"A vocação de um político de carreira é fazer de cada solução um problema", diz Woody Allen. Acompanho de perto a política americana, por duas razões: uma é por Jon Stewart (The Daily Show) e outra é por Bill Maher (Real Time). E a outra chama-se Hillary Clinton. E por Barack Obama.
A senadora afirma que: “As campanhas escrevem-se em poesia, mas governemos em prosa”. (Alguém imagina que um político português se desse ao desplante de dizer uma coisa destas? Manuel Alegre, talvez!). O casal Clinton foi o casal-exemplo. A secretária de Estado diz que o "amor" a fez superar experiências pessoais amargas (referindo-se ao episódio entre o marido Bill Clinton e a estagiária Mônica Lewinsky).
Não creio que foi o "amor" que a fez continuar. Que não a fez perder de vista o que, para ela, é essencial: o poder. Chamar-me-ão descrédula nestas coisas de afectos. Por acaso, sou uma pessoa que acredita no amor. Ferozmente. Mas o vírus da política está muito mais presente em Hillary que todo o eventual afecto que possa ter por Bill. O que a fez enfrentar a matéria publicada por Mike Isikoff sobre o affair do marido prende-se mais com uma estratégia de casal com vista ao poder. E, isto nada tem de mal. Isto significa que Hillary é extraordinariamente inteligente.
Igualmente inteligente foi a entourage de Obama. Barack Hussein Obama começou a ser apresentado como um poeta, um poeta com projectos, números e calendários concretos para uma América cindida entre uma ideologia de maniqueísmo teológico, capaz de criar Guantánamo ou gerir a galeria de horrores de Abu Ghraib, e os bastiões liberais sem réstea de tolerância para o léxico imperfeito do Presidente Bush, que se comprazem nas páginas de Noam Chomsky ou no novel ambientalismo de Al Gore. Obama fez-se acompanhar por uma equipa de voluntariosos, mais ou menos geniais, que o ajudaram a compreender que as tarefas da governação convocam os lideres a encontrar, a usar, as palavras certas. Por detrás da máquina do estribilho "yes we can", Obama teve um notório cuidado em usar as palavras certas, quer nas primárias quer no confronto com o republicano John McCain, cuja aura de maverick era à partida insuficiente para remover a pátina de anos acumulada na vida asséptica do Senado.
Uma boa parte dos pundits norte-americanos, a que se aliaram algumas consciências intelectuais da Europa, acredita que Barack Obama conseguiu vender a sua ideia sobre um projecto para a América no dia em que McCain interrompeu a campanha eleitoral. Enquanto o senador do Arizona titubeava, sem um roteiro, Obama começou a ser apresentado como um homem sereno que, a 20 de Janeiro, estaria preparado para enfrentar a Hidra de Lerna que ameaçava devolver os Estados Unidos às ruínas de 1929. Se os pilares do sistema capitalista norte-americano mostravam problemas estruturais, o candidato afro-americano, cosmopolita, articulado e democrata semeou uma (nova) estrutura de mudança, dos corredores do poder em Washington à cupidez de Wall Street. E a mensagem passou bem. De tal modo que nem os excessos de idealismo benfazejo preconizados para a política internacional serviram de arma de contra-ataque ao flanco republicano. Para a contabilidade negativa de McCain e de Sarah Palin contribuía a ausência de fé no Partido Republicano - desconfiado, numa primeira fase, da reputação de rebeldia do veterano do Vietname e glacial, numa fase ulterior, ao deixar cair uma candidatura condenada.
O equilíbrio entre os retratos de um poeta e de um líder nato foi perfeito como uma sinfonia, devida, em boa parte, a cirurgiões de estratégias como Joe Biden e a fazedores de opinião como Michiko Kakutani. Não terá sido ao acaso que Obama foi referido como um seguidor intrépido de “Parting the Waters” (o 1º tomo da biografia de Martin Luther King Jr. escrita por Taylor Branch), de Nietzche e de Santo Agostinho, de Herman Melville e até da Bíblia. Kakutani não hesitou em antever um nexo directo entre a leitura de “Team of Rivals”, de Doris Kearns Goodwin, e a escolha da antiga adversária Hillary Clinton para o Departamento de Estado: o livro desfia o momento em que Lincoln decidiu abrir o seu gabinete a opositores políticos.
Nenhum pormenor passou em branco a Obama. Daí que Lincoln se tenha erigido em seu espectro tutelar. No preâmbulo da cerimónia da tomada de posse, o sucessor de Bush foi de Filadélfia a Washington a bordo de um comboio engalanado. Pelo meio, parou em Delaware para apanhar o vice-presidente eleito Joe Biden e apeou-se em Baltimore para prometer, num exercício de poderosa retórica, uma “nova Declaração de Independência”. Dias antes fora fotografado e filmado em meditação ascética num símbolo de Washington, aos pés da estátua colossal do Presidente assassinado a tiro no Teatro Ford. Como Lincoln, o novo filho dilecto de uma certa América desencantada e de um certo Ocidente órfão apresentou-se à União com um apelo “não aos nossos instintos fáceis, mas aos nossos melhores anjos”.
