sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Escutas telefónicas - Um Caminho

“O direito penal, mesmo que rodeado de limites e garantias, conserva sempre uma brutalidade intrínseca que torna problemática e incerta a sua legitimidade moral e política” (Luigi Ferrajoli) Em “O processo”, de Kafka, existia a ilação “foi condenado, logo é culpado”, invertendo a lógica “é culpado logo foi condenado”.
A realização de escutas telefónicas, em Portugal, obedece a um esquema de formalidades legais dentro do sistema judicial. Somente um juiz pode autorizar a intercepção de um telefone desde que: esteja em investigação; nos casos em que há indícios de existir um crime cuja moldura penal seja superior a 3 anos, e depois de ter seleccionado o que é relevante para o processo - e que manda transcrever - e determinar o que considera irrelevante. Até há algum tempo atrás, as conversas que não tinham directamente a ver com o objecto da investigação eram destruídas, hoje, ficam gravadas em CD para que a defesa do arguido as analise e seleccione, por sua vez, a matéria relevante para a construção da sua tese (de defesa).
É o seguinte o caminho de uma escuta.
1. Numa primeira fase, uma escuta telefónica pode partir de um órgão de polícia criminal (PSP, GNR, SEF, PJ) ou do Ministério Público (MP). Identificado o número ou o IMEI (International Mobile Equipment Identity), número universal do equipamento, leva-se ao juiz de instrução o despacho que requer a intercepção com a fundamentação do pedido (de escuta). Mas uma das debilidades do sistema judicial-penal, é que nem sempre a fundamentação é clara e evidente, limitando-se a dizer que a diligência é importante para a descoberta da verdade material.
2.Recebido o despacho do MP, o juiz de instrução tem 3 três hipóteses: ou rejeita o pedido de intercepção, porque entende que não se justifica ou que não contém o devido enquadramento legal; ou assina de cruz o pedido; ou diz ao MP para enviar mais elementos de forma a tomar uma decisão. Nos casos em que o juiz requer mais informação, é verdade que surgem frequentemente conflitos com o MP.
3.Nos casos em que a intercepção telefónica é autorizada, é indicado um "alvo" por despacho do juiz, enviando-se cópia do mesmo para a respectiva operadora de telecomunicações, com a menção do número de telefone ou o IMEI que será posto sob escuta e mencionando-se a duração da mesma. A operadora acusa a recepção do despacho e informa o departamento de telecomunicações da PJ que a partir daquela data o sinal será bifurcado para a gravação.
4.O último passo do processo é o que causa maior celeuma jurídica. Segundo o Código do Processo Penal, "é lavrado auto, o qual, junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, é imediatamente levado ao conhecimento do juiz ". E o que se questiona é o "imediatamente". A jurisprudência dos tribunais superiores não é uniforme: uns entendem que, em 15 dias, no máximo, o juiz conhecerá e seleccionará o que é válido; outros entendem que cada questão carece de uma apreciação casuística, em face da complexidade das investigações. Ouvidas as gravações, o juiz selecciona - as polícias podem contribuir para a recolha, indicando as partes que consideram ser mais relevantes - , o que considera ser de maior interesse para a investigação. Posto, o que, por fim, as conversas são, então, transcritas para o processo.
Apesar das formalidades legais impostas para desencadear a autorização legal da implantação de escutas telefónicas, o sistema ainda não é convincente. Não estou convencida da bondade de um sistema que permite a invasão da privacidade "a torto e a direito", permeabilizando a saída de informações que são depois publicadas e arrasam, sem dó nem piedade, a suposta intimidade a que todos temos direito num Estado de Direito Democrático. Não gosto da hipótese de ouvir o que os outros dizem e comentam em suposta confidencialidade, porque sou da geração em que "até as paredes tinham ouvidos", o que me recorda o esquema de informações montado pelo regime fascista e o uso que dele fazia a PIDE-DGS, entrando pela casa de uns e de outros.
