sábado, 30 de janeiro de 2010

Salazar e Cunhal - convicções e percursos


Estou a escrever, em co-autoria com vários amigos, um comentário sobre políticos portugueses. Uns escrevemos porque simpatizamos com os ideais revolucionários e porque frequentamos meios à esquerda. Outros porque ... nem por isso. Os dois lados tentaram um exercício desafiador. Procurar pontos identitários em Salazar e Cunhal. É óbvio que nenhum dos lados é insuspeito. mais que não fosse porque faço parte da comissão contra a construção do museu salazarista e até já vos deixei algumas palavras sobre essa causa. Corro, assumidamente, o risco de tomar partido: ou melhor, tomá-lo-ei sempre. A ter um partido entre os dois homens seria o de Cunhal.
Começando.
Salazar vivia em Coimbra quando Cunhal, em 10.Nov.1913, ali nasce. Ainda não se formara em Direito, mas já se fazia notar com textos empolgados. Havia por ali uma boa margem de sem-vergonhice da República. Assim marcava as páginas do ‘Imparcial’ e proferia admiráveis conferências no Centro Académico da Democracia Cristã. A mãe de Cunhal, Mercedes, era devota senhora, e se não se cruzou com Salazar nas missas de domingo na Sé Nova foi por causa do costume de os homens ficarem à parte das mulheres. Separados por 24 anos, foram ambos crianças de saúde frágil e educadas no temor a Deus. Com uma diferença: Cunhal teve mais berço. O pai, Avelino, era advogado e amante das artes. Salazar nasce numa família de poucas letras e veio ao mundo fora de tempo. O pai, António Oliveira, já dobrara os 50 anos, e a mãe, Maria do Resgate, estava quase nos 45. Tinham 4 filhas: Marta, de 8 anos, Elisa, Maria Leopoldina e Laura, a mais nova, de 4 anos. (Ainda hoje há quem se entretenha a divagar sobre a influência destas mulheres na educação e na formação da personalidade de Salazar). Já nem pensavam aumentar a prole, quando, em 27 de Abril de 1889, nasce um rapaz – a quem puseram o nome de António e os apelidos Oliveira, como o pai, e Salazar, como o avô materno. Não era uma família pobre, era até "remediada". Salazar nasce numa casa à beira da estrada por onde passavam, dia a noite, os almocreves com as bestas de carga. António Oliveira e Maria do Resgate, já por altura do nascimento da segunda filha, transformaram parte da casa em hospedaria e taberna: ele continuou como feitor da rica casa agrícola dos Perestrelo – e ela tomava conta do negócio. Havia, pois, alguma fartura. António Oliveira ganhava mais algum dinheiro como intermediário na venda de terrenos onde foi construído o bairro perto da estação de Santa Comba. O menino Salazar foi crescendo fracalhote, acanhado e tímido. Dava ares à mãe. Aos 7 anos começa a aprender as primeiras letras. Não havia escola no Vimieiro. Recebeu em casa lições particulares de um instruído funcionário da Câmara de Santa Comba Dão. Aprendeu a ler, a escrever e a contar. O professor achava-o esperto para as letras e dizia que seria uma pena que não continuasse os estudos. Mas a mãe não o quer no liceu de Viseu. Receia expô-lo às tropelias dos rapazes. Só havia uma solução: o seminário, onde o menino habituado a brincar com as irmãs estaria a salvo da chacota. Álvaro Cunhal foi o terceiro filho de Mercedes e Avelino. Nasceu debilitado, como os irmãos António José e Maria Mansueta, que nunca tiveram muita saúde e foram levados pela tuberculose. A mãe, pia mulher, pouco confiante nos milagres da medicina, encomendou a sorte do menino à Virgem. Álvaro, contra a vontade do pai, republicano e anticlerical empedernido, foi baptizado. Teve como madrinha Nossa Senhora. Talvez o advogado Avelino Cunhal possa ter conhecido Salazar em Coimbra. O jovem do Vimieiro, bem apessoado, apenas traído pelos lábios finos e voz de falsete, terminou o curso, em 1914, com 19 valores. Os sectores católicos mais reaccionários exultavam com o