Um dos temas que já deu e sempre dará que falar é o da fronteira ténue entre vida pública e vida privada. O caso Fernanda Câncio/José Socrates foi um deles. As escutas telefónicas serão sempre outro deles. Aproveitando o facto de um conjunto de cidadãos de reputada consciência política, entre os quais Miguel Sousa Tavares, ter vindo a público insurgir-se contra a banalidade das mesmas e e intromissão e devassa que, a torto e a direito, se faz das vidas privadas, a pretexto do interesse público, e de eu me colocar insistentemente do lado dos escutados (a não ser que o fundamento do pedido de escutas seja suficientemente fundamentado, o que nem sempre ocorre), julgo ser de alguma utilidade deixar-vos com algumas questões.
A questão desta fronteira trava-se, sobretudo, a propósito da relação vida pública/vida privada/comunicação social.
Nos Estados Unidos, a fronteira é ténue ou mesmo inexistente. Basta lembrarmo-nos dos casos Monica Lewinsky e Tiger Woods.
Em Inglaterra, várias figuras públicas recorreram, com sucesso, à "super injuction" impedindo a publicação de situações relacionadas com a sua vida privada. O debate está reaberto na sequência da últimas decisões da "a major step towards ending the culture of secrecy in Britain’s courts". O capitão da selecção inglesa (John Terry, colega dos internacionais portugueses Deco, Paulo Ferreira, Ricardo Carvalho e Hilário no Chelsea) está confrontado com uma história de traição estampada nos jornais, com o Juiz do High Court a considerar que a liberdade de expressão tem prevalência sobre a vida privada (
aqui,
aqui e
aqui).
Na esteira de Warner e Stone, a privacidade abarca até o direito à solidão, à intimidade da vida familiar e privada, ao anonimato e à distância em relação a estranhos. A PGR reconheceu já que a intimidade da vida privada é protegida pela lei protege, compreendendo os actos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos e afectos familiares, os costumes de vida e as vulgares práticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e, até, por vezes, o amor da simplicidade, aparecer desconforme com a grandeza dos cargos e a elevação das posições sociais; sentimentos, acções e abstenções, que podem ser altamente meritórios do ponto de vista da pessoa a que se referem, mas que, vistos do exterior, tendem a apoucar a ideia que deles faz o público em geral (Parecer nº 121/80, de 23 de Julho de 1981).
Um autor italiano entende por "esfera íntima da vida privada" o sector da vida que se desenvolve entre as paredes domésticas e no âmbito da família e considera o direito da pessoa a conservar a discrição mesmo em torno dos acontecimentos e do desenvolvimento da sua vida como uma manifestação do "direito ao resguardo" (diritto alla riservatezza) - De Cupis, "Os direitos da personalidade", trad. de Adriano Vera Jardim, e António Miguel Caeiro, Morais Editora, Lisboa, 1961, págs. 142 e segs. Mas admite que estes direitos consentem certas limitações. A notoriedade de certas pessoas implica que não possam opor-se à difusão da própria imagem e à divulgação dos acontecimentos da sua vida. O interesse público sobrelevará, então, o interesse privado. São consequências do que a doutrina apelida de "custo da notoriedade", o "direito à curiosidade" (expressão sugestiva mas tecnicamente menos correcta).
Excepcionando estes casos, as exigências do público devem deter-se perante a esfera íntima da vida privada, o "santuário da privacidade" ou a "noyau irréductible" da intimidade pessoal (Stefano Rodotà, "Protection de la vie privée et controle de l´information: deux sujets d´inquiétude croissante pour l´opinion publique apud OCDE" - Etudes d´informatique, nº 10, pág. 158).
O direito de liberdade de expressão e informação (artigo 37º da CRP), por um lado, e o direito ao respeito pela intimidade da vida privada, por outro; o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, em correspondência com o princípio da administração aberta (artigo 268º, nº 2, da CRP e Lei nº 65/93, de 26 de Agosto), por um lado, e a tutela de bens constitucionalmente protegidos - a segurança interna e externa, a investigação criminal e a intimidade das pessoas (artigos 26º e 35º, nº1, da CRP, a mero título de exemplo), por outro; enfim, o dever de guardar sigilo profissional em face do dever de fornecimento de informações obrigatórias (artigo 32º, nºs 1 e 3 da Lei nº 10/91), são os pontos e contrapontos desta questão. Tem de ter-se presente, poreém, o carácter não absoluto do direito à reserva da intimidade pessoal e a própria relatividade do seu conteúdo, reconhecida pelo artigo 80º, nº 2, do Código Civil, que defende que "a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas".