As escutas telefónicas começam a constituir um sucedâneo, no século XXI, para a tortura a invasão legitimada em épocas pretéritas: decidia-se quem era culpado e, depois, encontrava-se uma maneira de confirmar a culpabilidade. O mais leve indício de um crime conduz a que se ordem escutas telefónicas, e talvez fosse bom lembrarmo-nos que se temos por amigo algum político estamos muito perto de sermos nós também os devassados. É claro que as escutas telefónicas são, nalguns casos, essenciais para a descoberta de determinados crimes, e que o Estado de Direito exige que a criminalidade seja contida; embora não tenha dúvidas que os criminosos que são profissionalmente activos nesse tipo de crimes, estão "podres" de saber que elas existem e, por isso, apenas deixam escutar o "escutável". Evidentemente quero crer que o regime legal de escutas foi equacionado de modo a evitar abusos e pressupõe que quem faz as escutas seja superiormente controlado, e que até seja independente e que nem abuse das informações tecnológicas que obtém, mas basta manter uma cidadania minimamente activa para não acreditar de forma tão abrangente que o mito do bom selvagem se aplica a todos os agentes da PJ. A situação tornou-se intolerável: a generalização do uso de escutas como um método normal de investigação incorre no risco de se desrespeitar "sem dó nem piedade" os direitos constitucionais de primeiro grau que assistem a todos, como cidadãos. Ora, esta crua e impiedosa invasão cria uma atmosfera miasmática em que nada de bom pode nascer. A que acresce as interpretações baseadas numa lógica securitária, numa filosofia de que os fins justificam os meios e na tendência para se estruturar sistemas liberticidas sobre a tese (avançada sem ironia pelos seus defensores) de que quem não deve não teme e que por isso quem contra abusos de escutas protesta fá-lo seguramente porque tem algo a temer. É contra esta maçica forma de pensar que urge que nos erguemos.
As escutas telefónicas podem ser um instrumento de investigação legal e legítimo, reconheço, mas temo que a sua utilização indiscriminada, despida de regras, subtraída a controlos, sem qualquer respeito pela privacidade e concretizadas por quem nem sempre possa ser assim tão independente, a torne inadmissível, intolerável e insuportável.
Sugeria algumas medidas e, para os meus amigos da Justiça, aqui as deixo para reflectirem.
1. Criação de uma entidade (uma “Comissão de Controle das Escutas Telefónicas”), que defina as regras a que obedecerá a selecção criteriosa de quem trabalha em escutas, que seleccione os que as vão tecnicamente fazer, que fiscalize o sistema de escutas e que monitorize o seu funcionamento. A AR (por eleição feita em moldes semelhantes aos actualmente usados para os membros do CSM), o PR, o CSM, o CSMP e a OA designariam os membros desse órgão, e o mesmo seria presidido por um Juiz Conselheiro.
2. Garantindo - se necessário por recurso a uma aclaração do texto da lei - que as escutas não aproveitadas para o processo sejam eliminadas, de modo a que não sejam guardadas para quaisquer outros fins, designadamente para ajudar a investigação de crimes em relação aos quais não seja possível determinar escutas.
3. Clarificação, no Código do Processo Penal, da inadmissibilidade da utilização dos “conhecimentos fortuitos” obtidos em escutas autorizadas. A CCET realizaria operações regulares e aleatórias de monitorização do respeito das leis e dos procedimentos.
4. As escutas ficariam sujeitas ao controlo directo do MP (e não da PJ) e submetidas ao Juiz de Instrução competente num prazo máximo de 5 dias (definindo-se desse modo o conceito indeterminado – “imediatamente” – referido no artigo 188, nº1 do CPP e clarificando-se que é nula e insuprível a prova que não respeite estes prazos - apesar do disposto no CPP, há jurisprudência contraditória sobre esta questão) para que fosse o Juiz a determinar o que aproveitar e o que não é aproveitável.
5. Apenas se poderia aproveitar, sob pena de nulidade - insuprível se os registos já estiverem destruídos – o registo com suficiente amplitude para que não possa ser descontextualizado o que é registado, para que seja possível a quem seja acusado com base em tais escutas clarificar eventuais significados equívocos do que foi registado. E ainda melhor, a defesa deveria ter acesso às gravações antes da sua destruição, para lher dar o uso mais conveniente. Se as escutas ocorrerem depois da acusação, as partes devem ter acesso imediatamente, por nada justificar outra solução.
6. A decisão sobre colocação em escuta de qualquer cidadão deve ser tomada pelo Juiz com base em despacho fundamentado na existência de indícios suficientes que o justifiquem e sob proposta ela também fundamentada pelo MP. E no despacho deve ser clarificado que essa é a única forma relevante de obter os indícios necessários à investigação. Deve tal decisão ser automaticamente analisada pelo Tribunal da Relação, sem dependência de recurso (inviável devido ao desconhecimento em que se encontra o escutado), de 3 em 3 meses, devendo o despacho do JIC ser renovado de 15 em 15 dias para se poder manter a escuta.
