terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Rosa Lobato Faria e a saudade

A morte colhe de repente e faz prisioneiros. Ainda de manhã, depois de Rosa Lobato de Faria, de 77 anos, ter sido hospitalizada pela terceira vez em dois anos, a filha mais nova, Teresa Sacchetti, se mostrava esperançada. Esperava-se que a Rosinha melhorasse. E embora o seu estado de sáude fosse debilitado, a sua situação clínica era considerada estável. Dizia a filha que "A mãe está muito fraquinha mas a recuperar, isso é que importa". "A mãe adoeceu e sente-se com poucas forças, mas isso acontece a quem fica doente. Não há nada de extraordinário. Está a soro porque não se alimenta devidamente sozinha, mas esperamos tê-la em casa rapidamente". Infelizmente, a Rosinha acabou por ser resgatada pelos braços da Mãe-Negra-Morte.
Porque é amiga de amigas, tivemos várias vezes à conversa.
A última vez foi em 2006, na Feira do Livro de Alenquer, na Biblioteca Municipal. Acabava de escrever "A Trança de Inês"e preparava-se para redigir o seu 10º livro, "A Flor do Sal". Nesse ano, Rosa completava, em 20 de Abril, 74 anos. Tinha percorrido um longo caminho desde o seu primeiro romance, "O Pranto de Lúcifer" (1995). Dizia que o seu gosto pelos livros fora "maduro" porque começara a escrever tarde, aos 63 anos. Sobre a idade, Rosa dizia: "Morrer é uma coisa fascinante". "Ao longo da minha vida sempre escrevi poesia. Nos bons e maus momentos. Grande poetisa não era, senão já se tinha dado por isso. Mas o facto de escrever sempre poesia (claro, também escrevia prosa, aí a partir dos 30 anos. Encomendavam-me crónicas, contos, um texto para aqui outro para ali). Mas porque é que nunca me passou pela cabeça dizer "Vou escrever um romance"? Autores - É uma boa pergunta, pelo menos depois de conhecermos o fim da história, ou seja, a sua capacidade de escrita e criatividade... Porque terá sido? Por duas razões. Uma porque a poesia é uma coisa que vem ter connosco, não se procura. Não dá trabalho nenhum, surge inteira, passa-se para o papel e já está. É um exercício de síntese, por excelência. E essa, achava eu, era a minha vocação. Por outro lado, a prosa, ou seja, o romance, é um exercício de análise e essa análise implica pesquisa, eventualmente. Eu não me achava minimamente vocacionada para essas coisas. Nem sequer era uma ambição longínqua. Ao contrário das pessoas que dizem que adoravam escrever um romance, eu nunca tive esse pensamento. Essas duas razões, a análise e a pesquisa, deitavam por terra qualquer veleidade que eu tivesse de escrever prosa. Mas não tinha sequer essa veleidade. E, um dia, quando eu tinha 63 anos, Deus quis que eu nascesse de novo. Contaram-me uma história e eu fiquei a pensar nela. Aquela história não me largava a cabeça. E eu dizia para mim "Isto é um conto, tenho que escrever este conto, senão não me vejo livre desta maçada". E escrevi. Quando reparei tinha 240 páginas A4 e pensei "Isto se calhar é um bocadinho mais que um conto". Era um romance.