Pode entender-se a "vida privada", como "aquele conjunto de actividades, situações, atitudes ou comportamentos individuais que, não tendo relação com a vida pública (privada entendido como separado da coisa pública), respeitam estritamente à vida pessoal e familiar da pessoa" (Garcia Marques, "Informática e Vida Privada", Lisboa, 1988, Separata do "Boletim do Ministério da Justiça", nº 373). Ou através de uma conotação com a ideia de vida tranquila ("the right to be let alone") e do direito de a pessoa se opor às ingerências externas e ilegítimas de outrem. Mas, como se reconhece num outro parecer do Conselho Consultivo da P.G.R., no âmbito do qual se aborda a tutela penal do direito à reserva da vida privada, não ficam por aqui as possibilidades de enriquecimento do conceito, a pressuporem elaboração doutrinal e jurisprudencial permanentes (Parecer nº 17/83, de 18 de Março de 1983, publicado no "Boletim do Ministério da Justiça", nº 330, págs. 306 e segs.)
O direito à protecção de uma "esfera reservada e íntima" é, dentro dos direitos de personalidade, o de concepção legislativa mais recente. A "intimidade só mereceu a atenção dos homens do Direito quando, nos fins do século passado, começou, muito timidamente, a princípio, aquilo que alguém chamou a revolução da informação. A paulatina divulgação das técnicas de impressão e fotografia, bem como o aparecimento do telégrafo e do telefone, possibilitaram uma eficaz difusão da informação num espaço cada vez maior. Os pequenos aglomerados, onde todos se conheciam, transformaram-se rapidamente em grandes cidades onde o homem comum passou a ser cada vez mais um leitor de jornais" (Januário Gomes, "O Problema da salvaguarda da privacidade antes e depois do computador", no "Boletim do Ministério da Justiça", nº 319, págs. 23 e segs.).
É conveniente reservar o direito à intimidade contra duas diferentes formas de agressão. Contra os atentados ao segredo da vida privada. E contra os atentados à liberdade da sua vida privada. Se a vida privada e familiar tem necessidade de segredo para se desenrolar, isso resulta também do facto de o segredo ser uma condição da sua liberdade (Pierre Kayser, "La Protection de la Vie Privée", Presses Universitaires D´Aix-Marseille, 2ª edição, 1990, págs. 3 e segs.).
Qual o âmbito de protecção constitucional da reserva da "intimidade da vida privada"? O conteúdo que se defina para os efeitos do artigo 26º influenciará a apreciação do espaço conceitual de "vida privada", do nº 3 do artigo 35º (CRP). O âmbito normativo do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada e familiar deve, pois, delimitar-se com base num conceito de "vida privada" baseado numa referência civilizacional a três aspectos: (1) o respeito dos comportamentos; (2) o respeito do anonimato; (3) o respeito da vida em relação (Gomes Canotilho/Vital Moreira, "Constituição da República Portuguesa Anotada", Coimbra Editora, 1993, anotação ao artigo 26º, pág. 182).
A tutela da vida privada é perspectivada por oposição ao conceito de "vida pública". O núcleo da "vida privada" é composto por uma série de dados pessoais com vários níveis de "sensibilidade". Esse núcleo inclui os dados relativos à filiação, residência, número de telefone, estado de saúde, vida conjugal, amorosa e afectiva, os factos ocorridos "entre paredes", as informações transmitidas por carta ou outros meios de telecomunicações, os factos passados "esquecidos", objectos e recordações pessoais, situação patrimonial, encontros com os amigos, saídas e entradas de casa ... E assim é porque "a pessoa tem em relação a estes acontecimentos, desde que sejam pessoais (...) um interesse de privacidade" (Mota Pinto, "O direito á reserva sobre a intimidade da vida privada", BFDUC, 1993, nº 69, págs. 526 e segs.).
Mais, o âmbito do direito consagrado no artigo 26º da CRP diz respeito não à vida privada, mas à reserva da intimidade da vida privada (Helena Moniz, "Notas sobre a protecção de dados pessoais perante a Informática - O caso especial dos dados pessoais relativos à saúde" - Separata da Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC 7 (1997), Coimbra Editora, AEQUITAS, págs. 231 e segs.).
Concluindo, a tutela da intimidade da vida privada, a "esfera da intimidade", não incluirá, no âmbito da protecção, a "esfera da vida privada" e a "esfera da vida normal de relação" - os factos que o interessado, apesar de os subtrair ao domínio do "olhar público" (hoc sensu, da publicidade), não resguarda do conhecimento e do acesso dos outros. Inclui, nessa medida, todos os aspectos do domínio particular e íntimo que se quer afastar do conhecimento alheio. Em jeito de sumário, uma coisa é a esfera privada e a esfera individual; outra, é a esfera íntima ou a esfera do segredo.
E isto é algo que merece a nossa reflexão. A bem da liberdade.