segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O preço da coragem de Rui Teixeira: uma factura aos tribunais!

Seguindo a narração romanceada de Ana Margarida Carvalho, na VISÃO nº 549 , de 11 Set. 2003:
Foi há uns tempinhos que Rui Teixeira recebeu as palavras mais solidárias de um amigo. «Olá Rui. Força, pá. Há que resistir.» RT ter-lhe-á respondido que «Não te preocupes. Estou tranquilo. Eu aguento.» E, de facto, aguentou. Estoicamente. Mas se a bomba não lhe rebentou nas mãos, naquela altura, atingiu-lhe a cara logo depois. Até porque o rastilho foi acendido várias vezes. Dizia-se que era um juiz demasiado novo (33 anos), inexperiente e precipitado. E que - pecado inimaginável para um magistrado - andava «desengravatado». Argumentavam que tinha dado crédito a transcrições de escutas de relevância duvidosa. E que se movia a mando do Ministério Público. Que fazia o jeito à defesa (referindo-se ao facto de ter permitido a acareação nas inquirições para memória futura de 32 casapianos). Que dava o dito por não dito (por decretar à revelia do que pretendiam os advogados, a videoconferência). E para cúmulo, diziam que era parcial. A neutralidade de RT era evidente (nem pestanejou, quando os causídicos jogaram a mais dura cartada contra um magistrado – uma verdadeira bomba atómica dos expedientes à disposição da defesa: o incidente de recusa do juiz por suspeição de parcialidade. Lavrou duas únicas e protocolares frases dirigidas ao Tribunal da Relação: «Cumpre ao signatário pronunciar-se e no uso de tal faculdade apenas lhe apraz dizer que carece de fundamento o peticionado. No entanto, V. Exas., com maior saber e conhecimento decidirão conforme farão justiça.» A Relação foi favorável à sua manutenção à frente do processo. Ainda assim, a defesa persistia na questão da parcialidade e da desconfiança. Mais uma vez, Rui Teixeira «aguentou-se». "O Rui tem uma resistência psicológica impressionante. A última vez que o vi estava calmo, como sempre tem estado», conta um amigo. Como sempre tem estado ao longo da vida. O sangue-frio é uma das características que mais lhe apontam. Já aparecia calmo e sereno nas vésperas dos temíveis exames da Faculdade de Direito de Lisboa, onde se licenciou entre 1987 e 1992. Imperturbável nas orais, e imperturbável continuou, uma década depois, durante o longíssimo interrogatório aos arguidos (6 horas para o embaixador Ritto e 14 para Paulo Pedroso). Também nunca lhe tremeu a voz aos microfones da Rádio Paris Lisboa (RPL), em 1992, durante os directos informativos, lidos de hora a hora, em 90.4 FM. Discreto, bom aluno, quer na faculdade quer no Centro de Estudos Judiciários (CEJ). Mas foi na rádio e como jornalista que mais marcas deixou. Os amigos dizem que deixou atrás de si um rasto de boas recordações e alguma saudade. Antonieta Lopes da Costa, 38 anos, antiga colega e actual directora daquela estação diz que «Era um portento. Em rádio, é raro encontrar alguém que seja bom a escrever e a falar – o Rui conseguia-o. Tinha sempre a palavra certa no momento certo.». Apresentava-se, com pontualidade britânica, na redacção da Avenida João Crisóstomo n.º 55A, pronto para transformar os telexes da Lusa e France Press em noticiário. Rui Teixeira era, em simultâneo, aluno do CEJ, dava aulas numa escola secundária e ainda gastava 6 horas das suas 24 diárias nas emissões luso-francófonas. Sempre sem ponta de stress, sem vestígios de nervosismo, sem falhas de pontualidade. Com um estilo cool, anos 80, T-shirt, jeans, ar de motard. O que chocou muitos cidadãos "sérios".
