quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Taxistas e Salazar - memória sem memórias!

Vinha hoje de táxi e lá voltou o motorista a despropósito a apregoar a grandeza de António de Oliveira Salazar - não sei porquê, mas constato que esta é uma paixão frequente nesta classe - ora, mais uma vez movendo moinhos de vento, tentei explicar-lhe que as minhas memórias do antes do 25 são bem diferentes. Lembrei-me inclusive que assinei a Petição contra a construção do Museu, e dei comigo a tentar convencer o dito da bondade da minha ideia. Dividi a questão em factos, Direito Constitucional, Lei Ordinária e Conclusões. Expliquei-lhe que:
- Salazar dirigiu o regime fascista e, por meio século, retirou ao povo português os mais elementares direitos de expressão, informação e participação democrática;
- que a Câmara Municipal de Santa Comba Dão, através de uma empresa municipal criada para o efeito - cujo objecto adiante discutirei - pretende homenagear Salazar, erguendo-lhe um Museu do "Estado Novo”, ali mesmo na casa do ditador;
- que a Câmara ratificara a decisão do seu Presidente, de aceitar a proposta de doação que lhe havia sido feita pelo Sr. Rui Salazar de Lucena e Melo, dos documentos, livros e objectos de que é legítimo dono e possuidor e que pertenciam aos eu tio-avô, António Oliveira Salazar;
- que apreciara a proposta apresentada pelo referido de doar à mesma a parte que detém nos prédios urbanos inscritos na matriz predial da freguesia do Vimieiro, sob os artigos 311º, 312º e 340º, solicitando em troca uma pensão vitalícia de 1.250,00€;
- que a Câmara fizera baixar aquela proposta aos serviços jurídicos para que elaborado um estudo sobre a hipótese de legalização de aceitação dessa doação, e ao gabinete técnico para proceder a uma avaliação patrimonial da oferta, para uma negociação face á contrapartida exigida;
- que existe uma escritura pública lavrada pela Srª Notaria privativa da Câmara Municipal de Santa Comba Dão, nos termos da qual o Sr. Rui Salazar de Lucena e Melo declarou doar ao Município de Santa Comba Dão, representado pelo seu Presidente da Câmara, que declarou aceitar tal doação, 1/3 indiviso dos prédios urbanos sitos na freguesia do Vimieiro, inscritos na matriz sob os artigos 311, 312 e 340. Mais declarou o doador que fez aquela doação sem qualquer reserva ou encargo;
- que existe um contrato denominado de “Doação de Bens Móveis”, outorgado pelo Sr. Rui Salazar de Lucena e Melo e pelo Sr. Presidente da Câmara, em representação do Município de Santa Comba Dão, nos termos do qual aquele declara doar a este e este declara aceitar tal doação de 567 fichas apensas em 2 dossiês: livros, jornais, revistas, mapas e ainda 833 páginas que compõem sete cadernos filatélicos, numismático, medalhista, objectos vários, revistas, jornais e outros documentos, os quais se destinam a um futuro museu que será administrado por uma sociedade que deverá iniciar as suas funções até final de 2007, obrigando-se o Município a garantir um lugar remunerado para o doador, o dito Sr. Rui Salazar de Lucena e Melo, na futura sociedade, no montante anual de 24.000,00€, a pagar em duodécimos de 2.000,00€ mensais, actualizáveis anualmente por aplicação do índice do preço ao consumidor, sem habitação.
Posto perante esta evidência, o taxista nem pestanejou. Que era normal! E depois quantos assassinos da descolonização não tinham tais regalias.
Insisti.
- Que para o preâmbulo da Constituição da República dizia que “a 25 de Abril o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista. Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa.”
- Que, na afirmação desse processo de libertação, o legislador deixara plasmado no nº 4 do art. 46º que “não são consentidas organizações que perfilhem a ideologia fascista”.
Mais.
- Que a Lei Ordinária, pela Lei nº 64/78, no seu art. 1º afirma que “são proibidas as organizações que perfilhem a ideologia fascista” e que o nº 1 do art. 2º considera que "existe uma organização sempre que se verifique qualquer concertação ou conjugação de vontades ou esforços e, nos termos do nº 1 do art. 3º, que perfilham a ideologia fascista as organizações que pela sua actuação pretendam difundir a exaltação das personalidades mais representativas do regime fascista."
Expliquei ainda mais.
- Que o art. 940º do Código Civil tem por doação "o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa em benefício do outro contraente”. E que a doação o não era por não ser gratuita mas implicar a contrapartida de uma remuneração certa e permanente.