Também dizia que "Dantes era nascer, viver e morrer; agora é nascer, viver, envelhecer e morrer". E, a propósito do desafio que lhe lançavam para escrever um livro, dizia que que não são os escritores que escrevem os livros mas os livros que escolhem os escritores para os escreverem. E dava o exemplo do que lhe acontecera com o "A Trança de Inês" que, durante muito tempo lhe fez um apelo: "Escreva-me, escreva-me". E "toda gente já escreveu sobre Pedro e Inês", o que não a parou. "Ah, Inês! Como não passou nada? Passou tudo, Inês, tudo o que pelos séculos além o amor inventou, as suas artes e subterfúgios, as sua agonias e misérias, os embustes esfarrapados com que presume esconder-se do mundo, a palpitação do desejo que faz tremer o chão, crescer o trigo, eclodir as rosas, convocar as tempestades. E, por fim, desdobra a mais perversa de todas as armadilhas, a que nos faz, na hora alucinada da paixão, corpo contra corpo, boca contra boca, alma contra alma, desejar e bendizer a morte. Morrer por este amor. Morrer contigo". Ideiais assentes no pressuposto de que a paixão não muda, independente do lugar e das circunstâncias. Por isso, contou três histórias de paixão: uma ocorrida no séc. XIV, por razões políticas; outra no séc. XX, por razões económicas; e outra no séc. XXI, por razões ecológicas. Personagens com o mesmo nome, a semelhança dos caminhos percorridos, a mesma intensidade das paixões. Há três Pedros, três Inês, três histórias de amor, três tragédias. Cada ser humano tem o direito a três vidas e de escolher a palavra que regerá essas três vidas. Pedro escolheu Paixão. O paralelismo das histórias, a inusitada situação de um Pedro e de uma Inês no século XXII. O cruzamento das linguagens que marcam a época das diferentes histórias. A ironia que marca a descrição das situações do “nosso” presente.
Para além deste romance, que é divino, a Rosinha escreveu poesia e recomendo vivamente os seus "Poemas Escolhidos e Dispersos" (1997).
Dizia que a sua escrita era muito musical e admitia perder muito tempo à procura de uma palavra com 4 sílabas, em vez de aceitar as que saíam com maior facilidade, as de 3 sílabas. A escrita, admitia, saía-lhe com grande facilidade e tinha fama de escritora "repentina", que agia "com repentes". Contava que um dia lhe telefonaram às 23h pedindo uma canção até ao final desse dia. Não se atrapalhou e respondeu para a virem buscar. Às 23h20 estava pronta. O mesmo sucedeu durante a gravação do programa de despedida de Herman José da RTP. O humorista ligou-lhe do estúdio às 19h, pedindo-lhe que escrevesse uma canção de despedida para ser gravada ainda nesse dia. Às 20h estava pronta.
Não gostava de futebol mas era adepta do FCP. O futebol e a culinária eram, ao início, paixões não partilhadas com o marido (o terceiro - a Rosinha sofreu, "sem memória" - como dizia aos amigos - com a perda do segundo marido, em Nov.2008, Joaquim Figueiredo Magalhães, de 92 anos, com quem estava casada há 33 anos). Foi o inesperado interesse do marido pela sua culinária que a levou a retribuir esse afecto com o interesse pelo clube de afeição do marido.
Nasceu num berço aristocrático mas cedo rompeu com muitos dos valores ortodoxos da época. Aos 25 anos, estava casada e com 3 filhos. Manteve valores tradicionais essenciais - a dignidade, lealdade, honestidade e solidariedade - mas rejeitou os preconceitos vigentes na época, como o racismo ou a obrigatoriedade do casamento para toda a vida.
Ganhou fama de ser uma "mulher de armas" porque quando escrevia "Romance de Cordélia", decidiu fazer um estudo, na prisão de Tires, e entrevistar mulheres assassinas.
Da Rosinha não pode perder o seu último romance (2008) «As Esquinas do Tempo».
Deixa a saudade imperdível de uma matriarca de afectos a 12 netos, 9 raparigas e 3 rapazes, e 4 filhos (Teresa Sacchetti, João Sacchetti e Bi Rebelo de Sousa, frutos do casamento com António de Vilas-Boas Romano e Vasconcelos Barreto Ferraz Sacchetti, e Nuno Franco, fruto da relação com Carlos Franco).
A Rosa Lobato de Faria morreu, hoje, com 77 anos. 2x7 é um número mágico, sagrado. Se acaso existe céu, sei que vai até lá. Aproveitará para descobrir as maravilhas da conversação, junto de anjos e dos seus entequeridos que partiram antes de si. Pouca sorte para os que ficam porque perdemos uma grande mulher e uma boa amiga das amigas das suas amigas. Obrigada, Rosa, pelos dois dedos de conversa. Bem hajas!