Os gestos de amor comovem-se sempre.
Somos um povo que não é muito dado a arrebatamentos amorosos. Dificilmente Romeu e Julieta seriam portugueses. A história de Pedro e Inês foi uma honrosa excepção. A de Sá-Carneiro e Snu outra. E ficaram faladas, foram faladas, deram muito, mesmo muito que falar. Nos tempos que correm, amar ficou fora de moda. Quando nos confessamos apaixonados olham-nos como se fôssemos bizarros e estranhos. Falar das histórias dos outros é feio, a não ser que sirvam de exemplo para provar que ainda exista quem se manifeste, com amor, sem medo do que os demais pensam, de serem ridicularizados. Só falo de Fernanda Câncio porque lhe aprecio o gesto de amor e porque, ao que se sabe, a história acabou.
A Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas, em plenário, indeferiu o recurso de FC, em que esta se indignava pela forma como os seus colegas-jornalistas (Pedro H. Gonçalves (Correio da Manhã), Amélia Moura Ramos (SIC) e Carolina Reis (Expresso)), a referiam, "a «namorada do primeiro-ministro»", e mandou arquivar o processo.
Fernanda Câncio é jornalista, no Diário de Notícias, onde assina uma coluna de opinião, e é redactora de um blogue colectivo, o Jugular, e utilizou o seu Twitter para manifestar o apoio à pessoa do primeiro-ministro. Ao seu carácter. Teria toda a legitimidade dado que se alguém conhece o PM, na intimidade é ela. Ora, se todos que não o conhecem se gastam a falar mal dele, não sei porque não pode ela, que o conhece, falar do que sabe, e que é falar dele bem. Num país em que amar já é incomum, e que se cultiva o silêncio, sobretudo nas classes sociais mais abastadas e na classe política, também, uma mulher que mantém uma relação afectiva com um PM deve, nesta lógica, vetar-se ao apagamento. Foi este o grande pecado da Fernanda. Ela sabia, com certeza, que qualquer atitude, fora do contexto da mediocridade latente e prevalecente, seria intolerada. FC, como mulher de cultura, deve ter pensado em Emile Zola.
FC, numa inocência própria de quem falou com o coração e com a razão emotiva, ofendeu-se pela forma pouco ética como os colegas a referiram e acha que a decisão da CCPJ “atenta contra a reserva da intimidade quem identifica publicamente outra pessoa com base numa sua relação íntima, sem que esta a isso autorize” (a jornalista reagia assim, num comentário publicado no blogue Jugular, intitulado “comissão de quê?), considerando “extraordinários” os termos utilizados no relatório. Pergunta “Por que meios e com que legitimidade e rigor e deontologia jornalística é que terá chegado ao conhecimento público [esta matéria]”. E questiona o “interesse jornalístico” da informação: “Será o mesmo que o interesse de vender jornais/revistas/folhas de couve?” O argumento principal da Comissão era que a sua relação seria pública (consta d'“O Menino de Ouro do PS”). “Na dita biografia (que se apelida de autorizada para significar que foi como que escrita ou pelo menos toda aprovada pelo biografado, o que a comissão se exime de provar ou sequer de consubstanciar) o biografado 'assume' a tal dita relação. Por acaso é falso.” E discorda que “uma comissão composta essencialmente por jornalistas decida que basta para a qualificar como tal a existência de uma (não existente, de resto) assunção da outra parte da alegada relação”.
A decisão da CCPJ, disse mais, que “a matéria em causa era do conhecimento público e de interesse jornalístico, dada a situação de conflito de interesses entretanto gerada”. “O conflito de interesses resulta de a autora do texto [Fernanda Câncio], à data dos factos e conforme é público e notório, ser namorada do primeiro-ministro – não se coibiu, todavia, de o defender, sem daquela relação ter dado conhecimento aos seus telespectadores”. Os factos reportam às opiniões que Câncio defendeu no programa “A Torto e a Direito”, transmitido na TVI24.
No relatório completo da CCPJ entendeu-se que não se pode falar em “infracção disciplinar” porque a relação de Sócrates e Câncio foi “assumida” na dita biografia, pelo que a queixosa “não podia ignorar a repercussão e as apreciações” que teriam as opiniões “coincidentes com as manifestadas pelo chefe de Governo”. A suposta relação entre FC e JS não teria projecção se não fosse aquela concreta circunstância de ela fazer ouvir a sua voz, em defesa de Sócrates. A jornalista escreveu uma declaração pública de indignação por aquilo que entendia ser uma injustiça, num texto de uma grande sensibilidade, uma manifestação de solidariedade, afecto e justiça. “O meu dever é falar, não quero ser cúmplice”, escreve a jornalista, citando Émile Zola. “É sempre boa altura para lhe honrar o repto”, acrescenta.