Bem fui aduzindo a meu favor que está longe de ter sido demonstrado que este espólio tenha efectivamente alguma relevância para o estudo da pessoa do ditador, pelo que se temia que o mesmo apenas servisse para local de encontro de excursionismo revivalista da extrema direita nacional e internacional, para exaltação da personalidade mais representativa do regime fascista: o ditador António de Oliveira Salazar.
Fiz-lhe ainda ver que, enquanto a minha geração vivesse me arrepiava a mera ideia de com dinheiros públicos se pagar aquela pensão, quando a de Salgueiro Maia e Humberto Delgado tardaram, e que continuavam a existir ocultos ideiais fascistas e salazaristas, e que estes eram perigosos, perniciosos. Em suma, de evitar. Fui lembrando o que se passa na Áustria, em França ou na Holanda. E até defendi que, a fazer-se, era um “Museu da Resistência”, que homenageasse o povo e as dores que aquele período, naquela pessoa, lhe quis infligir, e lhe infligiu.
Constatando a renitência do motorista em aderir à minha causa estóica, lembrei-me do Livro de Leitura da 3ª Classe, que evocava heróis nacionais e os dividia em duas categorias principais: heróis fundadores ou restauradores da nação e os que corajosamente defenderam a pátria - D. Afonso Henriques, Deladeu Martins, o Alcaide de Castelo Faria e D. João II juntamente com o Condestável; depois, os que contribuiram para a expansão de Portugal no mundo - o Infante D.Henrique, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Afonso de Albuquerque.
Mesmo distantes no tempo, estas personagens comungam de coragem ou de capacidade de comando. E é esta unidade, capaz de elidir a circunstância histórica, que os torna heróis nacionais, figuras atemporais. Refere-se a ‘fundação’ da nação - séc. XII/XIII - a que se associam tanto os episódios marcantes da defesa dessa nacionalidade, como o episódio da sua refundação (séc. XVII). "
O que tem isto a ver com Salazar? O facto de muitos insistirem em ver nele mais que um chefe político, a expressão reconhecível do herói revivicado. Mas isso prende-se com o marketing da sua política de refundação da nação, que o elegia redentor de uma nação desgovernada e esquecida da sua ‘alma’. O seu apelo a valores intemporais ligados à tradição e ao Fado. As suas “grandes certezas” (Salazar, 1935: XXIII), Deus, Pátria, família, autoridade (cf. Salazar, 1937: 30). A que se junta a profecia, tão frequente nos mitos de fundação, evidente quando o Cardeal Cerejeira associa Salazar a Fátima: “E eis o milagre de Fátima. Tu estás-lhe associado: estavas no pensamento de Deus quando a Santíssima Virgem preparou a nossa Salvação” (cit. in Nogueira, 1980: 49).
A imitação de Salazar, tal como a de Hitler e a de Franco, aos gestos históricos dos heróis que fundaram ou refundaram a nação - Afonso Henriques ou o Condestável - e dos que protagonizaram a expansão de Portugal no mundo - Infante D. Henrique ou Vasco da Gama. A imitação destes gestos era, mesmo, a única caracterização de Salazar (1940, inauguração das Comemorações Centenárias: “Através de séculos e gerações mantivemos sempre vivo o mesmo espírito e, coexistindo com a identidade territorial e a identidade nacional mais perfeita da Europa, uma das maiores vocações de universalismo cristão” (Salazar, 1943: 257).
E a imitação vai à caricatura, à sua evocação de Afonso Henriques. Salazar julga-se a expressão dessa encarnação (veja-se um postal ilustrado, editado durante o Estado Novo e onde a fusão das duas personagens é plenamente assumida: o corpo de Afonso Henriques, com as armas e a pose guerreira, completa-se com a cara de Salazar, enquanto as legendas explicitam as mensagens que importa guardar: no escudo “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”, em cima escreve-se “Salazar - Salvador da Pátria” e na base, como que sustentando aquela representação, exclama-se “Ditosa Pátria que tais filhos tem”).
Mas a memória do povo é curta. E costumo dizer que só evoca Salazar quem se sentava à mesa e não quem a servia. Mas não é verdade. Porque este taxista, a mãe deste taxista, por certo, servia à mesa e não se sentava nela. Mas ele não se lembra. Com certeza. De certeza. Porque ou tem memória curta ou a mãe nunca falava, Com ninguém. Nem com ele. Porque era mais uma das bocas silenciadas, dos ouvidos surdos. E ele lamentavelmente não tem memória, apenas porque ninguém, atempadamente, lhe introduziu os dados. Os dados da verdade. E o saudosismo dum tempo em que nada deixou saudade apoderou-se deste homem. Como um fado. Um fado triste. E só. Muito só.