prestígio do lente – que passou a ganhar dinheiro como jurisconsulto enquanto preparava o doutoramento. Salazar acompanhou os amigos Manuel Cerejeira e Cabral Moncada numa viagem de fim de curso a França. Cerejeira, já padre e formado em Letras, fica por Lourdes em peregrinação. Os outros seguem no comboio para Paris, onde se separam. Moncada perde-se com a folia. Mas Salazar fugiu do pecado como o diabo da cruz: seguiu para Liège a tempo de participar num encontro internacional católico. O promissor Salazar dava pareceres e aconselhamento jurídico. Tinha clientela. Passou a vestir-se mais ricamente. Frequentava o alfaiate Damião, o mais famoso de Coimbra. A paixão por Júlia, filha dos patrões do pai, despedaçava-lhe o coração. Mas os Perestrelo contrariaram o romance – por não acharem bem que a filha se casasse com o filho do feitor. (Isso pode ter explicado a história acalorada sobre os futuros amores de Salazar). Este aprimorava-se nos hábitos: chegou a usar bengala com castão de prata e jantava com frequência no Avenida. O advogado Avelino Cunhal deve ter dado por tão grada figura – até porque uma página na Ilustração Católica’, apresentou Salazar como “um dos mais ilustres professores, de Coimbra, que dentro em breve o será do país”. Os Cunhal mudam-se de Coimbra para Seia, terra natal de Avelino. O filho mais novo, Álvaro, tinha 5 anos. A frágil criança teve aulas em casa com um professor particular – como Salazar. Mas ao contrário do homem do Vimieiro, mais dado à mãe, Álvaro era mais chegado ao pai. A família sofre um desgosto com a morte de Maria Mansueta. Ficam os dois rapazes. Recupera um pouco da alegria com o nascimento, em Seia, de outra menina, Maria Eugénia. O filho mais velho, António José, também será vítima da tuberculose. Em 1924, os Cunhal voltam a mudar de cidade: abalam de Seia e instalam-se em Lisboa. Álvaro tem 11 anos. Já recuperou algum vigor. Está apto a ir para o liceu. Por esta altura, Salazar arrasa em Coimbra: é doutor em Direito, rege as cadeiras de Economia e Finanças, milita com fervor no Centro Católico Português, é o grande doutrinador laico da corrente católica que sonha com o poder. Só teve um percalço: foi suspenso temporariamente da docência por suspeita de activismo monárquico. Mas nada ficou provado no inquérito e o professor Salazar saiu do caso como um herói para desespero dos republicanos. A vida corria-lhe bem. Arrendava uma casa à época para fazer praia na Figueira da Foz. Os seus pareceres jurídicos eram cada vez mais solicitados e o Banco de Portugal só de uma vez pagou-lhe 5 contos de réis. O advogado Avelino Cunhal não ganhava tanto dinheiro na barra dos tribunais. Álvaro Cunhal, cada vez mais próximo da figura paterna, afasta-se do caminho da Igreja. Estuda, em Lisboa, nos liceus Pedro Nunes e Camões (onde, curiosamente, em 74/75, fiz amizade com a filha). É bom aluno. Frequenta o escritório do pai (onde convivem anarquistas, anarco-sindicalistas, comunistas e "gente do reviralho"). Aos 17 anos, em 1930, entra para a Faculdade de Direito de Lisboa, ainda no Campo de Santana. Salazar, o doutrinador católico, ocupa a pasta das Finanças. Tomou posse do cargo, pela primeira vez, em Junho de 1926 – mas demitiu-se 5 dias depois e regressou a Coimbra. Fez uma viagem solitária por Espanha. 