igualdade entre homem e mulher no casamento, numa ordem mais íntima e mais decisiva: dentro da casa e do quarto conjugais. A ordem pública subverte-se numa ordem privada e invade a privacidade no mais privado dos domínios. Estas decisões continuam a dar que pensar. Porque se mantém, no foro judiciário, de modo mais ou menos subreptício a acobertar o modelo tradicional de casamento.
No Acórdão de 17.6.2004, o STJ afirma que o que move a mulher a trabalhar é a remuneração, a “pecha do materialismo”. Não tiveram os juizes pejo em afirmar a sua certeza de que os cônjuges seriam bem mais felizes se não tivessem surgido a separação e o divórcio. Se uma perspectiva de maior “espiritualidade” imperasse nas necessidades familiares. Ou seja, se a mulher se resignasse a cumprir as "suas" tarefas domésticas e se limitasse a deixar para o marido o privilégio e o desafio de providenciar o sustento da família. Não conseguimos imaginar os tribunais a defender que um marido, ou porque tem menos estudos ou porque tem uma profissão ou carreira menos rentável, fique em casa, tratando de ter o jantar pronto a tempo e horas, e pronto para cumprir com os seus deveres conjugais. A ordem patriarcal das famílias felizes, da abnegação feminina, preconizada pela ideologia do Estado Novo volta a criar adeptos nas instâncias judiciais e regressa assim pela porta das decisões judiciais superiores.
Percorreram-se algumas etapas históricas (a criminalização diferenciada do adultério, a sujeição a medidas de segurança das prostitutas ou dos homossexuais (era este o género gramatical dos protagonistas que resultava da nossa lei e da sua aplicação) e até a um uso menos pernicioso do género nas leis penais, como alterar o tipo do crime de violência doméstica, de privado para público). Mas, se desde o processo das “Três Marias” (Novas Cartas Portuguesas) se fez algum caminho, a perseguição da jornalista Maria Antónia Palla pela autoria de um programa televisivo sobre o aborto em 1976 (Beleza, 2002. Tavares, 2003), denota que ainda há outro tanto para percorrer.
O crime passional é prova disso. A mulher que mata não é “simplesmente” homicida, é um monstro. Se mata os próprios filhos, é-o ainda mais. Ou é louca. Se mata o marido, desafia a sua autoridade “natural”. (Em tempos, o carácter particularmente grave deste homicídio era assimilado ao do regicídio) O homicídio da mulher pelo marido, mais ainda se a pretexto de infidelidade, é uma "questão de honra", e, ainda hoje, tratado com uma certa misericórdia selectiva.
Tradicionalmente, o Direito distinguia não só consoante a classe social da mulher, mas também consoante, ainda, a sua classe sexual. Em "Dos privilégios e prerrogativas que o género feminino tem por direito comum e ordenações do Reino mais que o género masculino" (1557, Rui Gonçalves) põe-se em evidência a forma como o Direito Comum e as Ordenações do Reino diferenciavam mulheres honestas das que vivem desonestamente, entre mulheres nobres e honradas e as de diferente qualidade.
Nos tribunais do mundo inteiro, as mulheres têm feito guerra às injustiças baseadas no género.
No caso de Unity Dow, em 1991, concluiu-se que a Lei da Cidadania do Botsuana era discriminatória contra mulheres. Veja-se o caso Amina Lawal, na Nigéria, cuja sentença de morte por apedrejamento por um alegado adultério foi revogada pelo Tribunal de Recurso da Sharia em 2003.
A contribuição das mulheres para a promoção da responsabilização no sistema judicial para todos os cidadãos deve-se, em grande medida, à insistência de que a justiça começa em casa, e que os tribunais e o sistema judiciário desempenham um papel garantístico de um tratamento jurídico a todos, de forma integral, justa e uniforme.
Mas urge continuar esta peregrina luta. Sobretudo em três vias: a normativa — promover mudanças nas atribuições ou no mandato do sistema judicial nos termos da constituição e do enquadramento jurídico; a processual — assegurar a implementação de mudanças jurídicas por meio de instituições tais como o poder judiciário e a polícia que aplica as leis, e nos seus procedimentos operacionais, incluindo as normas de equidade processual, procedimento probatório e admissibilidade; a cultural — mudanças nas atitudes e práticas dos responsáveis pela protecção das mulheres contra o exercício arbitrário do poder.
Uma das principais realizações foi o atenuar da barreira entre o direito público e privado, insistindo, por exemplo, que o dever de protecção do Estado se estende à protecção contra a violência doméstica e à igualdade de direitos no casamento.
Algumas medidas têm marcado a diferença: Os Tribunais Penais Internacionais para o Ruanda e a ex-Jugoslávia contam com medidas de protecção de testemunhas para as vítimas de ataque sexual, incluindo o uso de pseudónimos, a realização de audiências privadas, o disfarce das vozes das vítimas e a não divulgação dos seus nomes aos acusados. No Leste da Nigéria, o activismo dos grupos de mulheres tem assegurado a nomeação de mulheres como “chefes de boina vermelha” que participam no julgamento de litígios locais.
Mas persistem ainda dificuldades nos tribunais e dos legisladores em preencher a lacuna de transmissão entre os direitos humanos internacionais e as disposições constitucionais sobre a igualdade, para além das ideias enraizadas sobre a resolução de contendas, que tendem a reflectir os tradicionais papéis de género. Para que os sistemas jurídicos funcionem para as mulheres, têm de oferecer um fórum onde as mulheres possam assegurar a responsabilização sempre e em qualquer parte em que os seus direitos sejam violados. Isso significa tratar das tendenciosidades baseadas no género nas dimensões normativas, processuais e culturais dos sistemas jurídicos, tanto a nível formal como informal.
Recentemente, o livro "Género e Justiça: que Igualdade para o Séc. XXI?", de Teresa M. Bravo (Juiz de Direito, Tribunal de Família e Menores da área da Grande Lisboa) e o relatório "Âmbitos de convergência: Cultura, género e direitos humanos", realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a População Mundial, deram sinais positivos.
E, se estamos ainda longe de ter ganho a batalha, o percurso permite já afirmar que, seguramente, vamos vencendo as guerras.