Aparentemente, até era despassarado. RT queixou-se à colega de ser motivo de troça dos alunos. E de não entender porquê. A colega entendia. Rui Teixeira tinha ido dar aulas de T-shirt, com um porco e uma porca desenhados. Em baixo, uma frase: «Making Bacon». Hoje, já está mais longe dessa forma de estar mais desconcentrada, mas ainda são poucas as vezes em que as objectivas das câmaras o apanham "fardado", como manda o nacional funcionalismo público, como é «nacionalmente» correcto: de blazer e gravata (até alguns alegados jornalistas comentaram o facto pelo que nem vou discutir sobre a natural arrogância e snobeira do mundo de Direito nesta matéria). Viam isso como uma falta de compostura. Nos actos solenes, também interessa, segundo eles, a roupa civil e RT punha a beca sem se importar com o que vestia por baixo. «Só num país terceiro-mundista é que se levanta a questão da roupa de um juiz», insurge-se Antonieta. E nós acompanhamo-la. «Se um dia o Rui ficar desempregado, basta-lhe fazer um teste de voz e arranja logo trabalho.» A carreira de radialista foi interrompida ao fim de 1 ano de RPL. Indefinidamente. O desejo de ser juiz - e um bom juiz - foi mais forte. Quando acabou o curso, RT já estava convicto de que a magistratura era uma missão. E, em Agosto de 1993, ao terminar o CEJ, rescindiu com a rádio. Antonieta Lopes da Costa só voltaria a vê-lo meses mais tarde, em Berlim, numa paragem da viagem comemorativa do fim do CEJ, a bordo de uma chopper (imitação barata da Harley Davidson), em que parecia vestido de uma outra personalidade que excepcionava a sua habitual discrição, sem poupar nas buzinadelas, atormentando os ouvidos berlinenses. E trouxe a mochila cheia de souvenirs , emblemas, insígnias, gorros de pele à moscovita, despojos do comunismo, à venda no rescaldo da queda do Muro. Tirando as épocas de exames, em que RT se tornava silencioso e circunspecto, às vezes, até autoritário, o resto do ano, era «um ‘bacano’, bem-disposto e de bem com a vida». Os ex- compagnons de rádio mantém por ele a amizade que sempre lhe tiveram e ele retribui. E esperaram que o caso Casa Pia acabasse (no âmbito da sua intervenção), para que ele volte aos jantares que a «malta da Ocidente» organiza.
Também em Torres o aguardaram com expectativa. O Tribunal aprontou-se e mandou instalar câmaras de vigilância e contratou 2 seguranças extra. Subindo mais um degrau na carreira, RT deu mais uma vez mostras do seu carácter determinado e não abriu mão do gabinete que lhe competia enquanto titular daquele cargo. E a juíza que o ocupava teve de se mudar. Em Torres vê-se a passear tranquilamente pelas ruas, com as crianças (escoltado por 2 guarda-costas). Adquiriu uns hábitos e perdeu outros. Viu-se forçado, apesar da intromissão que isso implica na intimidade da vida privada, a ter segurança. E perdeu o hábito de apanhar o Expresso para vir até Lisboa. Mas continua a tomar café no snack-bar da esquina da sua rua. Com a simplicidade que lhe é reconhecida.
De idêntico goza a sua velha escola primária em Mem Martins, O Nial. «Era um excelente aluno e uma criança extraordinária», lembra a directora, Odete Carvalho. Os pequenos alunos fazem desse longínquo colega o seu «emblema»: «O juiz Rui Teixeira andou no meu colégio» lembram aos pais.
Em Torres Vedras não tem quaisquer outras raízes senão a companheira com quem vive. Que ao ser abordada se limita a dizer «Como eu ensinava, há uns anos, nas aulas de jornalismo, há um momento em que o direito à informação choca com o direito dos cidadãos à sua privacidade. Este é um deles» (foi professora de comunicação social, é jurista especializada na área de Direito Penal de menores). Um campo de batalha que não é estranho a RT. Dir-se-á que crianças maltratadas ou sexualmente agredidas passaram a fazer parte de um dia-a-dia distante que aqui tenta esquecer. O assunto não é incomum em casa, até porque este não é o seu primeiro caso de pedofilia. Já em Mafra conhecera a fundo a história de um pai e uma mãe que violavam os filhos, obrigando-os a participar em verdadeiras orgias incestuosas.
Foi estagiário na comarca de Oeiras, passou por Lisboa (1996), Ponte de Sôr (1996), Mafra (1997), Beja e Loures (1998 e 1999), Mafra, outra vez (1999) e Lisboa, no TIC (desde 2001). Dizem que, antes de redigir uma sentença, se documenta, à exaustão. Em 1998 – na condenação de um marido que agrediu brutalmente a mulher quando a apanhou em pleno acto sexual com outro – fez questão de citar Aldous Huxley, Durkeim e o psicólogo alemão, Wilfried Rasch, entre outros nomes famosos de penalistas e especialistas em violência doméstica. Um escrivão de Mafra lembra-lhe a «abnegação e dedicação espantosas. Trabalhava até fora de horas.» RT foi o autor da primeira página da Net daquela comarca, publicou aí várias matérias. «Sobre os seus hábitos, quando despia a toga, é que nem uma palavra...» «Convencionou-se que a experiência de vida e bom-senso devem ser características de um juiz, mas há muito tempo que se fala do défice de vivência dos novos magistrados. As pessoas perguntam-se: ‘Mas ele só tem 33 anos? Como é que pode estar a tomar estas decisões?’ Eu conheço o seu trabalho e garanto que tem uma qualidade técnica indiscutível», analisa um juiz que partilhou com ele a sala de audiências, em Mafra.