7. Não deve ser admitida a escuta de nenhum cidadão em relação ao qual não existam indícios suficientes que permitam a aplicação de medidas de coacção. Este regime não se aplicará a crimes em relação aos quais lei especial hoje permite as escutas de não implicados e só a esses crimes. Em qualquer caso, deverá já existir procedimento criminal em curso, e não contra incertos, para ser viável, devendo clarificar-se o CPP para este efeito.
8. A colocação sob escuta de advogados e de outras entidades em relação às quais existam regimes especiais, deve ser sujeita a regras equivalentes às que existam para outras formas intrusivas na sua actividade. Por exemplo, nenhuma escuta a um Advogado seria decretada sem prévia presença no desencadear do procedimento por parte da OA, à semelhança do que acontece com buscas a escritório, medidas estas tendentes a proteger o segredo profissional e os restantes clientes do advogado. Em qualquer caso, os membros dos órgãos dirigentes da OA devem beneficiar para este efeito de regime idêntico ao dos magistrados a que estão protocolarmente equiparados.
9. A decisão sobre escutas em relação a titulares de órgãos de soberania seria determinada sempre por um tribunal superior, podendo em relação às principais figuras do Estado, como o PR, o PM, o Presidente da AR, os Presidentes dos Tribunais Superiores, o PGR, e o próprio Bastonário da OA, ser a competência atribuída ao próprio Presidente do STJ ou a este Tribunal.
10. O desrespeito do regime garantístico das escutas telefónicas seria sempre uma falta especialmente grave para efeitos de procedimento disciplinar e de responsabilidade civil.
Lemos, hoje, no «Sol», um extracto do despacho do juíz de instrução do tribunal de Aveiro que alega terem sido encontrados indícios, nas escutas entre Paulo Penedos e Armando Vara, de que o PM foi conivente de um plano para afastar a jornalista Manuela Moura Guedes e José Eduardo Moniz. Ultimamente, o bastonário da Ordem dos Advogados afirmou que a divulgação de despachos de investigadores do processo «Face Oculta» na imprensa era «uma forma de torpedear a decisão» do STJ para serem destruídas as escutas e disse que há «promiscuidade» entre alguns sectores da Justiça e dos media. Em declarações à Lusa, António Marinho Pinto afirmou que «muitos magistrados utilizam uma forma de contornar as disposições quer da lei quer dos tribunais superiores», anotando que o despacho do juiz António da Costa Gomes, que é citado na última edição do «Sol», «ficará para sempre nos autos». Salientou ainda que «não competia» àquele magistrado «fazer essas apreciações, que são competência exclusiva do presidente do STJ», Noronha do Nascimento. «Havia que atingir o primeiro-ministro sempre», frisou. «Alguns magistrados deixam-se envolver pelas paixões políticas». Para o bastonário, a divulgação parcial de escutas do processo, é um sinal de que «há em Portugal uma agenda política e uma promiscuidade entre certos sectores da Justiça e da comunicação social». «Isto foi uma forma de torpedear a decisão do Supremo de mandar destruir as escutas», disse. «Só demonstra que a sociedade portuguesa está numa deriva de desrespeito pelos valores essenciais da democracia e do Estado de Direito», sublinhou. O juiz do processo Face Oculta diz que vai cumprir «escrupulosamente» a ordem de NN para destruição das escutas. A informação do magistrado ACG foi avançada à Lusa através do presidente da comarca do Baixo Vouga, desembargador Paulo Brandão. De acordo com este, a destruição das escutas que o presidente da STJ, NN, ordenou, envolvendo AV e JS, só ainda não foi feita «porque se está à espera do expediente» necessário. O magistrado de Aveiro esclareceu que a divulgação das escutas, esta sexta-feira, não constituiu qualquer crime de desobediência «já que não se trata de conversas abrangidas» pelo despacho de Noronha do Nascimento.
No fim da história, pergunta-se: de que serviu a algazarra? Se era assim tão tamanha a evidência de matéria criminal, onde se provou o contributo das escutas para encontrar a verdade? Onde está o resultado de assaz impiedosa devassa? Sabe o amigo? É que eu também não!