terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Republicanos, Carbonários e Monárquicos: o Regicídio


O centenário da República devolve à tona o tema do Regícidio. História é História, e, portanto, se sobre dalguns factos se pode falar com maior segurança a outros apenas se lhes pode dar a mera probabilidade de serem verídicos. De todo o modo, a História obriga à contextualização dos eventos e à sua compreensão à luz das motivações da época. Isto a propósito da coabitação amigável entre republicanos e monárquicos. Um facto que demonstra o que digo é que D. Duarte de Brangança, antes de casar com Isabel de Herédia, conhecia as responsabilidades do visconde de Ribeira Brava na marcha dos acontecimentos que, há cem anos, a meio da tarde do dia 1 de Fevereiro de 1908, levaram à morte de D. Carlos e do príncipe real Luís Filipe.
O que é dado a saber é que ambos foram baleados, em pleno Terreiro do Paço, por um professor de instrução primária, Manuel dos Reis Buíça, e por um empregado do comércio, Alfredo Costa.
Mas o que se fica por saber, e o que apenas pode ser relatado com algum grau de probabilidade, são as verdadeiras causas (imediatas, porque as mediatas são conhecidas), os autores morais de quem comandou, de quem ordenou e até - e é aqui que o avô de Isabel de Herédia (visconde de Ribeira Brava) vem ao caso - de quem os armou. O fim de uma monarquia de oito séculos. Nem sequer é seguro afirmar-se que o rei e o príncipe foram assassinados por estes dois homens. Peritagens recentes sugerem que Buíça seja tecnicamente responsável por ambas as mortes, porque Alfredo Costa já esvaziara o seu revólver em D. Carlos. A bala que matou D. Luís Filipe saíu da carabina Winchester, que Buíça escondera no seu capote, enquanto aguardava a chegada do landau que transportava o rei, a rainha D. Amélia e os dois filhos do casal: o herdeiro da Coroa e aquele que efectivamente a veio a herdar, ainda que por pouco tempo, o futuro D. Manuel II.
A polémica instala-se logo com a história da compra das armas. Em 1907, a fábrica norte-americana Winchester lançara um novo modelo de carabina semiautomática, com bloco de culatra reforçado para suportar o elevado calibre 351. Era uma arma de grande fiabilidade, que dava garantias de grande precisão. O armeiro Heitor Ferreira, estabelecido no actual Largo D. João da Câmara (a loja ainda existe) encomendou à sucursal europeia da Winchester, a casa Monkt, de Hamburgo, 9 carabinas do novo modelo, pelo preço de uma pequena fortuna. Mal a encomenda chegou, vendeu 3 carabinas a gente conhecida e rica (as vendas foram registadas num livro que, durante as investigações do processo do regicídio, desapareceu). As restantes 6 ficaram reservadas. A outra arma encontrada no local do atentado, a pistola FN Browning de calibre 7,65, usada por Alfredo Costa era também de um modelo muito avançado, portátil, funcional e foi, igualmente, adquirida a Heitor Ferreira (com o número de registo 349-432).
Compradas as armas, faltava decidir quem as usaria. E, para tanto, requisitaram-se os serviços da «Coruja» (a célula-canteiro que funcionava fora do controlo da Alta Venda). Entre 28 e 31 de Janeiro, depois da reunião da Quinta do Ché e de outras, o plano foi afinado. E foi aqui que a «Coruja» entrou em cena. A «Coruja» funcionava como uma estrutura paralela à Carbonária, chefiada por José Maria de Sousa, António José dos Santos, Coelho Bastos e Henrique Cordeiro e era composta por gente corajosa e exaltada, cujo ideal era o de cumprir uma missão que, em consciência, podia implicar a perda da própria vida (horas antes do atentado, Costa pagou uma dívida, explicando ao credor que depois já não a poderia saldar e Buíça fez um testamento político e deixou uma carta à mulher que amava, explicando que se sacrificava pela pátria e que o fazia com a consciência de estar a “cumprir um dever”). Fica assim provado que os conspiradores republicanos e carbonários forneceram a mão-de-obra.
Persiste a questão de quem lhes pôs as armas nas mãos. Até há pouco tempo, acreditava-se que a Winchester de Buíça, dispendiosa, fora adquirida pelo visconde da Ribeira Brava e mais cinco. Mendo Castro Henriques, coordenador da obra "Dossier Regicídio: O Processo Desaparecido", assegura ter evidências documentais de que o comprador foi, afinal, o visconde de Pedralva que comprou as seis armas.
E se há evidências de que o plano foi bem arquitectado, o certo é que houve alguma displicência por parte do Governo quanto à segurança do chefe de Estado e dos seus familiares. No auge do clima pré-revolucionário, optar por os transportar em landau e não em automóvel fechado e sem uma escolta reforçada, é estranho. Uns dizem que nem João Franco nem o rei punham a hipótese de um atentado. Sabe-se que foi João Franco a exigir os landaus, em vez dos automóveis fechados, só não se sabe se foi ele que insistiu para viajar com a capota aberta. E porque é que João Franco não lhes garantiu a protecção policial adequada? D. Amélia viria a qualificar tal falta de loucura e ela mereceu-lge grande censura na época.
A verdade sobre o Regicídio, na fidelidade e lealdade aos factos, dificilmente virá a ser conhecida. O desaparecimento do respectivo processo fez com que restassem as conjecturas, as suposições, as teorias. Daí que José de Alpoim tenha dito «Só há duas pessoas em Portugal que sabem tudo – eu e outra» (referindo-se ao visconde da Ribeira Brava).
Não têem, pois, republicanos e monárquicos que fomentar antagonismos e, muito menos, protagonismos, porque a História tem um quadro cujos matizes nunca se conhecerão na íntegra e inequivocamente. A única coisa que lhes resta é a compreensão de que os tempos mudaram, que hoje se vive em Democracia, e que voltar atrás, seja para o Estado Novo seja para a Monarquia não é um caminho viável. É mesmo até impensável.