2 anos depois, deixou-se convencer a voltar a Lisboa. Achava que tinha por missão pôr em ordem as finanças públicas. Uma tarde, tropeçou na carpete do gabinete e estatelou-se no chão. Sempre fora trôpego. Fracturou uma perna. Operado no Hospital da Ordem Terceira, a convalescença foi prolongada. Ainda assim, trabalhou no orçamento, e o conselho de ministros, incluindo o Chefe do Estado, general Carmona, reuniu-se à volta da sua cama. Álvaro Cunhal, no ano em que entrou na Faculdade de Direito, em 1931, foi eleito representante dos estudantes no Senado Universitário. Um amigo do pai convida-o para o Partido Comunista (na clandestinidade desde 1926). Entra para a Liga dos Amigos da URSS e do Socorro Vermelho Internacional. Salazar toma posse, como presidente do Conselho, a 11 de Abril de 1933. No ano seguinte, Álvaro Cunhal entra na clandestinidade – para orgulho do pai e grande desgosto da mãe, que nunca lhe perdoará os caminhos ímpios do comunismo. Já o Governo tinha criado a polícia política, chefiada pelo capitão Agostinho Lourenço, e dentro em breve iria mandar construir o campo de concentração do Tarrafal. Quase a completar 22 anos, em 1935, Cunhal é nomeado secretário-geral das Juventudes Comunistas. O chefe do partido, Bento Gonçalves, tem planos para o disciplinado militante – que na organização clandestina passa a ser ‘Daniel’. O jovem revolucionário, com lugar no Comité Central, é enviado a Moscovo. Conhece Estaline. Regressa encantado com o ‘Pai dos Povos’. Passa a rematar qualquer discussão política com um argumento imbatível: “É assim que se faz na União Soviética”. Tal como Salazar, Cunhal não gosta de discussões. Ambos são disciplinados, determinados e austeros. Outra coisa os une: são nacionalistas. Salazar quer um país imperial fora da influência europeia. Cunhal, embora queira veementemente um país aliado da URSS, luta pelo reconhecimento internacional do PCP. Os dois abominam o capitalismo. Salazar teme que o capital transforme o país rural numa nação industrializada. Cunhal acha que os capitalistas têm um único objectivo: enriquecer. São ainda dois homens implacáveis: não perdoam aos inimigos. Um e outro mandaram matar adversários. O presidente do Conselho morava com o amigo Cerejeira, e a fiel governanta dos tempos de Coimbra, Maria de Jesus, num prédio da Rua Bernardo Lima, em Lisboa. Mantinha o hábito da missa de domingo. Na manhã de 4.Julho.1937 saiu de casa para a eucaristia, na capela privada de um amigo, na Av. Elias Garcia. Um grupo de anarco-sindicalistas, chefiado por Emído Santana, preparou-lhe um atentado à bomba. Salazar escapa sem um arranhão. Mas a repressão endurece. Cunhal é preso pela primeira vez. Vai para o Aljube. A mãe nunca o visitou na cadeia. Cumpre o serviço militar como um mero desordeiro na Companhia Disciplinar de Penamacor. Não verga. Faz greve de fome. Debilitado, é posto em liberdade.Volta a ser preso, em 1940. Teima, na cadeia, em defender a tese de licenciatura. É autorizado. Apresenta--se na Faculdade de Direito com um tema ousado – ‘A Realidade Social do Aborto’. O júri é de respeito: Paulo Cunha, Cavaleiro Ferreira e Marcelo Caetano. Cunhal brilha frente aos catedráticos e figuras do regime, que não hesitam em classificá-lo com um distinto 19. Sai formado da cadeia. Mergulha outra vez na clandestinidade. Viaja pela URSS, Jugoslávia, Checoslováquia e França. Regressa a Portugal e é preso, em 25.Março.1949, no Luso. Responde no Tribunal Plenário. Ele próprio, auxiliado pelo pai, assegura a defesa: um violento ataque ao regime de Salazar com a declaração em que se afirmava “filho adoptivo do proletariado’. Foi para o Forte de Peniche. Devia ter terminado a pena em 1956, mas continuou preso até se evadir, com mais 9 dirigentes do partido, a 3 de Janeiro de 1961. Relaciona-se com Isaura Moreira, sua camarada, de quem teve uma filha, Ana Maria. Vai para Moscovo. Parte para Paris. A companheira e a filha ficam na Roménia. É em Paris que recebe a notícia do golpe de 25 de Abril de 1974. Salazar tinha morrido 4 anos antes.
O que os une.
Cunhal era uma criança frágil. Fez o ensino primário, em casa, com um perceptor. A mãe educou-o na religião católica. Homem determinado, disciplinado e austero. Manipulador e sedutor.- Nacionalista: lutou pela autonomia do Partido Comunista Português relativamente ao comunismo espanhol. Abominava o capitalismo.
