Sinto-me mais ou menos sozinha nesta luta pelo direito ao sossego. Ao dolce faire niente. Umas largas horas por semana em casa a cogitar, a enredar, a arquitectar, sobre a vida. Sem mais. Acham-me hiperactiva, neurótica pelo trabalho, workaholic. Mas quem me conhece bem sabe que regateio uns momentos de paz, a sós, e como me acuso por cada minuto desperdiçado. Embora apesar de me dedicar, com afinco, ao que (re)faço, também sou incansável a reservar o espaço e o tempo para mim. Depois de ter enveredado pela actividade autónoma, julgam estranha esta minha aversão em arranjar um espaço fora de casa para estabelecer um escritório. Não é assim tão estranha. Não me vergo facilmente ao dogma de que um criativo tem de se sediar logisticamente fora de casa para produzir. Ter escritório, ir ao escritório. Não me parecem assim tão fundamentais. Posso trabalhar em qualquer lado. E até posso trabalhar em casa. Criar é um acto e um gesto a-local. Portanto, em casa também se cria, como noutro lado qualquer. Até para executar não tenho necessariamente de abandonar o canto reservado e pessoal dos meus livros e apontamentos. Da poltrona. Da sala. Produzir, se implicar trabalhar em equipa, pode exigi-lo. A solo, não sei porquê. Teimo nesta ideia que, como sou uma espécie híbrida entre o género criativo e o executivo, ora tenho de ir ora posso estar.
Trabalhar com relógio de ponto não é um imperativo! É uma regra. Tão-só. (aparelhozinho mais insignificante e trabalhador que me afastou definitivamente da Administração Pública!)
Estou naquela onda de defender, ferverosamente, o ócio criativo. É um conceito de Domenico De Masi, em livro - que recomendo - sobre a sociedade pós-industrial, o desenvolvimento sem emprego, a globalização, a criatividade e o tempo livre. Partindo da insatisfação com o modelo social centrado na idolatria do trabalho, o sociólogo italiano propõe um novo modelo de sociedade baseado na simultaneidade entre trabalho, estudo e lazer, no qual os indivíduos são educados a privilegiar a satisfação de necessidades radicais, como a introspecção, a amizade, o amor, as actividades lúdicas e a convivência. Segundo De Masi, sendo verdade que o ócio corre o risco de se tornar em violência, neurose, vício e preguiça, é também verdade que se pode elevar para a arte, a criatividade e a liberdade.
Desde Setembro que estou livre dos laços que me ligavam ao Tribunal de Contas! E Deus sabe como isso me tem feito bem. Como me vi medrar! Como me redescobri! Foi enfim provavelmente o maior - ou o primeiro dos ... - acto de lucidez da minha vida! Curiosamente, muitos interpretaram-no como prova de insanidade! Confirmei que é naquele precioso tempo que chamamos de "livre" que mais estamos ocupados. Retidos para pensar, filosofar, explorar qualidades, optimizá-las e exponenciá-las. Por isso Domenico entende que o ócio criativo é uma ferramenta para o aprimoramento, o aperfeiçoamento, pessoal fora do trabalho. Trata-se de uma das mais belas teorias, que nos impele para o reconhecimento da necessidade de nos compormos como indíviduos, de nos recompormos como seres sociais. Como diz Domenico - "A criatividade não é só ideias, é unir fantasias com concretizações". Saber aproveitar o tempo livre é construir um mundo novo à nossa volta, no qual nos arrogamos ao direito de exercitar o corpo e a mente, reencontrarmos os amigos, a família e reinventaremos a colectividade. Sendo o tempo o nosso bem mais precioso é reconfortante pensar que esta, que é uma conversa vulgar, é tema da tese deste professor de Sociologia do Trabalho, Director da Faculdade da Ciência de Comunicação da Universidade "La Sapienza" de Roma. Ao fim e ao cabo, temperamo-nos com a ideia de que também os académicos pensam nisto! O que não admira, porque, entre devaneios de ócio e não ócio, é que nasceu a filosofia! E para quem não perceba que um consultor e um cidadão consciente atinge a sua melhor perfomance se, de vez em quando, parar, passo a explicar, corroborando o professor, porque é que não é de todo inconciliável o ócio criativo com o estudo, o trabalho e a diversão. Antes de mais, isso consegue-se com uma grande paixão pela vida, com um profundo gosto pelo trabalho. É um paradoxo? Não. O que está em causa é o tradicional modelo de trabalho. Conheço imensa gente que desperdiça tempo a fazer coisa nenhuma e que nem sequer estuda, se actualiza, se aperfeiçoa. Ou seja, que são maus profissionais! Quanta gente fica todo o dia no empregozinho falando sobre isto e mais sobre aquilo, jogando no computador, pensando em nada. No fim do dia, até tem créditos no relógio do ponto! Se produziu? Nem sempre. A capacidade de alienação continua a ser um mecanismo de defesa para quem não gosta do que faz, porque não gosta da vida, porque não gosta de si!
Reencaminhando-nos para a filosofia, o momento e o lugar ficam na Grécia, no tempo em que tinha 40 mil habitantes e cerca de 80 grandes génios (Sócrates, Platão, Aristóteles...) É óbvio que se dispara com o argumento de que tal apenas foi possível porque havia escravos à disposição ( 8/pessoa), mas será bom não olvidar que grande parte da força braçal foi substituída pela tecnologia e que o uso de toda a tralha de electrodomésticos e equipamento que existe nas nossas casas equivale ao trabalho de 33 escravos.
Resta o problema de que, com o ócio criativo vem também a introspeção, a meditação, a reflexão, a autocrítica, e há muito boa gente que, ao olhar para dentro, não gosta do que vê. Problema deles. Como diz a Vera "Temos pena!"