segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Verdades e Dogmas: a Santa Inquisição

Falar de verdades pré-adquiridas, produtos vendidos a incautos, é falar em dogmas - a atitude de se afirmar qualquer coisa, sobre o quer que seja, sem a demonstrar: a atitude de quem avança um certo número de "verdades" sem admitir discussão -- de um modo autoritário e peremptório.
A Inquisição foi talvez o maior exemplo do perigo que é transformar uma qualquer "verdade" (a verdade conveniente, adequada, politicamente correcta) num dogma.
Ilustra-o bem Dostoievski. Conta uma história. Resolve fazer Jesus Cristo regressar à terra. Ora, Jesus, achando que é sua missão, faz alguns milagres e outras tantas magias. A multidão reconhece-o, mas ante a incompreensão do que faz, trai-o quando o cardeal grande inquisidor ordena à sua polícia que o prenda. Já no calabouço, Jesus, na véspera de ser condenado à fogueira, começa um longo monólogo que é um dos mais belos trechos da literatura anti-romana. "Por que vieste inquietar-nos?", pergunta o grande inquisidor. "Porque Tu vieste inquietar-nos, sabe-lo bem. Amanhã vou condenar-Te a arder na fogueira como pai dos hereges, e este povo que hoje beijou os teus pés precipitar-se-á, amanhã, ao menor sinal meu, para atear as chamas da tua fogueira, estás ciente disso? (...) A liberdade da fé deles em Ti era o que, a Teus olhos, havia de mais precioso há quinze séculos. Não foste Tu quem disse: «Quero tornar-vos livres»? Ora aí está, já viste os homens livres (...) Sim, isso custou-nos caro, mas levámos essa obra até ao fim em Teu nome. Durante 15 séculos, esta liberdade deu-nos que fazer, mas agora acabou-se, acabou-se de vez. Não acreditas que se acabou de vez? Olhas-me com doçura e nem sequer te dignas insurgir-te? Mas fica sabendo que é agora, mais do que nunca, que os homens estão convencidos de que são totalmente livres, e no entanto foram eles próprios que nos entregaram a sua liberdade, depositando-a docilmente a nossos pés. Essa foi obra nossa, mas era esta a liberdade que Tu desejavas?"
Como em todas as histórias, também esta tem uma moral: os homens preferem certezas tranquilizadoras e a obediência e disciplina cegas, aos tormentos da liberdade, e, provavelmente, será por compaixão para com estes que a Igreja esmaga tudo o que considera heresia, todo o pensamento heterodoxo, todo o comportamento desviante, e impõe o "seu" magistério e a "sua" verdade.
É uma explicação que se aplica a todas as ditaduras do mundo.
Mas foi com a "Santa" Inquisição, lançada na Idade Média contra as heresias dos cátaros e dos valdenses, contra os judeus e os iluminados (alumbrados), na Espanha dos Reis Católicos, ou contra a república teocrática de Savonarola em Florença, que se provou uma das maiores perplexidades para a sabedoria humana: é mais fácil acreditar na verdade, como dogma, sem a questionar, sem exigir prova da sua veracidade, do que demandá-la, inquiri-la, e reclamar argumentos ou provas que a sufragem. Porque a(s) verdade(s) do(s) outro(s) já está feita e descobrir a verdade, exigir que se ateste a verdade, implica tempo e obriga a que descubramos uma verdade maior, às vezes oculta, despercebida, e, muitas vezes, incómoda e complexa. Quem foi que disse que a verdade é sempre simples? Quem a tem assente. Quem a acha um dogma.