Salazar cresce frágil, acanhado, tímido. Aprendeu as primeiras letras, em casa, com um funcionário da Câmara de Santa Comba Dão. Teve uma educação católica. Determinado, disciplinado e austero. Era um mestre na arte da manipulação e um sedutor. Era um nacionalista. Não gostava dos capitalistas e cuidou que Portugal não se tornasse um país industrializado.
O que os separa.
Cunhal tornou-se ateu muito cedo. Foi um intelectual estalinista: conhecia a verdade sobre as purgas que mataram milhões de opositores. Queria que Portugal se aliasse à União Soviética. Era mais chegado ao pai. Teve várias mulheres. Deixou uma filha e três netos. Desenhador de mérito, escreveu romances.
Salazar nunca abandonou os princípios católicos. Não seguiu nenhuma corrente política internacional, nem tinha um inspirador. Queria um país imperial fora da influência política europeia. Era mais chegado à mãe. Manteve casos esporádicos com mulheres. Não teve filhos. Raramente leu um romance e não se lhe conhece qualquer gosto especial pelas artes.
No programa Palavras Cruzadas, cruzaram-se opiniões de Jaime Nogueira Pinto e de Odete Santos, a propósito de ‘Os Grandes Portugueses’.
Perguntou-se ao primeiro.
Como imagina o país actual governado por Álvaro Cunhal? - Assustador. O que fez pelo país? - De bem, por Portugal, fez pouco. Pela URSS e pelo comunismo fez muito. Era um fanático?- Um fanático inteligente. Fanático quanto ao fim, inteligente quanto à estratégia e aos meios. Aponte-lhe 3 virtudes. - Coerência, coragem, determinação. E 3s defeitos. - Fundamentalismo comunista, disciplina soviética, indiferença. Como vai a História recordá-lo? - Um dos últimos “grandes comunistas” do Século XX. A que figura da História Universal o compara? - Lenine. O que teria sido ele se não tivesse optado pela política? - Artista plástico.
Depois, a Odete Santos.
Como imagina o país actual governado por Salazar? - "Não se embarca tirania/Neste batel divinal. (Gil Vicente – fala do anjo num dos autos das ‘Barcas’) O que fez pelo país? - Era uma vez um país/Onde entre o mar e a serra/Vivia o mais infeliz dos povos/À beira terra/Onde entre vinhas sobredos/ Vales socalcos searas/Serras atalhos veredas/Lezírias e praias claras/Um povo se debruçava/Como um vime de tristeza/Sobre um rio/Onde mirava/A sua própria pobreza. (Ary dos Santos) Era um fanático? - "A tiranos, pacientes/que a unhas e a dentes/nos tem as almas roídas/Para que é parouvelar? (Fala do lavrador no ‘Auto da Barca do Purgatório’ de Gil Vicente) Aponte-lhe 3 virtudes. E 3 defeitos. - Talvez falte um algarismo e se deva multiplicar cada 1 por 2. Para ter o ano da Besta (666). Assim o problema só pode ser resolvido por metade. Quanto aos defeitos! Ou será que as três virtudes são as públicas virtudes e os vícios secretos? (Será que teria de falar nos Ballets Rose?) Como vai a História recordá-lo?- Rataplã no escuro/São bruxas que dançam quando a noite dança/São unhas de nojo/São bicos de tojo/No tambor da esperança (Xácara das bruxas de Carlos de Oliveira) A que figura da História Universal o compara? - Resposta: sujeita a exame prévio e tapada com corrector, porque censurada. O que teria sido ele se não tivesse optado pela política? - O menino da resposta em "Professor: Quem manda? Menino de mão em riste: Salazar! Salazar! Salazar!"
Cunhal e Salazar.
Semelhanças: a coerência do percurso político. Duas coisas que hoje se desconhecem em política: coerência e percurso. Porque ambos implicam convicções e estruturas sólidas. E hoje apenas se pensa em carreiras e ai! de quem tiver alguma solidez moral ou espiritual. Por isso, naturalmente, não voltaremos a ter tão depressa homens e políticos assim! E se de Salazar ninguém (ou eu e outros como eu) tem saudades, já de Cunhal ...