A verdade é que FC falou (bem) quando todos se calaram ou acompanharam as vozes atacantes. Devia achar-se que defender os que amamos (independentemente do tipo de amor) é louvável e esperável. Mas não é.
Ora, falou-se de Zola, porque a insurgência da Fernanda faz em muito lembrar o texto J’Accuse (de Émile Zola), e quando a sua voz se ergueu em defesa de um homem com quem convive e que sabe difamado, teve um acto sem precedentes, e foi um acto público. Não estamos habituados a posturas de defesa, Hillary Clinton, se vivesse aqui, talvez se tivesse calado, continuado, como se nada fosse, mas FC, num gesto que faz lembrar a afronta de Sá-Carneiro face à rejeição nos meios políticos da sua relação com Snu, pareceu "deslocada".
“Há 111 anos, a 13 de Janeiro de 1898, foi publicada a mais grandiosa peça jornalística de todos os tempos. Escrita como carta aberta ao Presidente de França, é um apelo indignado em nome de um inocente injustamente condenado, um libelo contra um sistema judicial corrupto e uma opinião pública contaminada pela manipulação da verdade e pelos seus preconceitos (o condenado era judeu), através de uma campanha mediática abominável”, escreveu a jornalista, contando como Zola, apesar de saber o risco que corria, conseguiu mudar o rumo da opinião pública. “O caso Dreyfus, como muitos outros antes e depois dele, mostra o lado negro do poder do sistema judicial. Quando um sistema, criado para certificar a procura e o triunfo da verdade, despreza a verdade e funciona como se estivesse acima das leis por cujo cumprimento lhe cumpre zelar, instrumentalizando o extraordinário poder que lhe é conferido, não há Estado de Direito.” Para terminar, a jornalista usa uma citação de Zola: “‘O meu dever é falar, não quero ser cúmplice’.
Nos comentários do seu blogue lia-se que “o artigo tem um forte sentido de oportunidade ou de oportunismo. E como em tudo o que escreve Fernanda Câncio sobre o Governo e o seu primeiro-ministro, abunda um forte sentido familiar, nesta terra onde todos se aconchegam, sejam namorados, irmãos, sobrinhos, tios ou primos. Falta-lhe é o pudor que impunha o sentido ético de não se transformar um jornal outrora prestigiado num boletim partidário ou numa folha oficial do Governo.” No Jugular este “honrar o repto” deu-lhe azo a polémica, entre a coragem e a reprovação (aduzindo-se que não teria sabido distanciar o coração da razão).
Judite de Sousa (casada com Fernando Seara, presidente (PSD) da Câmara de Sintra), saiu a terreiro em defesa da colega (convidada pelo "24 horas" a pronunciar-se sobre as críticas que a oposição e todos os adequadamente correctos teceram a FC, comentou que o ataque dos sociais-democratas "é uma coisa absolutamente inaceitável", reagindo à insinuação da direcção do PSD que afirmou que a participação de FC num programa que vai passar num canal público se devia apenas ao facto de ela ser namorada do PM - uma situação "escandalosa e até pornográfica", segundo os próprios. Judite foi peremptória: "Trata-se de um ataque inadmissível. Não se deve nunca misturar a esfera privada com a esfera profissional das pessoas.").
Como estes sociais-democratas estão longe dos tempos de Sá-Carneiro!
Curiosamente, os assessores de JS várias vezes o aconselharam a deixar-se ver em público com os amigos, as amigas, os filhos e naturalmente também com os amores. Mas foi a sua discrição a maior inimiga. O que leva à especulação. A reserva de JS quanto à sua vida privada suscita ditos e mexericos. Mas parece coerente. Se evita expôr os filhos, porque haveria de expôr a namorada? Pedro Adão e Silva já várias vezes afirmou que muito poderia ter servido a Sócrates usar a sua vida pessoal para fazer política. "Com a polémica que enfrentou na campanha de 2005, ter-lhe-ia sido vantajoso ser fotografado com os filhos ou com a namorada. Não o fez e isso é positivo", defende o politólogo. Para que os portugueses (re)lembrassem o amor, e, principalmente, o que são gestos de amor, era bom que o planeado filme sobre Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis fosse adiante. A produtora de Manuel Fonseca assumiu o compromisso de, até 2010, o fazer chegar ao ecrã. Vai chamar-se ‘Sá e Snu’. E pode voltar a lembrar que amar não tem de ser cinzento, mas que deve ser um sonho a cores.
Basta reler o poema "Os Amantes", de Daniel Filipe. Para compreender que uma simples história de amor pode incomodar o status quo. Pode até (e deve) ser subversivo. Porque amar é um sentimento genuíno. Sem contemplações. Sem hesitações. É ser inteiro, como dizia Pessoa!