No início da sua actuação no Casa Pia tentaram dissecar-lhe fragilidades. Confundiram pouca idade com imprudência. Quando a defesa levantou o incidente de recusa de juiz, invocou nas argumentações que RT não caíra nas boas graças dos comentadores mediáticos. «Era o que faltava à justiça: que os incidentes de recusa de juiz tivessem, para ser resolvidos, de ter em conta a opinião publicada ou a referida opinião pública», respondeu o acórdão da Relação de Lisboa.
Marcelo Rebelo de Sousa apelidou-o de «juiz errático». Um povo ainda em estado de choque, por ver questionadas as suas simpatias por Carlos Cruz, pelo escândalo, modelou-se aos comentários dos media. RT estranhou-se e depois entranhou-se. A vox populi conformou-se. Apesar de serem já muitas as vozes e os ecos que admiram o seu desempenho quixotesco à frente de um caso tão aparatoso. Um magistrado invergável, enfrentando moinhos-de-vento verdadeiros humanóides, debaixo de fogo cerrado e de, segundo alguns, pressões políticas. Dele há até quam afirme que devia ter uma estátua na Avenida da Liberdade, «em vez daquele déspota a quem chamam Marquês de Pombal» (in www.omaniaco.blogspot.com). Claro que eu, que nutro uma grande admiração pela personagem e até me incluo nos membros da Fundação da História do Século XVIII, não partilho deste exagero, mas que o comportamento de RT é digno de reflexão num Estado em que a Justiça deixa muito a desejar, concordo!
«Goste-se ou não do estilo, o certo é que Rui Teixeira desmistificou a ideia de que o juiz é alguém à margem da sociedade, só porque ocupa uma alta função de Estado. Se, por um lado, a sua imagem jovial o aproxima da população, por outro, a sua reconhecida discrição e sobriedade conferem garantias de rigor e qualidade no seu trabalho», comenta Alexandre Baptista Coelho (desembargador, presidente da Associação Sindical de Juízes). O famoso processo calhou-lhe a ele, sem que ele lhe quisesse calhar. O protagonismo indesejado foi uma consequência. «Ele nunca o procurou», acredita ABC. E, embora Rui Teixeira saísse do processo na fase do julgamento, o desembargador garante que a assinatura dele há-de marcar o caso. Como se viu! «Um pouco à semelhança de Martinho da Cruz [o juiz perseguido e ameaçado, que chegou a correr risco de vida] no caso das FP-25 de Abril.» Mas, por vezes, os elogios chegam dos lados mais insuspeitos. De Rodrigo Santiago, advogado do embaixador Jorge Ritto, por exemplo: «Por mais paradoxal que possa parecer, vou ter muitas saudades dele, pela pessoa correcta e cordata que é. Qualquer outro juiz que venha a seguir será, de certeza, pior que ele», atesta. Depois da prisão do diplomata, em Maio, o causídico e Rui Teixeira privaram alguns momentos a sós. Apareceu a pedir desculpas pela longa espera antes do início do interrogatório, justificando-se com a necessidade de apreciação da prova recolhida pelo Ministério Público. E quase que convidou o advogado coimbrão para um cafezinho. «São estes gestos atenciosos que marcam a diferença.» Rodrigo Santiago lembra ainda o seu «espírito democrático e a abertura às críticas dos advogados, sem manifestar o mínimo incómodo». Aquando do incidente para recusa de juiz, «reagiu com elegância ao nosso requerimento». E ainda deu tempo para divagarem sobre complicações informáticas, já que a disquete do defensor não era compatível com o sistema do CEJ. «Como defeito, aponto-lhe alguma precipitação. Dá ideia de que despacha duas vezes antes de pensar.» A sua informalidade nem causa grande desagrado a Rodrigo Santiago. «Mas vai ser-lhe cobrada quando tiver algum revés ou escorregar numa casca de banana. Enquanto estiver na mó de cima, a sua roupa e descontracção vão sendo toleradas, mas se as coisas correrem mal, o nosso sistema judicial não lhe irá, decerto, perdoar», vaticina.
Em privado, RT justifica a sua aparente tranquilidade: «Tenho processos muito mais complexos do que este. Só não têm figuras públicas tão conhecidas.»
