quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Perseguindo o Sonho!


"Navegar é preciso. Viver não é preciso.", citando Pedro Moreira "As Asas Do Desejo: Porque é preciso sonhar ", E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 6 (2007).
Não sei se é sonho se é utopia. Nem tive de ler o António Damásio (Erro de Descartes) para perceber que o desejo, tal como a capacidade de sonhar, é um dom humano . O que verdadeiramente nos separa dos outros seres. Não a razão mas o sonho. A voluntariedade de sonhar. Damásio evidencia que a forma como determinadas zonas do nosso cérebro controlam a capacidade de pensarmos no amanhã, nas nossas aspirações e projectos para lá do limiar do imediato, do hoje. A verdade é que deveríamos ter compreendido que a grande parte de nós, com a dificuldade que tem em se deixar levar pelos sonhos, em vez de os converter em futuro, cumprimo-los tão tardiamente que os mesmos chegam a ser não futuro mas passado. Esquecemo-nos que somos efémeros e tardamos a viver. E se tardarmos a sonhar, tardamos a viver. E, um dia, pode ser tarde demais. Existe o risco de, se nos limitarmos a procurar reescrever os erros de ontem, nos tornarmos autênticos Velhos do Restelo, na amargura do tempo ter já passado e de não termos embarcado na caravela do sonho. Porque pelo sonho é que vamos! Pelo sonho renascemos! Metamorfoseamo-nos! Porquê deixar que a caravela da vida parta sem descobrir a capacidade de ir mais além, de ter golpes de asa.
Vejam, de Wim Wenders, As Asas do Desejo (1987).
Cenário: Berlim do final dos anos 80. O guião, inspirado na poesia de Rilke e escrito em colaboração com Peter Handke, acompanha o dia-a-dia da Berlim do final da década, de uma humanidade desiludida que vagueia cinzenta pelas cicatrizes do Pósguerra. Esta situação é-nos relatada do ponto de vista de dois anjos – Cassiel e Damien – visíveis apenas por crianças e incapazes de qualquer contacto físico com o mundo humano. A sua visão é a preto e branco. Em contraponto, recorre ao longo do filme a narração em voz-off de um poema de Handke, Song Of Childhood. Esta canção da infância recorda o que depressa esquecemos, esse ponto comum a todo o ser humano, por mais diferente que a sua experiência de vida seja: a criança é o sonhador perfeito. É capaz dessa proeza de olhar um riacho como um rio, um rio como uma torrente e uma poça como um oceano. Encara o futuro como um território de possibilidade total, a sua construção do mundo não encontra terrenos demarcados pelas barragens da negação. Recordar as proezas da nossa infância não constitui um exercício inútil de nostalgia mas uma proeza maior.
Esta capacidade primeira de sonhar, de encarar o futuro com optimismo, é o fruir primeiro do impulso utópico. “Imagination is more important than knowledge”, assim é citado Einstein por Federico Mayor em Attempting The Impossible. Não é a utopia o reflexo máximo da vontade humana de ir mais além? O conhecimento só pode conceber a chave para um futuro melhor quando aliado pela imaginação, quando carregado pelas asas desse desejo. Na ausência dele, torna-se uma prisão, estagna o Homem na realidade cinzenta da Berlim de Wenders. É particularmente comovente a imagem de um idoso que procura a Potsdamer Platz de tempos idos, recordando-a num cenário de ruína, ao lado do Muro. Este olhar para o passado nas ruínas do presente serve de metáfora para expressar a perda da oportunidade de reclamar o paraíso quando o homem perde a capacidade de sonhar e olhar para um futuro melhor. Ao retratar o Homem nos dois extremos da sua existência – Infância e Velhice – o filme traça o arco dessa perda. O mundo da infância, presente através da recorrência do poema, denuncia a insuficiência e alienação do mundo adulto na sobreposição da narração às imagens. Desta forma, é identificado com o mundo dos Anjos, na medida em que ambos têm capacidade de sonhar: a Criança com o Futuro e os Anjos com a existência material. Ao metaforizar a Infância num poema, sem concretizar através de uma personagem esta reflexão, Wenders iguala-a à neutralidade observadora dos Anjos. Assim, ambos olham o Homem com esperança e espanto. Recorrentemente, os dois anjos partilham os pensamentos que recolheram na sua observação, maravilhados com a beleza de momentos que passam totalmente despercebidos aos humanos. A admiração que passa por eles é cândida e, de certa forma, infantil aos olhos do espectador. Uma Humanidade sem sonho vive destituída e empobrecida. Sem sonho não há beleza ou felicidade. Os que não sonham vivem desligados do pulsar que somente anima os que sonham. Alienados do melhor que o ser humano é capaz de produzir, sem conceder sentido à sua existência. Os Anjos, por sua vez, estão em contacto com a maravilha da poesia, da invocação da cor, do sabor, do sentimento. Não é ausente neles a resposta a essa invocação: surge o sonho, o desejo de as experimentar na sua plenitude. Quando um dos anjos decide abdicar da sua condição, abraçando a mortalidade, fá-lo por crença na capacidade humana de sonhar. O mundo ganha então cor a seus olhos, ganha significado e esperança porque só na condição de morto é que faz sentido olhar-se com esperança para o futuro, mesmo que inatingível: “Sei agora o que nenhum anjo sabe”, diz o anjo caído no final do filme. O desejo é então o que confere sentido à existência humana no filme de Wenders.
Se a um mundo de fronteiras, de limitações sociais, políticas e económicas, respondemos com o mundo das fronteiras auto-impostas e da alienação, não somos mais do que uma versão a preto e branco da humanidade.
A resposta de Asas do Desejo sobre a origem do desejo passa pela afirmação de que, mais do que inato, o sonho é o sentido mais nobre da existência humana. Wenders defende a necessidade de manter intacta, em homem, a vontade de transcender os limites de criança. O sonho para além da idade.
Vivemos tempos historicamente tensos, um pouco semelhantes ao tempo político que deu origem à obra de Wim Wenders: os choques culturais, a “Guerra Nuclear”. E há, de facto, uma lição a retirar: Obras como as Asas do Desejo são fundamentais e vitais porque, ao responderem no sentido do Sonho e do Desejo, nos devolvem a esperança na hipótese de um amanhã melhor e ao alcance do Homem. Como diz o poema de Handke: “When the child was a child (…) it had, on every mountaintop, the longing for a greater mountain yet, and in every city, the longing for an even greater city, and that still is so (...)”.