As tarefas que se depararam à secretária de Barack Obama foram hercúleas. Desde convencer os norte-americanos de que deviam sufragar a revisão dos pressupostos liberais empreendida pelo secretário do Tesouro Henry Paulson, ao plano de relançamento da economia (a ascender os 900 mil milhões de dólares), à diminuição da taxa de desemprego (com níveis similares aos da década de 1970), ao crédito (a Reserva Federal reduziu a taxa directora a 0%).
Barack Obama assumiu, contando com Hillary, a sua arquétipa inimiga, o lugar vago de George W. Bush. O 44.º Presidente dos Estados Unidos, numa política coordenada com o que sai do gabinete da sua secretária, prometeu “devolver os desempregados ao trabalho”, dedicar 100 mil milhões de dólares à recuperação de infra-estruturas para evitar cenários dantescos como o de Nova Orleães, aliviar o jugo fiscal sobre a classe média, e fazer da América um farol de pioneirismo na protecção do ambiente. Mas as intervenções que precederam o espectáculo cénico e a poética da inauguration prenunciam um comandante-em-chefe bem mais pragmático.“Vai haver falsas partidas e contratempos, frustrações e desilusões. E vamos ser chamados a mostrar paciência mesmo quando temos de agir com urgência feroz”, afirmou Barack Obama.
O cenário é válido a dois tempos para a economia e para a política internacional. Nunca as expectativas da comunidade internacional voaram tão alto. E o Mundo parece ter olvidado que, durante um par de séculos, a América tratou sempre dos seus interesses antes de atender às necessidades exógenas. Diante de uma multidão reunida em Filadélfia, Obama prometeu aplicar o idealismo dos “pais fundadores” da América ao ataque às dificuldades do século XXI. Mas de que forma é que o idealismo encaixa, por exemplo, no peso do esforço de guerra dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão? O novo Presidente responde: a primeira ocupação “deve acabar de forma responsável”; a segunda deve continuar “de forma sábia”. A mesma questão é aplicável ao anunciado encerramento do campo de detenção de Guantánamo, onde prisioneiros da “guerra global contra o terrorismo” vegetam há mais de sete anos num limbo do Direito Internacional. Para lá da boa-vontade dos ideólogos de Obama persistem dúvidas sobre o destino a dar aos cativos. Chamada a convencer o Senado de que pode ser o rosto da diplomacia norte-americana, Hillary Clinton resumiu as ideias de Obama para a política internacional dos Estados Unidos com o conceito de “poder inteligente”.
Dentro de quatro anos, o Mundo saberá se a inteligência política de Barack Obama foi ou não capaz de iludir os 13 mil agentes de lobby que nos últimos dias assoberbaram os corredores do Capitólio, candidatando-se às respectivas fatias do plano de relançamento.
E, acabando com esta referência à inteligente política americana. deixam-se algumas referências aos políticos portugueses. Que têem emergido como "políticos eucaliptos". Que secam tudo à sua volta. Que usam os colaboradores como bodes expiatórios, em vez de lhes delegarem competências e responsabilidades. Que usurpam a legitimidade de se comportarem como senhores de um pequeno reino, em detrimento de um sustentado e consolidado desenvolvimento nacional e regional. Por isso, os partidos que asseguram a bipolaridade política do País estão hoje órfãos. O PSD sem Sá-Carneiro. O PS sem Mário Soares. O PCP/CDU sem Cunhal. Substituímos a legitimidade intelectual pela “ditadurocracia”, num contínuo exercício de incompatibilidade, de prepotências, de intolerâncias, de anulação de competências pessoais. É isto o político eucalipto, que, ao contrário de Obama, não congrega à sua volta competência e inteligência! Prefere a mediocridade e a subserviência, mecanismos que lhe asseguram a eliminação de potenciais concorrentes. Quando muito oferecem falsas simpatias exteriores, misturadas com um visceral autoritarismo interior.
Três décadas depois do 25 de Abril, os "políticos eucaliptos" mantêm técnicas de represália sobre aqueles que lhe pareçam representar uma eventual ameaça: os que ousam utilizar a sua própria intelectualidade e sobretudo os que se atrevem a pensar de forma diferente! Tornam o terreno político nacional numa terra seca e árida. A democracia candidata-se a ser um deserto, sem oásis!
Luís XIV, o Rei Sol, dizia: “O Estado sou eu”! O político eucalipto, actor e executor do mesmo espírito absolutista, determina: “O Partido sou eu”! O que evidencia uma triste verdade: olha-se pouco para o exemplo de Obama e de Hillary. Copie-se-lhes a inteligência política! Pura!