Tudo isto para vos dizer que o caso de Rui Teixeira é mais do que um caso invulgar. É um caso único. Foi a 1ª vez que o Conselho Superior da Magistratura (CSM) congelou a carreira de um juiz em função de um processo judicial. 7 meses depois de a sua nota ter sido congelada por «ter sido proferida sentença judicial, que, em primeira instância, condenou o Estado ao pagamento de uma elevada indemnização na sequência de 'erro grosseiro' atribuído àquele magistrado, no exercício das suas funções», deu-lhe razão e, finalmente, homologou a nota de «Muito Bom». A decisão foi tomada em plenário, por maioria, com 10 votos a favor e 7 contra, que aplicou a nota proposta no relatório inspectivo. A deliberação do CSM dá-se 1 mês depois de o STJ ter dado razão ao recurso apresentado por RT, anulando a decisão anterior do CSM. O caso, por isso mesmo, regressou ao CSM, que teve de atribuir a classificação. Recorde-se que o Plenário tinha decidido, por maioria, suspender a avaliação de RT atése conhecer o desfecho do processo interposto por Paulo Pedroso contra o Estado português (em que este exige uma indemnização por ter estado preso preventivamente durante 4,5 meses por decisão daquele magistrado). O CSM justificou o congelamento da nota de RT com o facto de «ter sido proferida sentença judicial, que, em 1ª instância, condenou o Estado ao pagamento de uma elevada indemnização na sequência de "erro grosseiro" atribuído àquele magistrado, no exercício das suas funções».
Atitude que levou a Associação Sindical dos Juízes Portugueses a denunciar que perdeu a confiança no CSM e a apelar aos 5 juízes que votaram a favor da suspensão da nota de Rui Teixeira e ao que se absteve para que renunciem ao mandato e se demitam. "Trata-se de uma situação inédita e surpreendente, em que o órgão de administração e gestão dos juízes condiciona a avaliação do juiz à pronúncia de um tribunal superior quanto ao mérito das decisões proferidas num processo judicial concreto, em violação dos princípios constitucionais da separação de poderes e da independência do juiz". A ASJP refere que "por iniciativa de 3 vogais eleitos pela Assembleia da República e indicados pelo Partido Socialista, o plenário do CSM avocou a classificação de serviço de RT e deliberou, com 9 votos a favor, 2 contra e 1 abstenção, suspender a decisão sobre essa classificação enquanto estiver pendente o pedido de indemnização formulado pelo ex-ministro Paulo Pedroso contra o Estado". A posição do CSM está a ser entendida por alguns magistrados como um "aviso" e "um condicionamento". E, no entanto, a proposta votada para que a nota fosse suspensa, pelo plenário, partiu de Laborinho Lúcio (nomeado pelo Presidente da República para o CSM: o conselheiro propôs "avocar ao Plenário" o processo de inspecção ordinária do juiz RT e "sobrestar na notação" até decisão final do processo que condenou o Estado a título de responsabilidade civil extracontratual "a pagar uma indemnização a um dos arguidos do processo Casa Pia"), tendo ficado prejudicada uma outra no mesmo sentido apresentada por três juristas indicados pelo PS (Alexandra Leitão, Carlos Ferreira de Almeida e Rui Patrício). "A proposta votada é uma consequência directa da que acabou por não ser apreciada. O cerne do problema mantém-se", diz o sindicato dos juízes. Segundo fonte do CSM, a suspensão está relacionada com o facto de estar em causa a atribuição da nota máxima ao juiz de instrução do processo Casa Pia. O magistrado, actualmente em funções em Torres Vedras, tem a última classificação de 'Bom com distinção'. O inspector que avaliou o trabalho de RT propôs a nota máxima, de 'Muito Bom'. Existe um "problema", já que há uma decisão na 1ª instância, relativa ao período de avaliação, que condenou o Estado devido a um "erro grosseiro" do magistrado. Ou seja, "um erro que um juiz normal, em circunstâncias normais, não cometeria" - e que fundamenta o pedido de indemnização de Paulo Pedroso. Note-se que a juíza Ana Teixeira e Silva considerou subjectivamente que a foto de Paulo Pedroso (e que terá servido para ser reconhecido pelos alunos da Casa Pia que o acusavam) não era nítida. Fernando Girão, vice-presidente do CSM, já admitiu que os conceitos da Lei da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei nº 67/2007, designadamente, o de "erro grosseiro", quando aplicado à actividade dos tribunais, deve ser objecto de uma maior precisão e concretização (declarações no VI Encontro do CSM sobre «A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado na Administração da Justiça e no Exercício da Função Jurisdicional»).
RT "aguentou-se". O que cada vez menos se parece aguentar é o sistema judicial. Também pudera, são tantos os virus e bactérias que o debilitam, que, com qualquer atitude de um juiz "desengravatado", incomumente corajoso, tremem-lhe as fundações e abanam-lhe as estruturas. O juiz "aguentou-se! O sistema é que nem por isso!